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A necessidade de lei para a criação de cartórios extrajudiciais - Hercules Alexandre da Costa Benício  *
 
Nos últimos dias, foram veiculadas diversas matérias, em jornal de grande circulação local (vide Correio Braziliense, Caderno Cidades, dos dias 19/02/2004 – fl. 39; 20/02/2004 – fl. 36 e 29/02/2004 – fl. 25), dando conta de que o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios, por sua Corregedoria-Geral, pretende efetivar mudanças nos cartórios extrajudiciais, principalmente quanto à abrangência das circunscrições registrais. 
 
Nada obstante a louvável preocupação de aproximar os serviços notariais e registrais das comunidades que não possuem atendimento a pouca distância, bem como a necessidade urgente de se racionalizar a distribuição territorial das serventias extrajudiciais no Distrito Federal, entendemos que – por imperativo de legitimidade e para se evitarem instabilidades no modelo de distribuição de serviço público que, por força do art. 236 da Constituição Federal, deve ser, necessariamente, desempenhado em caráter privado – a criação de novos cartórios há que ser precedida por ato normativo expedido pelo Poder Legislativo competente. 
 
O entendimento predominante de nossas doutrina e jurisprudência firma a posição de que os cartórios (ou ofícios) extrajudiciais constituem unidades de serviços notariais ou registrais que não são dotadas de personalidade jurídica e que, por concurso público, se atribuem a determinada pessoa, a fim de que esta, titularizando o cartório, por delegação do Poder Público, desempenhe suas atividades funcionais. 
 
No que tange à criação, desdobramento, desmembramento, organização territorial e extinção dos ofícios notariais e de registro, o Supremo Tribunal Federal continua entendendo, mesmo depois da Constituição de 1988, que compete, privativamente, aos respectivos Tribunais de Justiça, a propositura de projetos de lei sobre essas matérias. Baseia-se nossa Suprema Corte nos dispositivos do art. 96, incs. I, alínea “b”, e II, alíneas “b” e “d”, demonstrando que os serviços notariais e de registro continuam sendo considerados serviços reguláveis em leis de organização do Poder Judiciário [ 1]. 
 
Relativamente à natureza orgânica dos cartórios, como plexos de competências (repartições de atribuições), cumpre salientar que o Supremo Tribunal Federal já se viu instado, no julgamento da ADInMC 1583/RJ (sob a relatoria do Min. Néri da Silveira), a exarar entendimento a esse respeito. Em face da percuciente análise doutrinária empreendida pela Corte, e por ter a matéria debatida na referida ADIn relação direta com o assunto de que ora se trata, vale a pena debruçarmo-nos com mais vagar sobre esse precedente jurisprudencial, enfocando, dentre os diversos temas ventilados [ 2], a natureza orgânica dos cartórios. 
 
A referida ação direta de inconstitucionalidade foi ajuizada pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil — ANOREG/BR, com o intuito de que fosse declarada a inconstitucionalidade de dois provimentos exarados pela Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro que haviam transformado algumas sucursais de cartórios em novos serviços notariais (criando, assim, serventias extrajudiciais por ato administrativo). 
 
Em suas informações, o Corregedor-Geral da Justiça fluminense alegou que, com o advento do regime instituído pelo art. 236 da Constituição Federal de 1988, regulamentado pela Lei nº 8.935/94, a atividade notarial perdeu a sua característica orgânica e os notários passaram de funcionários públicos stricto sensu para delegatários de função pública, em regime privado, sendo considerados agentes públicos em sentido lato apenas para o fim de aposentação compulsória. Sustentou, ainda, que os conceitos doutrinários de delegação afastam entendimento que pretenda atribuir caráter de órgão administrativo aos ofícios de notas e de registro, que, por essa razão, prescindiriam da intervenção legislativa para a sua criação, ainda que se admita a elaboração de lei como procedimento preferencial. 
 
