Decreto-Lei 70/66 - Constitucionalidade
Darli Barbosa
A constitucionalidade do Decreto-lei 70, de 21.11.66 vem sendo questionada desde a sua edição, embora o assunto esteja praticamente pacificado pelos tribunais superiores, incluse pelo Supremo Tribunal Federal, que, chamado a se manifestar, decidiu no sentido de que o mesmo não infringe qualquer preceito da Constituição.
Aqueles que sustentam a sua inconstitucionalidade o fazem ao argumento de que o mesmo violaria os princípios (art. 5º) do monopólio estatal da jurisdição (inciso XXXVII), do juiz natural (inciso LIII), o da inafastabilidade de jurisdição (inciso XXXV), do devido processo legal (inciso LIV) e do contraditório e ampla defesa (inciso LV).
Uma simples análise de cada uma destes princípios pode denotar que os argumentos não procedem.
Não existe na Constituição Federal dispositivo assegurando ao Poder Judiciário o monopólio da jurisdição e tampouco o inciso XXXVII do art. 5º autoriza esta conclusão. Ao contrário, a Constituição, em várias passagens, confere a outros poderes e a outros orgãos a competência para apreciar e julgar conflitos.
O art. 52, inciso I, por exemplo, outorga ao Senado Federal a competência, inclusive privativa, para processar e julgar o Presidente e o Vice-Presidente da República nos crimes de responsabilidade e os Ministros de Estado nos crimes da mesma natureza conexos com aqueles; o mesmo dispositivo constitucional confere também ao Senado Federal a competência privativa para processar e julgar os Ministros do STF, o Procurador-Geral da República e o Advogado-Geral da União nos crimes de responsabilidade.
O próprio Tribunal do Juri, também previsto na Constituição (art. 5º, inciso XXXVIII) é outra exceção ao conclamado monopólio da jurisdição do Poder Judiciário, onde pessoas leigas são investidas na condição de julgadores com a competência para julgar os crimes dolosos contra a vida (alínea "d").
Argumenta-se ainda que a solução de conflitos fora do Poder Judiciário não é exclusividade do Decreto-lei 70/66 e esta tendência deve se ampliar cada vez mais.
O mesmo pode se observar, por exemplo, na lei de arbitragem. Embora haja discussão no âmbito do STF quanto a sua constitucionalidade, esta discussão se refere aos artigos que possibilitam a substituição da vontade (arts. 6º, caput e § único e 7º), não sendo, portanto, questionada a utilização da arbitragem como forma de resolver conflitos e, por conseqüência, não se colocou em dúvida a constitucionalidade da referida lei em face do princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário.
Não há também infringência ao princípio do juiz natural porque o Decreto-lei 70/66 estabelece uma forma permanente e orgânica de cobrança aplicáveis aos casos de inadimplência nos pagamentos das prestações do mútuo habitacional do SFH, não se tratando de procedimento aplicável a certos casos concretos. Aliás, a própria formalização do contrato habitacional é superveniente à edição da lei, ou seja, o mutuário já firma o contrato ciente de que não pagando as prestações em dia poderá ser executado na forma estabelecida no referido Decreto-lei.
Se o mutuário está ciente desde a contratação que, em caso de inadimplência no pagamento das prestações, será executado pelo referido Decreto-lei não se pode falar em Juízo de exceção, que dá idéia de criação para julgar casos já ocorridos e muito menos processamento por autoridade incompetente.
O Decreto-lei 70/66 (arts. 31 a 38) instituiu, na verdade, uma nova modalidade de execução, atribuindo a um Agente Fiduciário a competência para processar a cobrança da dívida (art. 31).
A Constituição ao estabelecer que ninguém será processado senão pela autoridade competente (art. 5º, inciso LIII) não asseverou que esta autoridade seria apenas do Poder Judiciário, dando a entender, assim, que autoridade processante é aquela estabelecida na lei; no caso existe uma lei conferindo competência ao Agente Fiduciário para promover a execução, o que afasta qualquer alegação no sentido de que haveria infringência ao princípio do juízo natural.
O princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional também não foi violado pelo Decreto-lei 70/66. Em nenhum momento estabeleceu-se que o mutuário estaria impedido de se socorrer junto ao Poder Judiciário, houve apenas um deslocamento desta intervenção que, de regra, verificar-se-á no ato de imissão de posse (art. 37, § 2º), quando o mutuário poderá argüir toda e qualquer matéria de defesa.
Antes, porém, de se concretizar a arrematação ou adjudicação, o mutuário pode, e de regra ocorre, questionar a regularidade do procedimento, como (1) a remessa dos avisos de cobrança, (2) a notificação para pagamento, (3) a publicação dos editais de leilão e (4) a notificação das datas designadas para o leilão e até mesmo a existência de pagamento ou consignação do valor cobrado.
Tendo havido pagamento ou consignação do valor cobrado ou existindo irregularidade no processo, o mutuário não precisará aguardar a conclusão do procedimento executivo para obter um pronunciamento judicial visando por fim à execução extrajudicial; nestes casos caberá, inclusive, a concessão de tutela antecipada para suspender a execução até decisão do processo.
O Decreto-lei 70/66, outrossim, não viola o princípio do devido processo legal. No particular, os discordantes da constitucionalidade fazem uma pequena confusão conceitual. O Texto Maior fala em devido processo legal, que não pode ser confundido com devido processo judicial.
A Constituição dispõe que ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal e não sem o devido processo judicial.
