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23º Encontro Regional dos Oficiais de Registro de Imóveis em Belém do Pará discute a grilagem de terras


Entre outros temas, 23º Encontro Regional dos Oficiais de Registro de Imóveis do Brasil, realizado em Belém, nos dias 12 e 13 de outubro, debateu a grilagem de terras. Leia a palestra do defensor público, agrimensor e mestre em Direito agrário, Paraguassú Éleres.
 
PPS - Grilagem de Terras -  Paraguassú Éleres - 11,7 MB (12.320.768 bytes)
 
Grilagem de Terras
Paraguassú Éleres*

Conceitos

Existem dois conceitos para a grilagem, uma de natureza popular e outra de natureza doutrinária. Na concepção popular, significa colocar documentos falsificados dentro de gaveta junto com grilos e baratas, insetos da ordem dos orthopteros, a maioria dos quais fitófagos, mas em geral de hábitos onívoros, comem de tudo. Ao cabo de algum tempo comem a celulose dos papéis sobre os quais dejetam fezes e urina, deixando forte cheiro e aparência de documento velho.

Na concepção doutrinária, segundo Maria Helena Diniz grileiro é “aquele que procura apropriar-se de terras que pertencem a outrem fazendo uso de escrituras falsas”.

Para Leib Soilbelmen (apud Dicionário da Terra, Bernardino José de Souza, 1961), grilo é a propriedade territorial legalizada com títulos falsos ou verdadeiros, adulterados, ... crônica “Onda Verde”, Monteiro Lobato, em que o grileiro utiliza os meios mais diversos: envelhecimento artificial de documentos, certidões adulteradas, inventários inexistentes em cartórios que sofrem incêndio, penhora de compadre... A maioria das vezes é difícil descobrir a origem do grilo, e depois a prescrição está aí para ajudar os grileiros”.

Segundo Leib Soilbelmen, (apud Dicionário da Terra, Bernardino José de Souza,1961): “grilo” é a propriedade territorial legalizada com títulos falsos ou verdadeiros, adulterados.

No livro Onda Verde, Monteiro Lobato publicou a saborosa crônica O grilo (BIR 306, nov./2002) em que descreveu as táticas utilizadas pelo grileiro para o envelhecimento artificial de documentos, adulteração de certidões, aparecimento de inventários inexistentes em cartórios que sofrem incêndio, penhora de compadre, etc.
 
O grileiro é um alquimista. Envelhece papéis, ressuscita selos do Império, inventa guias de impostos, promove genealogias, dá como sabendo escrever velhos urumbebas que morreram analfabetos, embaça juízes, suborna escrivães - e, novo Jeová, tira a terra do nada. Seu laboratório lembra as espeluncas dos Faustos medievais; mais prático, porém, não procura ali a pedra filosofal ou o elixir da longa vida. Fausto virou rábula: manipula a propriedade.” (Monteiro Lobato: A onda verde. In: Obras completas de Monteiro Lobato, Vol. 5, Editora Brasiliense, 1948).

A maioria das vezes é difícil descobrir a origem do grilo, e depois a prescrição está aí para ajudar os grileiros.

A prescrição vale muito para os grileiros. O grileiro também se vale muito do princípio do artigo 859 do antigo Código Civil, que dispõe: “Presume-se pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se inscreveu, ou transcreveu”. Se está inscrito em seu nome, é dele em qualquer circunstância enquanto uma sentença judicial não destituir o direito do grileiro.

A concepção doutrinária de grilagem, segundo Maria Helena Diniz, é a transformação do documento falso em documento verdadeiro. É a aquisição da terra pela forma fraudulenta.

Na concepção popular, vale lembrar Monteiro Lobato ao dizer que nunca se viu um grileiro ser preso e que grileiro lembra o grilo que canta, você procura e ele não está mais aqui. É difícil pegar um grilo, a não ser quando ele pula sobre você.

Conheci grileiros inteligentíssimos, o mais culto deles fez uma lista, de 1750 a 1837, de todas as datas dos calendários portugueses. Ele jamais falsificou uma sesmaria com uma data que coincidisse com feriados e dias santos.

Formas de grilagem

Podemos classificar a grilagem de duas formas, particular ou institucional.

Vamos tratar da grilagem particular, mas quero chamar a atenção para a grilagem institucional.

Tomando grilagem como a apropriação indevida da terra, o primeiro exemplo que levanto é a tomada de terras do México pelos Estados Unidos. Aquilo foi de fato uma grilagem. Uma parte da Califórnia os americanos compraram, o restante foi tomado e eles ainda se gabam por isso.
 
No entanto, a grilagem mais importante é aquela que nos diz respeito, feita contra um documento chamado Tratado de Tordesilhas. Pelo Tratado de Tordesilhas, o Brasil estaria limitado entre Belém e Laguna uma vez que a linha vertical, de pólo a pólo, que passava pelas 370 léguas a partir do meridiano que passava na Ilha de Cabo Verde, atravessava essas cidades.

Entre 1580 e 1640, valendo-se do domínio da Espanha sobre Portugal e do fato de que a bandeira dos dois países era a mesma, os luso-brasileiros adentraram o território espanhol na América, aumentando o brasileiro em 268%. Formamos um território de 8.511.965 km2.  

