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A função econômica do registro imobiliário


Apresentação

Prezados Amigos.

Quero lembrar a todos os que acederam ao nosso convite que o nosso encontro visará justamente discutir a função econômica do registro imobiliário. Temos verificado que há mais pontos convergentes do que divergentes em relação à nossa atividade, seja do ponto de vista do registro, do ponto de vista do sistema financeiro, do financiamento legal, daqueles que estão envolvidos diretamente na produção de bens imóveis, seja, ainda, do ponto de vista da administração pública, empenhada neste momento histórico em promover a regularização fundiária neste país.

Agradeço muitíssimo a presença de todos e desculpo-me pelo  convite formulado de última hora. Não poderíamos deixar de vir a Brasília prestigiar este evento sobre micro-créditos nem perder a oportunidade de debater com uma das maiores autoridades em Direito registral no mundo. Nosso convidado representa o Colégio de Registradores da Espanha, país que, para todos nós, é referência para o registro imobiliário.

Fernando P. Méndez González tem discutido em fóruns especializados e com a maior proficiência a função econômica do registro imobiliário. Tem demonstrado as virtualidades econômicas e sociais relativas à propriedade imobiliária e ao registro, ressaltando a importância de instituições jurídicas de segurança preventiva.

A intenção do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil é introduzir o tema da função econômica do registro predial, envolvendo atores jurídicos e econômicos para um diálogo de compreensão e prospecção das inegáveis vantagens de um bom sistema registral.

Estão presentes representantes de vários segmentos do mercado imobiliário – desde registradores, notários, economistas, agentes financeiros, administradores públicos, players da construção civil etc. Tenho para mim que os objetivos que nos animaram à organização deste evento terão sido alcançados se pudermos abrir canais de diálogos e atuação coordenada.

Com os Srs. o Dr. Fernando P. Méndez González (SJ).

Em primeiro lugar, queiram desculpar-me por eu não falar português, o que lamento realmente. Vou falar devagar, esperançoso de que possamos nos entender.

Em segundo lugar, agradeço à organização esta oportunidade, que para mim é uma honra, de poder compartilhar com os senhores algo que creio ser muito importante: a função econômica do registro.

Um fórum sobre micro-crédito é muito importante e tem muita relação com o registro, uma vez que a alternativa ao micro-crédito bem como ao registro é a usura com todas as suas conseqüências.

Fernando P. Méndez González em encontro internacional em Brasília

Creio que uma das lições que o processo de transição de uma economia planejada para uma economia de mercado no Leste europeu nos tem ensinado que a economia de mercado não surge espontaneamente, não é um fato da natureza.

Parece existir um mito de que, se o Estado se retira da atividade econômica, imediatamente floresce a economia de mercado e a atividade econômica prospera. Não é bem assim. Se o Estado se retira da atividade econômica, surge a selva, mas não o mercado. Para funcionar eficientemente, o mercado requer um conjunto de instituições, dentre as quais uma das mais importantes é o registro da propriedade.

Por quê? Porque no mercado, antes de qualquer coisa, se intercambiam direitos sobre muitíssimas coisas. É claro que, para intercambiar direitos, em primeiro lugar é necessário que eles existam, estejam definidos e atribuídos a alguém bem como existam mecanismos de intercâmbio desses direitos. Sem isso, o mercado incorre em custos extraordinários para levar a cabo essas operações de intercâmbio. Obviamente, quanto maiores forem as dificuldades para se lograrem essas operações menores serão as chances de intercâmbios bem sucedidos.

Caso não haja intercâmbios, frustra-se o mecanismo básico em virtude do qual se produz uma adjudicação constante e eficiente dos bens. Portanto, simplesmente frustra-se o mecanismo por intermédio do qual se gera e se distribui a riqueza.

A finalidade primordial do Estado e da atividade institucional é fazer com que os custos necessários para a realização desses intercâmbios sejam os menores possíveis. Quanto maior for a segurança jurídica dos intercâmbios e menores forem os custos necessários para levá-los a cabo tanto maior será a atividade econômica.

