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Afetação da incorporação imobiliária. - Uma necessária correção de rumo.  * - Marcelo Terra  ** 
 
1. A medida provisória 
 
A Medida Provisória n.º 2.221, de 4 de setembro de 2001, introduziu algumas alterações na Lei n.º 4.591/64, com o objetivo de aumentar a segurança do comprador de imóvel ainda na planta ou em construção, incluindo, entre outros, o art. 30-D com a seguinte redação: 
 
"Art. 30-D. Para efeito, exclusivamente, do disposto no § 2º do art. 30-C, a vinculação das obrigações ali referidas, devidas pela pessoa jurídica, inclusive por equiparação, nos termos da legislação do imposto de renda, dar-se-á pelo rateio: 
 
I - do total das obrigações da pessoa jurídica relativas ao imposto de renda e à contribuição social sobre o lucro na proporção da receita bruta relativa a cada patrimônio de afetação em relação à receita bruta total da pessoa jurídica, considerando-se receita bruta aquela definida na legislação do imposto de renda; 
 
II - do total das obrigações da pessoa jurídica relativas às Contribuições para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (PIS/PASEP) e à Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS) na proporção da receita bruta relativa a cada patrimônio de afetação em relação à receita bruta total da pessoa jurídica, considerando-se receita bruta aquela definida na legislação específica dessas contribuições; 
 
§ 1º Na hipótese das demais obrigações trabalhistas, tributárias e previdenciárias, a vinculação dar-se-á de forma direta, abrangendo tão-somente aquelas geradas no âmbito do próprio patrimônio de afetação, na forma das respectivas legislações de regência. 
 
§ 2º As demais obrigações trabalhistas, tributárias e previdenciárias comuns dos patrimônios de afetação que não possam ser individualizadas a cada patrimônio serão rateadas na proporção do respectivo custo do patrimônio de afetação em relação ao custo total dos patrimônios de afetação. 
 
§ 3º As demais obrigações trabalhistas, tributárias e previdenciárias, não vinculadas exclusivamente aos patrimônios de afetação, serão rateadas na proporção da receita bruta do respectivo patrimônio em relação à receita bruta total da pessoa jurídica, considerando-se receita bruta aquela definida na legislação do imposto de renda. 
 
§ 4º Na impossibilidade de adoção do critério de rateio previsto no § 2º, em relação àquelas obrigações utilizar-se-á o critério previsto no § 3º. 
 
§ 5º As obrigações, as receitas brutas e os custos referidos no caput e §§ 1º a 3º são os correspondentes aos respectivos períodos de apuração e serão considerados acumuladamente entre a data de início do empreendimento e a data da extinção do patrimônio de afetação, nos termos do § 8º do art. 30-B, ou da decretação da falência, se houver. 
 
§ 6º Para os fins do disposto neste artigo, os patrimônios de afetação equiparam-se a estabelecimentos filiais, cabendo aos órgãos encarregados pela administração dos impostos e contribuições respectivos determinar as hipóteses em que o pagamento ou o recolhimento será efetuado por estabelecimento filial. 
 
§ 7º O disposto no § 6º não implica atribuir a condição de sujeito passivo ao patrimônio de afetação. 
 
§ 8º O incorporador deve informar, no demonstrativo trimestral a que se refere o inciso IV do § 5º do art. 30-B, a ser entregue à Comissão de Representantes, o montante das obrigações referidas no § 2º do art. 30-C vinculadas ao respectivo patrimônio de afetação. 
 
§ 9º O incorporador deve assegurar ao auditor, pessoa física ou jurídica, nomeado nos termos do § 2º do art. 30-B, bem assim à Comissão de Representantes ou à pessoa por ela designada, o acesso a todas as informações necessárias à verificação do montante das obrigações referidas no § 2º do art. 30-C vinculadas ao respectivo patrimônio de afetação." 
 
Afirmo, sem medo de errar, que a estruturação exposta na Medida Provisória é falha, não representa a realidade do mercado imobiliário de incorporações, toma como modelo um caso de exceção (a quebra) e não a regra-padrão (a conclusão do empreendimento). O conjunto da obra é reconhecidamente ruim, mas, infelizmente, essa intuição somente será comprovável se houver o sinistro, isto é se houver sua aplicação prática. Dentro de um quadro caótico, ganha especial relevo o art. 30-D, objeto específico desses comentários iniciais. 
 