É bom lembrar que ainda estamos tomando posse dessas terras, que são parte da Amazônia. Ainda somos um país posseiro, e não de proprietários. Segundo Patricia Ferraz, apenas 2% dos imóveis são registrados.

Para se ter uma idéia, o quarteirão formado pela estação de ônibus de Belém não está no nome do governo do estado. Existem áreas que não estão inclusas naquilo que foi comprado ou desapropriado. Ou seja, o próprio governo estadual não tem a propriedade daquilo que utiliza quando bastaria o estado entrar com uma ação de usucapião.

Além das terras indígenas e unidades de conservação da natureza (intervenções constitucionais), os decretos-lei 1.164/71 e 1.473/76), espécies de macro-grilagem oficial, declararam da União as terras devolutas em 100 km de cada margem das rodovias federais da Amazônia Legal, “existentes e projetadas...” –  PA-150  foi renomeada como BR-158... fora do Plano  Rodoviário Nacional, e envolveu 40% da área dada à CVRD. Os outros 60% partiram de rodovia estadual (PA-279).

A partir de 1934, o governo federal começa a apropriar-se de terras dos estados-membros. A União valeu-se de violência institucional com base nos decretos-lei para subtrair terras do Pará e Amapá. Ao criar os territórios federais, algumas nos foram devolvidas. Ao devolver, mandou que nos indenizassem. O Pará não teve coragem de reclamar sua indenização.

A União começou também a apropriar-se dos terrenos de marinha graças a uma antiga legislação, embora a CF não tivesse concedido o terreno de marinha para a União federal. Bahia e Espírito Santo entraram com uma ação no Supremo Tribunal Federal para reclamar seus direitos sobre as praias. Na posição sempre conservadora do STF, uma decisão de 1905 afirmou que os terrenos de marinha não eram terras devolutas, mas um bem nacional, portanto, imprescritível.

Caso de Belém: grilagem institucional

A questão dos terrenos de marinha envolve uma forma de grilagem que está sendo cometida atualmente contra Belém pela Secretaria de Patrimônio da União, SPU.

A SPU demarcou, em 1996, a LPM sobre a cartografia da cidade e pretende arrecadar cerca de 48,5% da área da primeira légua patrimonial (4.100 hectares), cuja titulação é a carta de sesmaria concedida pelo rei de Portugal em 1697, 204 anos antes da lei imperial de terreno de marinha (1831).

O primeiro aspecto a se considerar é que, em 1697, não havia ressalva de marinhas pela legislação portuguesa, e como a Constituição garante o direito líquido e certo me parece que esse é um direito. Essa é a tese do Ministério Público federal em ação ajuizada contra a União na comarca de Belém.

Um segundo aspecto a considerar nessa grilagem institucional é o fato de que a SPU não executou a demarcação. Demarcação significa pegar um equipamento topográfico e demarcar, realizar no chão aquilo que é a linha definitiva. E essa linha não foi feita, foi projetada sobre uma cartografia, o que constitui uma fraude não muito diferente das cometidas nos anos 1960, quando se desenharam mapas e o estado do Pará expediu os títulos.

Um terceiro aspecto importante é o fato de que essa linha deveria transcorrer o limite daquilo que deveria ser a linha de preamar média de 1831 – LPM/1831 –, o que não ocorreu.

É impossível reproduzir o limite da LPM de 1831 porque o nível do mar já subiu, portanto, ao medir a LPM hoje, fazemos referência ao nível do mar atual. Isso é uma grilagem oficial de terras, é o que chamo de macro-grilagem oficial.
 
Temos algumas interferências institucionais que nos tiram terras indígenas e ambientais, porém, quando os decretos de reservas ambientais são publicados, imediatamente o Ibama se programa para fazer a indenização do proprietário.

Todas as terras tomadas pelo atual governo federal, roubadas do centro do estado do Pará, não foram indenizadas. Quase cinco milhões de hectares foram tomados nos últimos tempos.

A mais agressiva de todas as intervenções foi o decreto-lei 1.164/71, que dispõe que as faixas de terra ao longo das estradas federais na Amazônia legal seriam arrecadadas para o governo federal, em nome da segurança e do desenvolvimento nacional. O motivo era a guerrilha do Araguaia. Essa questão era respeitada, mas só em Marabá. O estado do Pará perdeu cerca de 48% de suas terras, e não protestou.

O Incra é o responsável pela maioria dos problemas do estado do Pará, a ponto de não sabermos onde passam os limites da área que nunca foi demarcada pela União federal. De toda essa interferência, as áreas arrecadadas ficaram limitadas em 33%. O restante são áreas constitucionais, criação de reservas ambientais, criação de reservas indígenas, e mais recentemente, a criação de áreas quilombolas. Talvez reste ao estado do Pará algo em torno de 25% de suas terras. Perdemos essas terras por conta da grilagem institucional.