Em todo intercâmbio pressupõem-se dois problemas básicos: quem oferece algo precisa saber o que tem a oferecer; e quem demanda algo precisa saber o que á oferecido bem como precisa comparar as importâncias econômicas, as características físicas e jurídicas e os preços do que é oferecido, o que se convencionou chamar custos de demanda.

Quanto maiores os custos de demanda, menores as possibilidades de não se adquirirem os bens a preços menores, uma vez que os custos para encontrá-los são superiores aos benefícios esperados deles. O que gera distorções no mercado.

A humanidade dedicou-se à criação de instituições que permitem reduzir custos transacionais, como é o caso das sociedades mais desenvolvidas que conseguiram reduzir seus custos transacionais.

Vejamos alguns exemplos.

A embaixada espanhola em Moscou tentou adquirir um edifício para organizar o Instituto Cervantes. Encontrou um edifício muito bonito e a administração espanhola procedeu rotineiramente: remeteu o dinheiro necessário para comprá-lo contra a certificação do edifício no registro moscovita. Mas na Rússia não havia ninguém capaz de certificar de quem era a propriedade. Conseqüentemente, a operação foi frustrada.

Em Moçambique, na África, foi aberta uma embaixada dos Estados Unidos num solar que, ao cabo de seis meses, ficou comprovado que não pertencia a quem o havia vendido. A embaixada norte-americana ficou sem sua sede, uma vez que não a havia comprado do seu verdadeiro dono.

Na construção das famosas torres gêmeas de Nova York, na década de 1970, foram necessários três anos de investimentos em pesquisa das propriedades da área e um seguro de 72 milhões de dólares antes de levar a cabo a operação. Prova de que, graças a algumas vantagens competitivas, foi possível que os empresários se permitissem esses luxos.

Olhemos agora paro o Brasil, o Peru e muitos outros países onde o assunto do micro-crédito está em discussão.

É necessário que as pessoas comprovem que o lugar onde vivem é de sua propriedade, mediante um título em virtude do qual o Estado reconheça essa propriedade, e assim ela possa ser utilizada tanto para proteger-se da chuva o do frio como para ativo econômico, portanto, como garantia para se obter um crédito.

Fernando P. Méndez

Sem título de propriedade juridicamente indiscutível, nenhuma entidade financeira vai aceitá-lo como garantia.

Impedido o acesso de seu proprietário ao circuito formal de crédito, resta-lhe apenas uma garantia pessoal com juro mais alto e prazo de amortização menor, uma vez sem comprovação de uma garantia hipotecária.

Na Espanha, esse crédito pessoal está em torno de 6% e 7% ao ano com um prazo de cinco anos para amortização, ao passo que o juro hipotecário é de 2,5% ao ano com até 40 anos para amortização.

Esse é o custo da falta de um registro que garanta a propriedade, o que não é pouco, considerando que, na Espanha, são feitas cinco milhões de transações por ano, 1,2 milhão das quais são de empréstimos hipotecários pessoais a um custo médio de 14 milhões de pesetas  e com um prazo de amortização de 12 anos. Imaginem os senhores que, se eles pudessem comprovar o registro imobiliário de suas propriedades, estariam pagando duas vezes menos pelo empréstimo, algo em torno de seis milhões de pesetas anuais.

Além disso, o registro imobiliário evita, por exemplo, a execução das sentenças judiciais contra o demandado portador de registro imobiliário, assegurado, portanto, contra a insolvência e estimulado a cumprir os contratos, os prazos, etc.