O art. 30-D guarda como pano-de-fundo a preocupação da Fazenda de o patrimônio de afetação não prejudicar o direito de preferência do crédito tributário. Entretanto, a forma estabelecida a tudo alcançou, menos a eficácia prática do instituto, o que se pode comprovar com a constatação de que, decorridos mais de dois anos de sua vigência, não se conhece a experiência prática a respeito do patrimônio de afetação. 
 
Qual a razão? A resposta é bastante simples: a medida provisória é extremamente perniciosa ao condômino. 
 
Confiram-se, como prova definitiva do acima afirmado, os seguintes parágrafos (art. 30-D): 
 
"§ 2º Perde eficácia a deliberação pela continuação da obra a que se refere o § 1º caso não se verifique o pagamento das obrigações tributárias, previdenciárias e trabalhistas, vinculadas ao respectivo patrimônio de afetação, cujos fatos geradores tenham ocorrido até a data da decretação da falência, os quais deverão ser pagos pelos adquirentes no prazo de sessenta dias daquela deliberação. 
 
§ 3º Na hipótese em que assumam a administração da obra, os adquirentes responderão solidariamente com o incorporador: 
 
I - pelas obrigações previstas no § 2º, vinculadas a seu respectivo patrimônio de afetação, que tenham sido objeto de lançamento de ofício ou cujo pagamento tenha sido determinado na forma da legislação trabalhista, posteriormente àquela deliberação e até a extinção do patrimônio de afetação na forma prevista no inciso I do § 8º do art. 30-B; 
 
II- pelos tributos resultantes da diferença entre o custo orçado e o custo efetivo verificada até a data da decretação da falência, correspondentes a seus respectivos empreendimentos imobiliários. 
 
§ 4º Cada condômino responderá individualmente pelas obrigações na proporção dos coeficientes de construção atribuíveis às respectivas unidades, se outra forma não for deliberada em assembléia geral por dois terços dos votos dos adquirentes. 
 
§ 5º As obrigações previstas nos §§ 2º e 3º serão arrecadadas à massa, sendo seus respectivos valores depositados em conta-corrente bancária específica e destinados, exclusivamente, ao pagamento de créditos privilegiados, observada a ordem de preferência estabelecida na legislação. 
 
§ 6º As obrigações referidas no § 2º poderão ser pagas parceladamente, em até trinta meses, observando-se que: 
 
I - as parcelas serão acrescidas de juros equivalentes à taxa referencial do Sistema Especial de Liquidação e de Custódia (Selic), para títulos federais, acumulada mensalmente, calculados a partir do primeiro dia do mês subseqüente ao do vencimento da primeira parcela até o último dia do mês anterior ao do pagamento e de um por cento no mês do pagamento; 
 
II - o síndico da massa falida deverá ser comunicado da opção pelo parcelamento das obrigações no prazo previsto no § 2º. 
 
§ 7º Os proprietários ou titulares de direitos aquisitivos sobre as unidades imobiliárias integrantes do empreendimento, caso decidam pelo prosseguimento da obra, ficarão automaticamente sub-rogados nos direitos, nas obrigações e nos encargos relativos à incorporação, inclusive aqueles relativos ao contrato de financiamento da obra, se houver. 
 
§ 8º Os condôminos responderão pelo saldo porventura existente entre o custo de conclusão da obra e os recursos a receber e os disponíveis na conta a que se refere o inciso V do § 5º do art. 30-B, na proporção dos coeficientes de construção atribuíveis às respectivas unidades, se outra forma não for deliberada em assembléia geral por dois terços dos votos dos adquirentes.” 
 
De sua leitura extraem-se as seguintes conclusões: 
 
a) – a deliberação pela continuidade da obra fica condicionada a uma improvável e impraticável apuração de débitos; 
 
b) – os condôminos assumem uma obrigação solidária das dívidas (fiscais, previdenciárias e trabalhistas) do incorporador falido, que tenham como fato gerador a incorporação em si. 
 