O Decreto-lei 70/66 estabelece uma forma legal de excutir o bem do devedor inadimplente, logo não há que se falar em ausência de lei prevendo o devido processo legal, pois o que a Constituição Federal está a garantir é que só haverá perda de bens através do devido processo legal, ou seja, mediante a existência de um processo previsto em lei, seja este judicial ou extrajudicial.
Quando a Constituição fala em devido processo legal, não está excluindo os processos extrajudiciais destinados à execução hipotecária, mas está se referindo tanto ao processo judicial como ao processo administrativo, bastando que haja previsão legal.
A venda de coisas em hasta pública fora do Poder Judiciário não é nova e nem principiou com o Decreto-lei 70/66. O Código Civil Brasileiro, ao disciplinar o contrato de penhor e o Código Comercial ao dispor acerca do penhor mercantil, também admitem esta faculdade (art. 802, inciso VI e art. 275, respectivamente).
Da mesma forma, o penhor civil (art.17, do Decreto 22.626/33), cujo monopólio é da Caixa Econômica Federal (art. 2º, do Decreto-lei 759/69), também possibilita a venda da coisa apenhada para pagamento do débito inadimplente, colocando-se o saldo remanescente do leilão, se houver, à disposição do mutuário que teve seu bem excutido em leilão público administrativo.
No mesmo sentido dispõe o art. 26 da Lei 492/37, que regula o penhor rural e a cédula pignoratícia.
Não há que se falar também na violação aos princípios do contraditório e da ampla defesa, os quais não foram afastados pelo discutido Decreto-lei, mas apenas deslocados, por força de lei, para o momento da retomada do imóvel, quando o Poder Judiciário é chamado a intervir.
Lembra-se ainda que a defesa do devedor no processo executivo perante o Poder Judiciário é realizada, através de embargos, após a penhora e no processo executivo extrajudicial é realizada, através de contestação, após a arrematação ou adjudicação. Ninguém duvida da constitucionalidade do art. 737, do CPC, que não admite, desde logo, a defesa do executado, impondo-lhe um momento certo dentro do processo executivo (penhora). Por que então seria inconstitucional o Decreto-lei 70/66 que fixa prazo para a defesa após a arrematação, mas antes da entrega do imóvel ?
A discussão do Decreto-lei 70/66 não está apenas no campo jurídico, mas também passa pelo campo político e prático.
Ao se concentrar a discussão no campo puramente jurídico, afasta-se do mérito da questão que é a caracterização da inadimplência e da regularidade do processo.
Se todos os requisitos previstos em lei estiverem presentes, nenhuma utilidade jurídica terá o processo que busca pôr fim a execução pelo Decreto-lei 70/66 ao mero argumento de ser inconstitucional.
A utilidade seria apenas de, após travada a discussão e barrado o processo, ingressar com nova execução, desta vez perante o Poder Judiciário, que chegaria a mesma situação do processo anterior, qual seja a retomada do imóvel em virtude da inadimplência.
É sabido que o magistrado deve buscar a utilidade do processo e de sua própria decisão. Se existe a inadimplência e foram observados os requisitos para a cobrança, nenhuma utilidade terá a decisão que barrar a cobrança pelo Decreto-lei 70/66 ao simples argumento de ser inconstitucional, pois a mesma poderá ser repetida através da ação executiva judicial (execução de título extrajudicial).
Tem ainda o aspecto político, o Poder Judiciário já exerce uma carga imensa de atribuições e estaria avocando mais atribuições, quando a própria lei, nestes casos, não exige a sua intervenção de imediato, deslocando-a para o momento da imissão de posse.
Muito se tem criticado a estrutura do Poder Judiciário Brasileiro ao argumento de que a nação não tem condições de suportar um encargo financeiro de forma a dar um número compatível de juízes a toda população. Se no momento não há como diminuir o número de processos que tramitam no Judiciário, não há porque levar ao Judiciário toda a cobrança do SFH se este não tem condições de dar uma solução no tempo eficaz.
Se os recursos aplicados no SFH não são recuperadas em tempo hábil, não há, por conseqüência lógica, como reaplicá-los. O equilíbrio financeiro do SFH para toda a coletividade deve se sobrepor ao interesse individual do mutuário inadimplente.
Em recente julgado (RE 223.075-DF - Acórdão publicado no DJU de 06.11.98 - pág. 22) o e. STF asseverou que o mencionado Decreto-lei não vulnera os princípios acima referidos, citando, dentre outros, que "a venda efetuada pelo agente financeiro, na forma prevista em lei, e no contrato, como um meio imprescindível a manutenção do indispensável fluxo circulatório dos recursos destinados à execução do programa da casa própria, justamente porque provenientes, na quase totalidade, como se sabe, do Fundo de garantia do tempo de Serviço (FGTS) é, portanto, por isso, longe de configurar uma ruptura no monopólio do Poder Judiciário".
Concluindo, evidencia-se que a Constituição não garante o monopólio absoluto da jurisdição pelo Poder Judiciário e nem o Decreto-lei 70/66 exclui a apreciação do Poder Judiciário ou impede o contraditório e a ampla defesa, pois inobstante autorizar a execução extrajudicial através de um agente fiduciário (art. 29 e seguintes), estabelecendo uma forma legal de execução, exige a intervenção judicial para imitir o arrematante na posse, quando então abre-se a possibilidade de defesa e contraditório. Além do mais, nenhuma utilidade jurídica restará à decisão que barrar a execução pelo discutido Decreto-lei ao fundamento de ser inconstitucional.
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