Considere-se ainda que o registro é um ótimo instrumento de enforcement. Ele permite que o Estado se assegure do cumprimento de certas normas sem recorrer a custos complementares nem criar agências que zelem pelo cumprimento delas. Para proceder à averbação de uma construção, impõe-se ao registrador a obrigação de que controle o cumprimento dos requisitos urbanísticos; em caso contrário, a inscrição é negada, mas os honorários do registrador são os mesmos por controlar uma lei ou por controlar quinze delas relacionadas com essa operação. E sabemos que, sem inscrição, não há financiamento e que, sem financiamento, não há operação. Por essas razões é que se pretende o cumprimento de todas as leis relacionadas às transações imobiliárias, sem necessidade de que o Estado crie mecanismos complementares para elas.

Para isso, só um registro muito bem organizado e muito bem administrado pode ser fator indubitável de dinamização da economia.

Em primeiro lugar, por que o registro tem de ser muito bem organizado?

Porque sabemos que existem basicamente dois tipos de registro: os que garantem quem é o proprietário do imóvel e os que não garantem isso, senão simplesmente dão uma pista de quem possa ser o proprietário dela.

O primeiro é o registro do tipo germânico e o segundo, do tipo francês. Eles dão uma resposta diferente para um mesmo problema. Suponhamos que no caso de uma dupla venda tenha acontecido o seguinte. Alguém que não é proprietário se faz passar por tal e vende a propriedade a um adquirente de boa-fé. Nesse caso, a quem o ordenamento jurídico deve proteger? Ao adquirente de boa-fé ou a quem foi privado do seu direito, o verdadeiro proprietário? A ambos? Porque ambos têm interesse e têm algum direito.

Bem, o sistema que protege o verdadeiro proprietário é o sistema francês; o que protege o adquirente, portador de um registro de direitos, é o sistema alemão ou o espanhol.

O registro de direitos assegura absolutamente o adquirente, uma vez que ele adquiriu a propriedade de boa-fé de quem no registro aparece como o legítimo proprietário; sob certas condições, sua aquisição fica absolutamente protegida, embora aquele que a vendeu seja seu aparente proprietário. Como se trata de uma aquisição absolutamente assegurada, ela também está perfeitamente apta a servir de garantia de crédito hipotecário.

Agora, prestem bem atenção. No limite, um registro com essas características garante ao adquirente, a um preço muito alto, que ele está privando do verdadeiro proprietário sua propriedade. É claro que é possível que esses sistemas funcionem com a condição de que esse efeito não se produza nunca ou quase nunca. Em caso contrário, o sistema entra em colapso. O registro passaria a ser visto pelo mercado não como um instrumento de proteção, mas de ameaça.

De volta à Espanha, cujas cifras me são mais conhecidas, suponhamos que das cinco milhões de transações imobiliárias anuais os registradores tenham se equivocado em 50 mil delas, ou seja, a cada ano, 50 mil indivíduos perdem suas propriedades em conseqüência do mau funcionamento do sistema registral. Os senhores crêem que isso teria algum futuro? Evidentemente, os espanhóis se sentiriam ameaçados por um sistema desses contra o qual certamente se voltariam com toda razão.

Por isso o sistema tem de ser muito bem organizado e bem administrado.

Muito bem administrado significa impor os menores custos possíveis, como custo de tempo, sem atrasos, custo de heterogeneidade, bem como custo de inflexibilidade.

Se eles não forem bem administrados, vão provocar atrasos, o que é extremamente perigoso por várias razões.

Primeiro, porque o tempo tem um custo muito superior ao custo financeiro, que é o de servir-se de mecanismos de suborno tanto mais bem sucedidos quanto maiores forem os atrasos. O que mina o crédito e a reputação do registro, responsáveis diretos de sua sobrevivência. Segundo, porque, em termos de heterogeneidade, a decisão registral tem de ser previsível, sobretudo porque, numa economia de mercado muito ampla em que vivemos, requerem-se contratos standard e não contratos de autor.