Em síntese: a situação do condômino se agrava, e se agrava consideravelmente com a adoção do patrimônio de afetação. Não há estímulo ao condômino, à continuidade da obra. 
 
2. A incorporação imobiliária antes do patrimônio de afetação 
 
A compreensão do patrimônio de afetação e seus efeitos passa necessariamente pelo conhecimento prévio do que é a atividade da incorporação imobiliária e como ela se desenvolveu nos últimos quarenta anos e da importância, da coragem (margeando a insensatez, às vezes diante da constante turbulência macro-econômica) do incorporador num processo de urbanização extremamente rápido. 
 
A incorporação imobiliária é a atividade direcionada à aquisição do terreno, ao planejamento do produto imobiliário, à sua comercialização, construção e, finalmente, a sua regularização jurídica. 
 
A enorme energia criativa do incorporador encontra sua vazão principalmente no papel de formador do grupo, de amálgama de várias e diferentes pessoas, desconhecidas entre si, mas portadoras de um sonho comum, o da aquisição de uma unidade imobiliária. 
 
Sabemos que um empreendimento dividido em unidades autônomas barateia o custo de aquisição do terreno e da construção e que sua execução depende da conjugação de vontades, de esforços, de conhecimento e de capital. Sabemos, também, que o empreendimento somente chega a bom termo se todos os participantes cumprirem com sua quota-parte nas obrigações. O empreendimento é o todo, que resulta da soma das partes, os condôminos e o incorporador. A falha de um pode significar prejuízo para o todo. 
 
Afere-se, com enorme facilidade, que o empreendimento espelha uma visão tridimensional: o incorporador, o condômino e, acima deles e a eles ligado, o empreendimento. 
 
A lei de regência dessa atividade é a de n.º 4.591, de 16 de dezembro de 1964, vigente há quase trinta e nove anos e que demonstrou, nos recentes acontecimentos da quebra da Encol, estar adaptada ao enfrentamento de crises esporádicas. Evidentemente, melhorias no sistema legal se fazem sempre necessárias e merecem aplausos quando implantadas. 
 
A grande falha da Lei n.º 4.591/64 estava exatamente em não disciplinar a forma de transferência da propriedade das unidades aos condôminos, caso sobreviesse a falência do incorporador. Mesmo assim, esse vazio legislativo foi superado na prática pela força criativa da jurisprudência, o que se comprova com o caso Encol. Esse lapso está corrigido na Medida Provisória n.º 2.221/01, que concedeu à Comissão de Representantes mandato legal para, em nome do incorporador, outorgar a competente escritura de venda e compra ao condômino, que tenha quitado o respectivo preço, um mecanismo bastante inteligente, que permite agilidade e segurança para os condôminos e que já se encontrava na própria lei de 64 para as hipóteses de substituição do condômino inadimplente. Importante se lembrar que essa idéia não está no texto original do projeto de lei submetido ao Congresso Nacional em 1999, mas sim em texto do projeto substitutivo ofertado, à época, pelo Deputado Ricardo Izar, aproveitado pelo Executivo, quando da redação da Medida Provisória. 
 
3. Conseqüências de eventual e posterior falência da incorporadora ( 1) 
 
Penso que a preocupação fazendária refletida no art. 30-D peca pela base. É o que tentarei provar. 
 
Com ou sem patrimônio de afetação, a situação do credor fiscal, trabalhista e previdenciária é exatamente a mesma. De fato, para efeitos do presente estudo, importante a prévia (embora singela) distinção entre falência e concordata. 
 
A falência se caracteriza como um “...processo de execução coletiva, decretado judicialmente, dos bens do devedor comerciante ao qual concorrem todos os credores para o fim de arrecadar o patrimônio disponível, verificar os créditos, liquidar o ativo, saldar o passivo, em rateio, observadas as preferências legais.” ( 2) 
 
Por seu turno, a concordata é o tratado ou a convenção de que o comerciante devedor lança “...mão, de modo a evitar a sua falência ou a obstar o curso desta, desde que obedecidas respectivas condições legais e mediante a apresentação em juízo de proposta para a liquidação total ou parcial de seus débitos.” ( 3). 
 