Dentre os votos dos eminentes ministros, destaca-se a passagem do entendimento do Min. Sepúlveda Pertence, nos seguintes termos, in verbis: 
 
“Não posso negar a relevância da argüição de inconstitucionalidade. Os ofícios do notariado e dos registros públicos são órgãos do Estado, na medida em que instrumentos do desempenho de funções públicas: organismos dotados de fé pública, está dito, hão de ser serviços estatais. Não importa que por essa sobrevivência inqualificável no setor dos tempos de patrimonialização do Estado, como preceitua este melancólico art. 236 da Constituição, se cuide de funções públicas ‘exercidas em caráter privado por delegação do Poder Público’. Por que são públicos, é que, para exercê-los em caráter privado, dependem os titulares cartorários, da delegação do Estado. São, pois, órgãos da administração. E assim, à primeira vista, a mim me parece que a instituição dos ofícios é objeto de reserva de lei no art. 48, inciso XI, da Constituição: trata-se de criar órgãos públicos.”     
 
Assim, o Plenário do Supremo Tribunal Federal, embora tenha, numa primeira oportunidade (na sessão de julgamento de 26.06.1997), indeferido, por votação majoritária, o requerimento de cautelar, em face da ausência de periculum in mora; ao reapreciar o pedido da ANOREG/BR, na sessão de 15.04.1998, reconsiderou a decisão e deferiu, à unanimidade, a medida, entendendo, in limine, que assistia razão aos argumentos de inconstitucionalidade dos Provimentos do Corregedor-Geral da Justiça carioca. 
 
Nada obstante o entendimento esposado no julgamento da ADInMC 1583/RJ, em recente decisão de medida cautelar na ADIn 2415/SP, por maioria de votos [ 3], o Supremo Tribunal Federal entendeu que os respectivos Tribunais de Justiça, por mero ato administrativo normativo (resoluções, provimentos etc.), têm competência para criar e extinguir serviços notariais, prescindindo de lei em sentido estrito para tanto [ 4]. 
 
Nas informações prestadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da mesma ADInMC 2415/SP, conforme se pode inferir do voto do Min. Ilmar Galvão (Relator), argumenta-se que, com o advento do regime de delegação, não há que falar em criação de cargos e cartórios, mas de delegações ou unidades de serviço, bastando simples ato administrativo para o surgimento de nova delegação, cuja outorga se concretizará após a realização de concurso público. 
 
Segundo noticia o Informativo STF nº 254, a respeito da ADInMC 2415/SP, o Tribunal entendeu que é constitucional o ato administrativo, expedido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, que reorganiza as delegações de registro e de notas (criando e extinguindo unidades, bem como acumulando e desacumulando serviços). Em decisão inovadora, decidiu-se que os serviços notariais e de registro não são órgãos públicos, afastando, à primeira vista, a tese de inconstitucionalidade por ofensa ao princípio da reserva legal, que deve ser, simetricamente, observado nos Estados-membros e municípios, insculpido nos incs. X e XI, do art. 48, da Constituição Federal [ 5]. 
 
Com efeito, o voto condutor do Min. Ilmar Galvão firma entendimento coincidente com os argumentos exarados pela Corregedoria de Justiça Paulista; confiramos, pois, alguns de seus trechos, in verbis: 
 
“O ingresso no exercício das referidas funções opera por meio da delegação conferida a quem se houver habilitado para o mister, por meio de concurso público de provas e títulos, instituto que, no caso, faz as vezes da licitação exigida pelo art. 175 da Carta, para a concessão de serviços públicos. (...) é fora de dúvida que a sua instituição independerá de ato do Poder Legislativo, estando condicionada tão-somente à investidura de um titular, mediante delegação, depois de devidamente aprovado em concurso público de provas e títulos, realizado pelo Poder Judiciário (art. 15 da Lei nº 8.935/94) ou de ato de remoção praticado na conformidade da lei estadual (art. 18 da mesma Lei nº 8.935/94). O mesmo se dá com outros serviços públicos, como, v. g., o de transporte coletivo ou o de energia elétrica, que independem de lei, encontrando-se a sua execução na dependência tão-somente do ato concessório, que é formalizado em favor do vencedor da respectiva licitação. (...) Não está prevista na Constituição nenhuma competência específica para medidas dessa natureza [criação de serviços notariais e de registro por lei], que não se confundem, em absoluto, com a criação de cargo público, inexistindo dúvida de que se trata de atribuições a cargo dos próprios tribunais que se acham, hoje, constitucionalmente investidos do poder de organizar os serviços dos juízos que lhes forem vinculados (art. 96, I, b), parecendo, por isso, verdadeiro despropósito afirmar que lhes falece competência para delegar, acumular e desmembrar serviços que outra coisa não são senão serviços auxiliares dos juízos, conquanto prestados por particulares.” 
 