A Ford inventou a produção em série, o que faz com um ford seja igual a outro, segredo do êxito obtido. No caso das transações financeiras – como na Espanha, onde são feitas 300 mil operações hipotecárias por ano –, cada partida deve ser um produto estandardizado e não uma obra de artesanato. E produto estandardizado exige respostas estandardizadas; caso elas sejam artesanais, o risco de insegurança é alto, o que demanda custos extraordinários de negligência.

Há uma entidade financeira que opera na Espanha e que não discute nem negocia absolutamente nada. Munida de quatro modelos de hipoteca, oferece-as aos interessados, o que, mediante um sistema de scooling, é possível que eles decidam se lhes convém ou não.

Os custos de administração dos créditos dessa entidade financeira são cinco vezes inferiores a seus competidores imediatos, como o BBU e BCCH, que cobram juros a 2,5% pela oferta do crédito.

Realmente, o lucro obtido pelo banco do empréstimo hipotecário é irrisório, praticamente sem benefício, que aqui se traduz na fidelidade do cliente à entidade; portanto, muito mais um recurso de captura do cliente do que propriamente uma operação que renda benefícios para a entidade.

No entanto, é possível proceder assim numa economia de escala, em que são feitas 1,2 milhão de novas hipotecas ao ano, num montante de 14 milhões de pesetas  cujas variações de cêntimo podem fazer com que um banco tenha lucros extraordinários ou quebre.

Por isso, insisto. Como vivemos numa sociedade cujo mercado é muito amplo e requer produtos e mecanismos estandardizados, o registro tem de dar a ele respostas rápidas e estandardizadas também.

E para que se desenvolvam maciçamente novas tecnologias que permitam um manejo muito ágil e muito seguro nessa matéria, o registro é precisamente o recurso mais idôneo . É ele que permite a digitalização de todos os arquivos registrados, por exemplo, e, com ela, o manejo mais rápido e com muito menos risco de erro dos dados.

É possível expedir em questão de minutos certidões e informações registrais e, claro, a custos muito baixos. Resultado: incrementa-se a demanda de serviços registrais que segue os preços ou é elástica, como os senhores preferirem.

Há um ano pusemos em funcionamento o fly e o floatting. O floatting é um fichário destinado ao registro de propriedades e o fly, ao registro mercantil. No período de provas do sistema, não fizemos publicidade dele. No fim do primeiro ano tinham sido expedidas três milhões de informações! Atualmente, estamos expedindo oito milhões de informações ao ano. A velocidade de crescimento é espetacular! Por quê? Simplesmente porque as informações sobre registro mercantil e registro de propriedade são obtidas on-line, em alguns minutos, a um custo de três dólares. O que gera uma demanda maciça.

Na Noruega, apesar dos seus oito milhões de habitantes apenas, são geradas 54 milhões de informações ao ano.

Isso quer dizer que o registro tem que aprender a se movimentar exatamente nos mesmos termos em que se movimenta a sociedade à qual serve, estandardizadamente e em economia de escala. Se ele não conseguir isso, acabará tendo problemas. Não queiram os senhores que um banco entenda que um mesmo produto hipotecário se configure de um certo modo em 15 lugares e, de outro, em outros 20 lugares não. Os produtos do registro devem obedecer a um mesmo padrão em todos os sentidos e lugares.

A segunda grande tecnologia chamada a revolucionar esse produto é a assinatura eletrônica. Termina hoje, na Espanha, o prazo de apresentação de emendas ao projeto de lei que institucionaliza a assinatura eletrônica.

Esperamos que ele seja aprovado.

Já há mais de um ano que os registros a estão usando maciçamente, em especial a administração pública federal – fazenda e seguridade social – e algumas regionais. Na Espanha, o notariado está se rebelando contra a assinatura eletrônica. A meu ver, isso é um erro enorme. O caso é que, como diz um ditado espanhol “não se pode pôr portas no campo”. Por quê? Porque, no mercado competitivo do mundo atual, a redução de custos é imperiosa, é imprescindível, e a assinatura eletrônica permite uma considerável redução de custos. Os bancos, pressionados ao limite pela concorrência, querem e vão utilizar a assinatura eletrônica, o que vai lhes permitir poupar custos e muito mais. A assinatura eletrônica veio para revolucionar o sistema. Ela permitirá ao cliente dos bancos decidir em minutos se ele aceita ou não o crédito hipotecário estandardizado oferecido pelo banco.