Naquela (falência) as atividades do falido são interrompidas (com moderna tendência de se permitir a continuidade do negócio), partindo-se para a realização do ativo e liquidação do passivo. Nesta (concordata), há continuidade das operações, mas sob fiscalização; os efeitos de uma e de outra são diversos, quer quanto aos bens, à pessoa ou aos contratos do falido ou aos direitos de credores. 
 
Concentrarei atenção na hipótese de eventual falência, deixando de lado a figura da concordata. 
 
3.1 Efeitos perante os adquirentes de unidades autônomas 
 
Perante o condômino, os efeitos da falência do incorporador diferentes serão, dependendo do momento da quebra: se anterior ou posterior ao término da construção. Considerando o escopo do presente estudo e a situação fática subjacente, somente me deterei na análise dos efeitos da falência pós-conclusão da obra, principalmente em face do disposto no art. 44, VI, da lei falimentar, disciplinador de que na “... promessa de compra e venda de imóveis, aplicar-se-á a legislação respectiva”. 
 
A lei respectiva (4.591/64) nada regra especificamente quanto aos efeitos da falência pós-conclusão das obras; assim, valho-me das normas previstas em outros textos normativos que regem a compra e venda imobiliária. 
 
O regime jurídico da compra e venda de imóveis não loteados é disciplinado ou pela Lei n.º 4.591/64 (regedora das obrigações recíprocas entre incorporador e adquirente) ou por aplicação subsidiária pelo próprio Decreto-lei n.º 58/37 (imóveis loteados). 
 
Assim, a segunda parte do § 2º do art. 12, do Decreto-lei n.º 58, expressamente afirma que: “§ 2º - O falecimento dos contratantes não resolve o contrato, que se transmitirá aos herdeiros. 
 
Também não o resolve a sentença declaratória de falência; na dos proprietários dar-lhe-ão cumprimento o síndico e o liquidatário”. 
 
Muito bem: o contrato de compromisso de compra e venda celebrado pelo incorporador não se extingue com a sua quebra ( 4). 
 
As parcelas vincendas pós-falência deverão ser pagas ao síndico, como representante da massa falida. Uma vez quitado o preço, tem o condômino o direito ao recebimento do domínio, que lhe será conferido pela massa falida, representada pelo síndico, mediante prévia expedição de alvará judicial, ou, até mesmo, via adjudicação compulsória. 
 
Se e quando o condômino se tornar inadimplente perante a massa falida da incorporadora, esta, por seu síndico, poderá tomar todas as medidas judiciais e extrajudiciais para notificação do condômino e posterior ação judicial de rescisão contratual e reintegração na posse.( 5) 
 
Em resumo: perante o condômino, tudo se passa como se a incorporadora não fosse falida. 
 
Evidentemente, a situação jurídica do condômino mais se aperfeiçoa se o contrato de compromisso de compra e venda estiver registrado na matrícula. 
 
Mesmo que a formalização se concretize no termo legal da falência, o contrato de compromisso de venda e compra continuará produzindo seus regulares efeitos, exatamente por se tratar de imóvel do ativo circulante da incorporadora falida. 
 
Dúvidas podem se originar do art. 215, da lei de registros públicos (n.º 6.015/73), determinante da nulidade dos “... registros efetuados após a sentença de abertura de falência, ou do termo legal nele fixado, salvo se a apresentação tiver sido feita anteriormente”. 
 
Quando da falência da Encol, cuja repercussão se deu de forma extrema, chegou-se a negar registro de escritura de venda e compra lavrada antes da decretação da falência, mas apresentada posteriormente a registro, principalmente sob o argumento de que o contrato de compromisso de venda e compra se formalizara já ao tempo da concordata ( 6). 
 