Por seu turno, o Min. Sepúlveda Pertence, contrariando as reflexões por si expendidas na prolação de voto na ADInMC 1583/RJ, asseverou que, relativamente à natureza dos serviços notariais e de registro, “trata-se, diz a Constituição, de exercício em caráter privado por delegação do Poder Público. De tal modo que não se trata, a meu ver, de cargos públicos; são unidades de um serviço público, cuja divisão, subdivisão, acumulação ou desacumulação jamais se consideraram sujeitas à reserva de lei”. 
 
Entendemos, com o devido respeito, que a decisão na ADInMC 2415/SP, na parte em que define os ofícios extrajudiciais como unidades que não constituem órgãos públicos e, por isso, podem ser criados e extintos por atos administrativos do Corregedor da Justiça, não expressou a melhor interpretação dos dispositivos constitucionais que regem a matéria. 
 
Queremos crer que a decisão mais acertada se encontra nos votos dissidentes deste julgamento que verberaram, tal como doutrina Celso Antônio BANDEIRA DE MELLO (A competência para criação e extinção de serviços notariais e de registros para delegação para provimento desses serviços. In: Revista de Direito Imobiliário, nº 47, ano 22, julho-dezembro de 1999, pp. 197-212.) e como indiciava o julgamento na ADInMC 1583/RJ, o entendimento de que os cartórios possuem, sim, natureza análoga a de órgãos públicos, constituindo-se plexos unitários de competências administrativas públicas que devem ter, sim, suas atribuições criadas por lei. 
 
O ato de outorga de delegação a um concursado, para exercer a titularidade de um serviço notarial ou de registro, não advém de “uma massa indivisa de atribuições, concentradas nas mãos de uma dada autoridade (seja ela do Executivo ou do Judiciário)” [ 6], supostamente detentora de um feixe de poderes que se delega ou se extingue, fazendo surgir ou permitindo a existência de serviços ou serventias, cujas existências individualizadas ficariam atreladas ao entendimento soberano de uma autoridade pública. 
 
O Min. Marco Aurélio, quando do julgamento da Medida Cautelar na referida ADIn 1583/RJ, expressou argumento bastante consistente, qual seja, in verbis: “não se pode cogitar de um poder tão grande a ser exercido no âmbito de uma organização, a organização do próprio Estado, ligada ao Judiciário, por um único homem [o Corregedor].” Tudo indica, todavia, que, o julgamento da ADInMC 2415/SP, encerra grave precedente, oportunizando, por mero ato administrativo (exarado pelas respectivas Corregedorias-Gerais de Justiça), a criação, desmembramento e extinção de serventias, bem como a acumulação e desacumulação de suas atribuições. 
 
O fato é que — caso os Corregedores-Gerais das Justiças dos respectivos Estados federados e do Distrito Federal tenham o poder de redefinir, por provimentos (ou qualquer outra espécie de ato administrativo), as atribuições cartorárias, sob a alegação de que estes constituem meras delegações, não tendo natureza de órgãos públicos — poder-se-á instaurar contínua instabilidade na estipulação da quantidade, dos tipos de atribuições e das limitações territoriais de atuação das serventias extrajudiciais do Brasil. 
 
Considerando que, normalmente, os Corregedores-Gerais das Justiças possuem mandatos de dois anos [ 7], verifica-se que, a cada sucessão administrativa das respectivas Corregedorias, iniciarão momentos de incerteza quanto à configuração dos cartórios nas respectivas unidades da federação. Tal insegurança poderá gerar uma repercussão desfavorável para o bom funcionamento das serventias extrajudiciais. 
 
Entendemos que, pela relevância da matéria afeta à criação e extinção de cartórios, considerados estes como unidades de atribuições para o desempenho de serviço público (sob regime especial de delegação compulsória), mostra-se conveniente que sejam interpretadas as regras que dispõem sobre as serventias extrajudiciais como se fossem órgãos públicos, exigindo-se, assim, prestígio ao princípio da reserva de lei insculpida nos incs. X e XI, do art. 48 da Constituição Federal (princípio a ser observado, por simetria, nos Estados-membros e municípios). Não há dúvida de que a exigência de lei para a criação de serventias extrajudiciais implica maior estabilidade, segurança e legitimidade. A delegação de serviços cartorários, como se vem demonstrando, é feita sob regime especial, sui generis, não se enquadrando em categoria ordinária de concessão de serviços públicos [ 8]. 
 