Vejam os senhores o que é possível poupar e, portanto, quanto é possível pressionar para baixo o preço final para os consumidores. Isso já é uma realidade no registro de propriedade imobiliária. Alguém que adquire um carro por leasing já está se servindo dessa operação. E como essas já se fazem mais de quatro milhões ao ano.

Sem dúvida, esse procedimento vai ser implantado, porque hoje a operação de compra de uma casa é muito demorada; com a assinatura eletrônica posso realizá-la agora mesmo, sem sair daqui. Não se trata de ficção científica.

O mesmo sucederá no âmbito do direito das sociedades. Praticamente tudo o que chega ao registro mercantil chega por certificação do secretário do conselho de administração, com exceção apenas da constituição da sociedade, que costuma requerer intervenção notarial.  Nos Estados Unidos, recente lei de assinaturas públicas permite, por exemplo, que os conselheiros de administração possam votar mediante os mecanismos da assinatura eletrônica, esteja esse conselheiro no Hawaí, na Europa ou onde queira.

No Brasil também já existem sociedades cujas legislações permitem essas assinaturas. Elas vão consultar o ponto de vista sobre algum assunto de seus conselheiros espanhóis sem que eles tenham de ir e vir.

Uma das conseqüências da globalização do mercado é uma certa tendência à homogeneização que ele impõe, pelo menos a homogeneização de custos ou, se preferirem, do produto.

Uma mesma empresa  que opera em diferentes países pode se perguntar por que existem trâmites e custos diferentes de um país para outro. No âmbito registral, que é o que nos interessa agora, esse mercado impõe que quem tiver um grau de segurança jurídica inferior à média e com custo superior à média, tem por que se preocupar; no entanto, caso seu grau de segurança jurídica seja igual ou superior com custo igual ou inferior, ele não tem por que se preocupar.

Por isso, cabe ao registro a obrigação de ser bem organizado e bem administrado.

Quanto à organização, cabe ao registro ser independente do poder político. O estatuto do registrador deve ser muito parecido ao do juiz, o que vai lhe garantir credibilidade. O Banco Mundial está preparando um documento que se refere expressamente a isso, que deverá servir de respaldo importantíssimo para essa visão.

Portanto, que ele seja muito bem e corretamente administrado para que seja autônomo financeiramente, como é o caso dos sistemas registrais no Brasil e em Portugal. Mas em outros países não é bem assim. Neles, o registro existe e efetivamente registra, mas não goza de autonomia financeira. É o caso do sistema inglês, por exemplo.

Na maioria dos países, o sistema registral faz parte dos orçamentos oficiais. Cabe ao Estado administrar, definindo o que e quanto se destina ao sistema registral o que ele arrecada com seus próprios serviços. Do ponto de vista da organização econômica, isso é desastroso e o resultado é inevitavelmente sempre o mesmo. Isto é, se o preço dos serviços registrais não estiver atrelado às necessidades do serviço, mas às necessidades de arrecadação do Estado, esse serviço torna-se muito mais alto do que seria necessário.

Além desse mal, acrescente-se o fato de que os cidadãos encaram o serviço registral como um instrumento mau e caro, por isso mesmo desacreditado, o que beneficia a muita gente.

A propósito, esse é o caso de Portugal, onde o Estado dedica ao serviço registral a quinta parte do que arrecada e o registro português funciona mal não porque seus registradores sejam maus, pelo contrário, são excelentes profissionais, mas porque com essa administração o sistema não pode funcionar bem.