Posteriormente, admitiu-se o registro de escritura de compra e venda, apresentada a Cartório pós-decretação da falência, tendo em vista principalmente que se obtivera o competente alvará judicial, autorizador da lavratura da escritura e, conseqüentemente, de seu posterior registro ( 7), em cumprimento a contrato de compromisso de compra e venda firmado antes de a incorporadora requerer o favor legal da concordata, até mesmo porque a proibição de venda de imóveis de empresa concordatária somente atinge os bens do ativo permanente, mas não os do ativo circulante ( 8). 
 
A falência ( 9) da Encol tem proporcionado a aplicação prática dos preceitos da lei de incorporações, mesmo antes da previsão do patrimônio de afetação pela medida provisória. 
 
Em inúmeras situações, os condôminos obtiveram nos autos da falência alvará judicial para recebimento de escritura de compra e venda da fração ideal de terreno, vinculada à unidade autônoma por eles subscrita, tudo independentemente da assinatura do síndico da massa falida. Essas escrituras foram lavradas e registradas ( 10) ( 11). 
 
Nos autos da falência da Encol também ( 12) se: 
 
a) - declarou como de “propriedade do condomínio” a unidade descrita na inicial como “estoque”, podendo aquele efetivar a venda da mesma de acordo com o procedimento previsto na Lei 4.591/64, bem como excluir e afastar qualquer direito da Massa Falida sobre as “unidades dos não aderentes”, devendo a Comissão de Representantes dos adquirentes ou  condomínio adotar o procedimento previsto na Lei de Incorporações para a venda das mesmas, sendo que na alienação das unidades “estoques” e “de não aderentes” não haverá necessidade de qualquer interferência ou nova autorização por parte deste juízo; 
 
b) - determinou expedição do “...competente alvará para que a denominada “unidade estoque” seja inscrita como de propriedade da parte requerente e para que as “unidades dos não aderentes” sejam negociadas pela Comissão de Representantes, de acordo com o previsto na Lei de Incorporações, retirando de tais unidades qualquer vinculação com a Massa Falida da Encol S/A Engenharia, Comércio e Indústria, proporcionando a continuidade e término da referida obra”. 
 
Essa decisão, de 30 de dezembro de 1999, ao conceder o alvará assim raciocina: 
 
a) - quanto ao conceito de unidades em estoque: 
 
a.1) - a Encol era responsável pela construção das unidades não alienadas a terceiros; 
 
a.2) - por força de uma interpretação da sistemática legal, a Encol não seria a “proprietária” das unidades “estoque”, que pertenceriam, sim, ao condomínio; 
 
a.3) - por serem da Encol (hoje Massa Falida), tais unidades não poderiam ser arrecadadas pela Massa Falida; 
 
a.4) - mas, em face da motivação de ordem prática, cabe ao Juiz da Falência declarar que as unidades “estoque” pertencem ao condomínio e autorizar que a Comissão de Representantes as aliene na forma do art. 63, § 5º, da Lei 4.591/64; 
 
b) - quanto ao conceito de condôminos “não aderentes”, a mesma decisão assim se posiciona: 
 
b.1) - os “não aderentes” têm o direito de desejar a não continuidade da obra e o não desembolso de novos recursos; 
 
b.2) - têm, também, o direito de se habilitarem na Massa Falida como credores privilegiados; 
 
b.3) - serão, então, inadimplentes perante o Condomínio de Construção; 
 
b.4) - assim, a Comissão de Representantes deverá notificá-los e depois promover a venda de suas unidades. 
 
Ainda em decorrência da paralisação de obras da Encol, o Tribunal de Justiça de Goiás em três diferentes oportunidades assim decidiu: 
 
a) – não existe óbice à alienação extrajudicial de imóveis na forma preconizada  no Estatuto e sob autorização legal do art. 63, da Lei n.º 4.591/64, desde que o produto da venda seja incorporado ao ativo da massa falida, facultando-se aos credores o direito subjetivo de habilitarem seus créditos ao concurso universal, em igualdade nos demais credores da massa falida;( 13) 
 
b) – a titularidade das unidades estoque e das unidades de condôminos não-aderentes à continuidade da construção, deve ser transferida ao Condomínio, consoante a hermenêutica do mesmo dispositivo, operando-se a resolução de pleno direito dos contratos então mantidos com a construtora falida. Assim, tais unidades, levadas a leilão, terão o produto da venda revertido ao Condomínio para dedução das despesas previstas no art. 63, § 4.º, da Lei de Condomínio e o saldo, se houver, retornará ao condômino não aderente;( 14) 
 