O estado do Pará é culpado daquilo que lhe aconteceu, por ter sido omisso na administração de suas terras. Até 1975, suas terras eram administradas por um departamento; somente em 1975 foi criado o Instituto de Terras do Pará, Iterpa. Esse departamento não tinha autonomia para fazer uma política de administração das terras, a começar pelo elemento mais básico, isto é, não se pode administrar sem que se tenha um cadastro.

O Pará tinha uma forma curiosa de lidar com suas terras: titulava certo no lugar incerto. Agora não mais, desde 1975, com o Incra, essas terras estão sendo ajustadas à sua posição geográfica. Ainda não há precisão, são poucos os georreferenciamentos, mas o estado já tem um primeiro desenho de algumas áreas.

Grileiros do Pará

O caso do grileiro-fantasmaCarlos Medeiros não foi resolvido até agora pela Justiça. Estima-se que 15 milhões de hectares de terras públicas tenham sido griladas em vários municípios do Pará. O governo do estado não enfrentou com decisão a questão e a OAB não obrigou os advogados do fantasma a apresentarem o cliente.

Essa questão é apenas um acinte bem como uma vergonha para nossa inteligência. É uma vergonha que estejamos a sofrer afronta dessa bandalheira e que o estado não tenha tido a coragem de criar um grupo especial de trabalho para pesquisar e anular os registros imobiliários de áreas de 10 a 15 milhões de hectares.

Talvez a grilagem mais audaciosa que se fez no estado do Pará tenha sido a de Cecílio Almeida. Os documentos mencionam 4.772.000 hectares. Pelas coordenadas geográficas são 5.694.240 hectares de terras públicas, federais e estaduais.

Em 1995/1996, o Iterpa advertiu Cecílio de que a documentação de suas terras era fraudulenta por se tratar de arrendamento com área limitada a 4.356 hectares, de acordo a Lei de Terras do Pará. Dias depois, soubemos pela imprensa que ele havia  comprado as terras. O mais audacioso dos fraudadores teve a coragem de processar penalmente quem o chamou de grileiro. 

Em depoimento na CPI da grilagem na Câmara de Deputados (Brasília e Belém, abril/1999), um deputado federal do Paraná defendeu Cecílio Almeida. Cecílio perdeu: os registros de imóveis em nome da Incenxil foram cancelados.

Na história do Brasil, tivemos três tipos de títulos: as sesmarias, os títulos paroquiais criados a partir do advento da Lei de Terras, em 1850, e, com a criação da República, o Pará cria um sistema semelhante ao título paroquial, os títulos de posse, que deveriam ser legitimados, o que, na ótica do governo, significa pagar a terra e demarcá-la.

O título paroquial tinha uma particularidade: quem registrava o título era o pároco, que cobrava por palavra, portanto, as pessoas utilizavam poucas palavras para economizar dinheiro. Isso resultou nos problemas de descrição que chegaram aos dias de hoje. Além disso, a economia de palavras hoje é brilhantemente atualizada pelo grileiro.

Os títulos que deveriam ser legitimados foram sendo postergados até que, em 1985, uma nova lei estabeleceu prazo de dez anos. Em 1995, a diretoria do Iterpa da qual fazíamos parte conversou com o governador, que extinguiu o título no ano seguinte. Ou seja, declarou caducos todos os títulos que não haviam sido legitimados. Os números são controversos. Falam em 65 mil títulos, dos quais apenas cinco mil foram legitimados, isto é, 60 mil títulos ainda não foram extintos.

O Iterpa já ajuizou cerca de 50 ações de anulação de títulos no registro de imóveis, com o detalhe da omissão do Estado ao longo desses anos. Esses títulos foram levados a registro, foram objetos de transações imobiliárias das quais o Estado cobrou impostos de transferência da propriedade, foram objetos de sentenças judiciais de execução de débitos com bancos oficiais.

Os títulos de posse são dos títulos mais falsificados por conta da descrição geográfica e topográfica. De todos esses fatos, podemos eleger o caso Medeiros como o mais complexo. Acredito que o Estado precisa encarar com uma idéia menos policialesca as pessoas que têm título de posse, para que a irregularidade não se perpetue. A lei deu oportunidade para que aqueles que estão na posse permaneçam. Mas o Estado precisa urgentemente fazer o seu cadastro fundiário, o que não é uma tarefa fácil, porque não basta resolver apenas a questão burocrática.

Projeto nacional de transferência dos terrenos de marinha

Temos um projeto nacional de transferência dos terrenos de marinha para os estados e prefeituras. Não se justifica que os terrenos de marinha sejam pertencentes à União, mas que sejam tidos como áreas de proteção, muito embora exista legislação ambiental suficiente para protegê-los. No entanto, não é essencial que sejam da União federal, até porque quem cuida do cais, por exemplo, é a prefeitura e não a União, que vira as costas aos problemas. Espero contar com a ajuda de todos para essa campanha nacional.

É louvável que os notários e registradores imobiliários do Brasil preocupem-se objetivamente com essa questão porque uma parte do problema está nos papéis que eles redigem e registram. Não se pode falar em paz no campo se não tivermos segurança jurídica, se não tivermos segurança dos limites.

*Paraguassú Éleres  é defensor público, agrimensor e mestre em Direito agrário.



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