Caso cresça o tráfico imobiliário numa determinada zona e o registro não esteja apto a responder com mais seis ou sete empregados, ele será obrigado a pedir ao Ministério da Justiça que lhe providencie esses funcionários.

Isso tudo se dará ao cabo de um ano sem deixar de mencionar que esses novos profissionais chegam sem prática e sem formação adequadas.

A quem interessa que o serviço registral funcione mal?

Estamos trabalhando em Porto Rico, onde os registros são administrados mediante um convênio com o governo, que foi obrigado a tomar decisões drásticas. A situação era caótica, seja porque chegavam a existir três hipotecas de uma mesma propriedade, seja porque a simples apresentação de um título que constasse do livro protocolo diário garantia que ele não caducasse nunca, fosse eterno.

Notem que no fundo era necessário mudar o próprio sistema registral, de fato, um sistema de mera inoponibilidade, uma vez que, bastava existir o documento para que ele certamente tivesse prioridade. Entretanto, um sistema de mera inoponibilidade não garante ao mercado o grau de segurança jurídica de que ele necessita.

Mesmo mediante a apresentação de uma série de documentos relativos ao prédio, o mercado precisa saber também a quem ele pertence. Talvez o enigma se resolva mediante a comprovação de mais cinco, seis ou sete documentos.

O que tem suas conseqüências. Trabalho para os portadores do “caderno de chave ”, que funciona como uma espécie de guia para movimentarem-se nesse cipoal de títulos; para os procuradores; ou para os caçadores de hipotecas e de companhias de seguros de títulos. Mas assim não funciona.

Se o registro funcionar bem, muitos vão se dar conta de que seu trabalho ou não tem sentido, ou vale muito pouco. Por isso, há muita gente interessada em que ele não funcione. Para prejuízo dos cidadãos, dos usuários, claro.

Mas esses caçadores de renda têm seus beneficiários. É o que acontece nos Estados Unidos. Por uma série de razões, em muitos estados triunfaram as companhias de seguros de títulos em geral. Noutros, porém, a atividade delas tem-se restringido muito em conseqüência de uma resolução tomada pelo congresso americano. No entanto, há uma autêntica coalizão para que o registro não se desenvolva, porque o seu desenvolvimento compromete o mercado de seguro de títulos.

No entanto, até que ponto um lobby é poderoso? Em meados do século passado, as companhias de seguros de títulos, no intuito de conseguirem recursos destinados a empréstimos hipotecários, geraram um mercado secundário de hipotecas, os bônus hipotecários.

Nos Estados Unidos criou-se, mediante a “Fannie Mae” (Federal National Mortgage Association), uma companhia pública, a garantia dos bônus lançados no mercado e com eles a viabilidade de se obterem recursos a baixo preço. Exigia-se, no entanto, que eles estivessem assegurados por uma companhia de seguros de títulos. O que significava, de fato, que obrigatoriamente toda hipoteca (portanto, toda compra prévia ou posterior), deveria também obrigatoriamente ser assegurada por um título, sem o que não haveria garantia do governo; e sem garantia do governo, não haveria bônus nem interesse do mercado em adquiri-los. Em princípio, seriam eles os grandes adversários?

Creio que não; primeiro, porque, apesar de parecer outra coisa, a verdade é que a doutrina do Banco Mundial ou do Banco Interamericano de Desenvolvimento vai em sentido contrário, isto é, está voltada para o Registro; e, segundo, porque, no final, o que interessa ao banco é o retorno do investimento. Um banco não é uma imobiliária, não quer que seus clientes descumpram seus compromissos; ele quer, sim, receber de volta o crédito, esse é o seu negócio. Além disso, fará o possível  para reduzir ao mínimo os inadimplentes; caso contrário, ele aciona mecanismos rápidos de execução das hipotecas.

O último ponto que eu queria tocar diz respeito a países onde executar hipotecas é praticamente um fato notável, seja porque jamais elas são executadas, seja porque, caso aconteça, isso leva muitos anos. A nosso ver, isso é tão grave quanto o registro que não funciona.