Finalizando este tópico, lembro que, se a falência da incorporadora se der no curso da construção, os condôminos poderão optar, por maioria simples em assembléia geral, pelo prosseguimento da obra, ou pela resolução do contrato com o incorporado e com habilitação, como credores privilegiados da massa, de seus créditos ( 15)  (= quantias pagas), respondendo subsidiariamente os bens pessoais do incorporador, tudo como expressamente regrado no art. 43, III, da lei n.º 4.591/64, sendo certo que: 
 
a) - a deliberação da maioria obriga a minoria ( 16); 
 
b) - não podem os condôminos optar pelo singelo pagamento do preço da quota-parte de terreno e adjudicação compulsória do terreno sem a concomitante deliberação pelo prosseguimento da construção ( 17); 
 
c) - se tiver havido a arrecadação do imóvel pela massa, a discussão a respeito da continuidade ou não da obra deve se dar em sede própria, que não no juízo universal da falência ( 18); 
 
d) - até mesmo poderia se cogitar de que as unidades ainda não alienadas pela incorporadora “pertenceriam” ao condomínio, podendo ser  livremente alienadas (sem prévia obtenção de alvará judicial), com utilização dos recursos no término da construção, tudo com o objetivo social de finalização da construção paralisada pela superveniência da falência. ( 19) 
 
4. A situação do credor fiscal, previdenciário ou trabalhista 
 
Como forma de demonstração da tese de que esses privilegiados credores não são afetados pela subordinação desta ou daquela incorporação ao regime patrimonial especial da afetação, exemplificarei no limite. Cogite-se da seguinte hipótese: 
 
a) – o empreendimento é integralmente vendido quando de seu lançamento antes do início das obras; 
 
b) – melhor ainda: todos os condôminos pagam o preço da compra e venda à vista; 
 
c) – no mesmo ato do recebimento do preço, o incorporador outorga ao condômino a competente escritura definitiva de venda e compra, escritura essa que será levada a registro imobiliário. 
 
Muito bem: no momento inicial, o incorporador recebe 100% do VGV (Volume Geral de Vendas) do empreendimento, tem plena disponibilidade financeira e administração do caixa, ficando com a obrigação de construir, por si por terceira empresa contratada, e entregar as unidades aos condôminos. 
 
Recordo que o registro do memorial de incorporação pressupõe o arquivamento, com o respectivo dossiê, das certidões negativas (ou positivas com efeitos de negativa) do INSS e da Receita Federal. 
 
Lembro, ainda, que para formalização do contrato de alienação, de duas uma: ou o incorporador é empresa de objeto social exclusivamente imobiliário, caso em que estará dispensado da exibição das negativas do INSS e da Receita Federal, se as unidades fizerem parte de seu ativo circulante; ou, não sendo empresa específica do ramo imobiliário, a apresentação dessas certidões é requisito absolutamente indispensável, sob pena de o negócio jurídico ser ineficaz relativamente ao credor (INSS e Receita Federal), tornando não-registrável o contrato de alienação. 
 
Voltando ao tema, na hipótese-limite, todas as unidades autônomas do empreendimento lançado pela incorporadora (falida no curso das obras) saíram do patrimônio dessa empresa, ficando fora do alcance de credores outros, inclusive fiscais, trabalhistas e previdenciários, pois anteriormente alienadas. 
 
Os recebíveis derivados daquelas vendas concretizadas antes da conclusão das obras estão, já por força da Lei n.º 4.591/64, destinados a uma finalidade: a conclusão das obras e sua regularização jurídica. 
 
Se essa conclusão e regularização despenderem mais recursos do que os recebíveis vincendos (pós-falência), a massa condominial deverá aportar a diferença, podendo, obviamente, se habilitar na falência para tentativa de recebimento desse montante. Aqui, com ou sem patrimônio de afetação, a situação do fisco (em sentido amplo) é exatamente a mesma, nem pior, nem melhor. 
 
