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A polivalência do registrador - Jáder Lúcio de Lima Pessoa
 
Muitos não imaginam a dimensão da atividade notarial e registral. O Notário e o Registrador ocupam uma posição de relevo na sociedade, principalmente nos pequenos centros, em que é verdadeiro ouvidor da população, aconselhando negócios jurídicos realizados pelas partes, inclusive pelo Poder Público, prestando orientações em casamentos, separações, inventários, brigas de família, enfim, é um consultor jurídico, um psicólogo, um conselheiro, um confidente, em quem o mais humilde ou o mais instruído do povo deposita confiança e respeito. 
 
Por isso nem sempre as atividades notariais e registrais esgotam-se na letra fria da lei. Às vezes, muitos problemas trazidos ao Oficial não seriam, a rigor, da sua estrita competência, mas posso dizer que o são como cidadão. 
 
A população, por não encontrar soluções nos órgãos competentes, traz suas reclamações para o Registrador, em quem deposita fé. Ciente das dificuldades será que o Registrador deveria apenas aguardar “ser provocado por qualquer pessoa” (art. 217 da Lei 6.015/73) ou esperar “por ordem judicial” (art. 13 da Lei 6.015/73)? Na verdade, o Notário e o Registrador devem proceder “de forma a dignificar a função exercida, tanto nas atividades profissionais como na vida privada” (art. 30, inciso V, da Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994), atuando como um cidadão comprometido com o bem-estar da sociedade. Há um tempero do princípio da instância com a eficiência e eficácia exigidas do Oficial (art. 37, caput, da Constituição Federal, arts. 1°, das Leis de Registros Públicos e dos Notários e Registradores). 
 
Posso relatar algumas das muitas experiências adquiridas como Notário e Registrador de um pequeno Município do interior do Rio de Janeiro, São Francisco de Itabapoana. A cidade, recém-emancipada de São João da Barra, é como uma criança desabrochando para a vida: está formando ainda sua estrutura, adquirindo sua identidade, organizando suas idéias e seus objetivos. 
 
Logo que assumi a delegação, há menos de três anos, deparei-me com uma situação preocupante: muitos imóveis estavam em situação irregular. Eram muitas as queixas por parte daqueles que não conseguiam legalizar seu imóvel. Havia inúmeros loteamentos irregulares, inventários não abertos, imóveis vendidos para duas ou mais pessoas diferentes, negócios imobiliários celebrados por meio de contratos particulares ou “arrecibos”, como dizem certas pessoas mais simples da região. Esse era o quadro, não obstante desde o Código Civil de 1916 (art. 676) a propriedade se transmite, por ato entre vivos, mediante o registro do título translativo no Registro de Imóveis. Posso dizer que a causa dessa realidade foi a falta de fiscalização por parte do Poder Público e o desconhecimento por parte da população. 
 
Iniciei então um trabalho de conscientização no Município, por meio de entrevistas, debates e artigos veiculados nas rádios e jornais. Entrei em contato com parceladores de imóveis, adquirentes, Prefeitura Municipal, Ministério Público, associações de moradores, engenheiros, arquitetos, e alertei a população para os riscos da falta do registro imobiliário e das vantagens deste. Chamei a atenção para as severas conseqüências da lei, configurando o parcelamento irregular crime contra a administração pública, sujeito, na sua forma qualificada, a pena de reclusão de até cinco anos, e multa de até cem vezes o maior salário mínimo vigente no país (art. 50 da Lei de Parcelamento do Solo Urbano). Divulguei ainda que os adquirentes de lotes deveriam suspender imediatamente o pagamento das prestações restantes aos loteadores infratores, devendo notificá-los para suprir a falta, depositando as parcelas junto ao Registro de Imóveis (art. 38 da Lei Federal 6.766, de 19 de dezembro de 1979). 
 
Havia um grande obstáculo no início do trabalho: o Município não dispunha de legislação de zoneamento urbano, parcelamento, uso e ocupação do solo. Em conjunto com a Procuradoria Municipal, a assessoria do Gabinete do Prefeito Municipal, a Secretaria de Obras, elaboramos projetos de lei, que foram aprovados, definindo as áreas urbanas do Município, disciplinando o zoneamento, parcelamento, uso e ocupação do solo, bem como o Código Tributário Municipal, o Código de Obras e o Código de Posturas. 
 
Tivemos a preocupação de adequar as situações de fato já existentes, respeitadas as exigências mínimas previstas na Lei 6.766/79 e os princípios estabelecidos no Estatuto da Cidade. Por um lado, procuramos regularizar os loteamentos já implementados, abrindo a possibilidade dos adquirentes finalmente obterem seus títulos de propriedade. Por outro lado, procuramos estabelecer parâmetros para um ordenamento da cidade organizado, regulando “o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental” (art. 1° da Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001). 
 
Uma vez dotado o Município do arcabouço jurídico mínimo necessário, passamos a cobrar uma atuação mais presente e eficaz da fiscalização municipal em relação aos parcelamentos irregulares. 
 
Dessa forma, alguns loteamentos e desmembramentos puderam ser aprovados e registrados, estando outros em fase de aprovação municipal. Os casos que não encontram solução, além das sanções administrativas aplicadas, são encaminhados ao Ministério Público, para a adoção das medidas criminais cabíveis. 
 
Sugeri a criação de uma Câmara de Assuntos Urbanos, integrada por representantes da Prefeitura Municipal, Ministério Público, Registro Imobiliário, dos parceladores, de adquirentes de imóveis, da Câmara de Vereadores, de representantes do Conselho Regional de Engenharia e Arquitetura - CREA, aberta a qualquer um da comunidade, para a permanente discussão de assuntos de interesse do progresso urbanístico e social do Município. 
 
Aos poucos a realidade está mudando. Porém, continua a luta do Registrador, “caminhando e cantando e seguindo a canção”, certos de que “uma andorinha voando sozinha não faz verão”.  


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