Afigura-se criticável a interpretação de que, pelo art. 236 da Constituição Federal, os mencionados serviços notariais e de registro são criados por singela e ordinária delegação do Poder Público e, por esse fato, a conveniência de sua manutenção ou extinção depende simplesmente do humor ou juízo avaliativo da entidade delegante. Por imposição de sistematicidade do texto constitucional, não se deve admitir, com o devido respeito, que um Tribunal extrapole de sua competência normativa, ocupando área que demanda atuação do Poder Legislativo (para que receba a legitimidade de representação popular), em matéria de amplas repercussões sociais e que pretende ter caráter regulador permanente [ 9]. 
 
Com efeito, conforme ensina BANDEIRA DE MELLO (1999, p. 200), as serventias não são criadas pelo ato de delegação, nem são suprimidas nas hipóteses em que esta se extingue. As serventias antecedem a possibilidade de delegação e persistem existindo, mesmo depois de cessada uma dada delegação feita a alguém para exercer a titularidade de tal serventia. Com efeito, para que alguém titularize um serviço notarial ou de registro, o cartório deve ser, antes e regularmente, criado (por meio de lei), tal como em Direito se criam os centros públicos de atribuições e — nesta mesma conformidade — se extinguem, por igual processo, segundo o princípio geral do paralelismo das formas. A extinção da delegação (ou seja, o afastamento do titular de um dado serviço notarial ou de registro, por motivo de aposentadoria, sanção administrativa, morte etc.) não pode ser confundida com a extinção da serventia (ou seja, extinção — por motivo de insuficiência de volume de serviços ou de receita — do cartório individualizado, que constitui plexo de atribuições notariais ou de registro, ocupado por um titular) [ 10]. 
 
Buscando corrigir a interpretação de que a criação de um serviço notarial e de registro prescinde de lei, há, em tramitação no parlamento nacional, a Proposta de Emenda Constitucional nº 357/96 (de autoria do Dep. Nicias Ribeiro e outros). Essa PEC visa modificar a redação do § 3º, do art. 236, da Constituição Federal, passando a dispor que a “Lei Estadual disciplinará a criação, o funcionamento e a localização dos serviços notariais e de registros, dependendo o ingresso naquelas atividades de concurso público de provas e títulos, não se permitindo que qualquer serventia fique vaga ou ocupada interinamente, sem abertura de concurso de provimento, por mais de seis meses.” [ 11] 
 
Ademais, tramita, na Câmara dos Deputados, o projeto de lei nº 160 de 2003 (originariamente, PL 6827/02 do Dep. Inocêncio Oliveira) que intenta criar um art. 2A e seu parágrafo único, para a Lei 8.935/94, determinando que “a criação, acumulação ou anexação, desacumulação ou desanexação e a extinção de serviços ou serventias notariais e de registro, bem como as normas para realização dos concursos públicos de provimento da delegação, far-se-ão mediante Lei dos Estados e do Distrito Federal”. 
 
A falta de nitidez com que a matéria — concernente à delegação das atividades notariais e de registro — está tratada na Constituição Federal (e, de resto, na incompleta Lei nº 8.935/94) parece ser um dado inafastável. Esse fato impossibilita a acomodação pura e simples dos serviços aqui tratados, na esfera pública ou privada, categorizando-se no regime das concessionárias ou no sistema de ocupação de “repartições públicas”. Nessa linha de entendimento, as ponderações enunciadas nos induzem à constatação de que a delegação de atividades, pelo Estado, a entes de direito privado, com o intuito de que estes desempenhem certas tarefas, não representa o afastamento puro e simples do regime de direito público que caracteriza a atuação estatal. Em meio a esse conflito entre a necessidade de dotar o Estado de formas mais ágeis e eficientes de atuação e a impossibilidade de os cartórios serem absolutamente livres de qualquer amarra (em face da sua ligação com o Poder Público), fica o desafio de conciliar os elementos de direito público e de direito privado que se apresentam simultaneamente. 
 
Diante dessas considerações, conclui-se que, dada a natureza jurídica da serventia extrajudicial bem como a relevância e seriedade do tema referente à delimitação de circunscrições registrais, mostra-se válido, prudente e recomendável que cartórios sejam criados por lei. 


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