Um segundo fator é o de tipo de juros, ceteris paribus, numa situação macroeconômica idêntica. Na Espanha, em caso de inadimplência, as hipotecas são executadas num prazo médio de seis meses. O que serve de estímulo ao cumprimento dos compromissos e dá ao banco garantia para que baixem os juros. Isso sim é um fato; o contrário é pura demagogia.

No México, com uma inflação de 5%, os juros para empréstimos pessoais estão em 17% e para empréstimos hipotecários em torno de 15%. O que isso significa? Que seu sistema registral e de hipotecas não serve para nada. Por quê? Porque o sistema registral mexicano, em primeiro lugar e em regra geral, não oferece credibilidade; em segundo, ele se coloca entre a primeira e quarta fonte de rendas fiscais dos diferentes estados. Quer dizer, não se trata de registro, mas de instrumento de arrecadação fiscal.

Além disso, no caso do México há um grave problema que afeta a outros países da região, em virtude de sua definição difusa dos direitos de propriedade. Sem dizer com isso que a culpa de tudo seja do registro, uma vez que cabe aos títulos definirem-se perfeitamente. Durante a revolução mexicana de 1917, quando 70% do território mexicano, as famosas fazendas mexicanas, pertenciam a duas mil famílias, perdeu-se a oportunidade de nacionalizarem-se essas fazendas, que de fato foram comunizadas, os famosos terrenos ejidales. Eram fazendas tão grandes que hoje abrigam cidades inteiras, uma das quais é a cidade do México. Embora pareça incrível, em teoria, cada apartamento da cidade do México é propriedade dos seus 20 milhões de habitantes cuja venda depende do consentimento desses 20 milhões, o que, de fato, torna-se um tráfico impossível que dá lugar à mais absoluta clandestinidade. Certamente compram-se e vendem-se imóveis - mas por circuitos informais e com conseqüências desastrosas. A construção de um segundo aeroporto na cidade do México, por exemplo, é impedida por esse problema, uma vez que exige o consentimento dos seus duzentos “ejidatários”. Em 1992 tentaram solucionar o problema mediante uma reforma que acabou não funcionando.

Bem, poderia dar-lhes muitos exemplos como esse.

O fato é que, se os direitos dos cidadãos não estiverem bem definidos, documentados, atribuídos e protegidos, o mercado não funciona. Os custos seriam muito altos, comprometendo assim o número de intercâmbio, que seria muito baixo, e o mecanismo básico inventado pela humanidade, a adjudicação eficiente de recursos, não funcionaria bem como a prosperidade não se daria.

Nas viagens que os senhores têm feito, é possível dividir os países em duas categorias: aqueles onde se pode comprar pouco e aqueles onde não se pode comprar nada. É necessário aperfeiçoar as instituições para que permitam e facilitem que se possa comprar. O que vai tornar um país rico são suas instituições confiáveis.

Muito obrigado por sua atenção. Espero ao menos ter sugerido algum tema para o debate.

Muito obrigado.

* Palestra proferida por Fernando P. Méndez Gonzalez em 6/10/2003, em Brasília, no transcurso dos trabalhos do III Fórum Internacional de Microcréditos. O palestrante é decano-presidente do Colégio de Registradores da Espanha.

Sobre o tema, confira também:

Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 10/10/2003 - n. 870 - IRIB propõe criação de microcrédito para a regularização de imóveis em fórum internacional
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel870b.asp

Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 10/10/2003 - n. 870 - IRIB propõe criação de microcrédito para a regularização de imóveis em fórum internacional
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel870a.asp

Notas & Notícias - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 03/10/2003 - n. 859 - III Foro Internacional de Microcréditos
URL:http://www.irib.org.br/notas_noti/boletimel859a.asp

Em breve estaremos publicando os debates que se seguiram à palestra supra transcrita (SJ).



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