Porém, se os recursos futuros cobrirem o custo de regularização e de construção, o sobejável será arrecadável pela massa falida, integrando seus ativos para efeitos de pagamento a credores, segundo a ordem de preferência estabelecida em lei. Também aqui, com ou sem patrimônio de afetação, os direitos desse credor são idênticos, nem pior, nem melhor. 
 
Evidentemente, a situação limite acima exposta é raríssima. Mais frequente no mercado imobiliário é a venda de unidades ao longo da obra, ou após sua conclusão. Em outras palavras, quando de eventual falência do incorporador muito possivelmente algumas unidades ainda estarão em estoque. 
 
Se o empreendimento estiver concluído, tais unidades do estoque serão arrecadadas pela massa falida, como outro bem de seu ativo ( 20). 
 
Diversamente, se a falência sobrevier antes da conclusão da obra, os condôminos poderão optar: 
 
a) – pela continuidade da obra, caso em que as unidades ainda não vendidas (da massa falida) serão arrecadadas pela massa falida e deverão contribuir com sua quota-parte no custeio do faltante, sob pena de sua alienação a terceiros, na modalidade do leilão extrajudicial; 
 
b) – pela não continuidade da obra, hipótese em que: 
 
b.1) - os condôminos poderão se habilitar na falência para satisfação de seu crédito, rescindido-se todos os contratos de alienação; 
 
b.2) - o imóvel (terreno mais obra até então executada) será arrecadado pela massa falida. 
 
Reitero a pergunta: qual o prejuízo do fisco (em sentido amplo) com a introdução do patrimônio de afetação, tal como redigido na Medida Provisória n.º 2.221/01? Nenhum, efetivamente. Se prejuízo houver, é bastante residual, não justificando a interferência da cunha fiscal no texto dessa Medida Provisória. 
 
Esse resíduo está somente na configuração de um privilégio do crédito bancário (para financiamento à produção ou para compra dos recebíveis do empreendimento) sobre o crédito fiscal. 
 
Recordo, ainda, que, à época da falência da Encol, o INSS disponibilizou, via internet, uma minuta de termo de transação ( 21) entre o INSS e a Encol, com o comparecimento da Associação Nacional dos Clientes da Encol. A cláusula primeira desse termo de transação está assim redigida: “Todos os empreendimentos ou edifícios, já construídos ou ainda em construção pela ENCOL, prometidos à venda a terceiros adquirentes, ou ainda transferidos mediante escrituras públicas aos terceiros adquirentes, responderão, isoladamente ou de per si, através de seus adquirentes, pelos recolhimentos das respectivas contribuições sociais incidentes sobre cada empreendimento ou edifício, como todos os acréscimos legais, tal regra se estende também para os empreendimentos penhorados ou gravados de hipoteca”. 
 
Claríssima a individualização das obrigações: cada empreendimento Encol responde somente pelo passivo junto ao INSS que tenha como fato gerador sua própria construção. Mais inteligente e mais racional do que a regra do malfadado art. 30-D. 
 
5. Uma síntese conclusiva 
 
Penso que o patrimônio de afetação, como se encontra na Medida Provisória, é bastante prejudicial ao condômino, agravando sua situação comparativamente à lei de 64. Sendo ruim para o condômino, ruim também para o incorporador e para a economia como um todo. 
 
Essa terrível situação poderá ser amenizada se, quando da conversão da Medida Provisória em Lei, o art. 30-D e outros dispositivos correlatos forem absolutamente extirpados, sem prejuízo, evidentemente, de outras possíveis modificações, visando o aprimoramento do mercado imobiliário, tão essencial para um crescimento econômico sustentado. 
 
São Paulo, 6 de fevereiro de 2004. 
 
Consulte também: 
 
Patrimônio de afetação e a MP 2221/01 – Melhim Namem Chalhub – Boletim Eletrônico do Irib/AnoregSP #398, de 9/11/2001. 
 
A nova proteção do adquirente nas incorporações imobiliárias. Melhim Namem Chalhub – Boletim Eletrônico do Irib/AnoregSP # 240, de 17/10/2000.


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