BE830

Compartilhe:


 

Efetividade e permanência da regularização em assentamentos urbanos precários - Maria Lucia Refinetti Martins*


O Brasil chega ao século XXI superando os 80% de população urbana (1), a qual vive em mais de 5.500 cidades (2). No entanto um olhar mais apurado facilmente verifica que a maior parte desse assentamento urbano é informal, produzido ao largo da legislação urbanística e ambiental existente. Em geral, no quadro urbano edificado só não predomina a irregularidade onde a legislação urbanística e edilícia é muito reduzida. 

É marcante a presença de um tecido urbano precário – desde seu desenho e implantação à falta de infraestrutura e equipamentos e à qualidade das edificações. A situação é de extensas áreas de moradia, com insuficiência de transportes e de oferta de emprego, em situação precária, irregular e em grande parte das vezes em locais que comprometem mananciais urbanos de água potável e áreas ambientalmente frágeis, “protegidas por lei”.  

A Constituição Brasileira, de 1988 introduz em nossa legislação o conceito de Função Social da Cidade e da Propriedade, enquanto o Estatuto da Cidade (de 2001) explicita as condições de tal exercício, reunindo inúmeros instrumentos – alguns novos, outros já tradicionais para a promoção de cidades mais dignas, funcionais e ambientalmente viáveis, consignando a idéia de direito à moradia e à cidade.  

Parte desses instrumentos tem por objetivo evitar a retenção especulativa de imóveis vazios na área urbanizada, promovendo um aumento da oferta e conseqüentemente ampliando as possibilidades de acesso ao especo urbano equipado. Outra parte dos instrumentos destina-se à regularização de situações existentes – áreas de assentamento de população de baixa renda, fora dos padrões  urbanísticos e edilícios e em grande parte em áreas ambientalmente frágeis. 

NATUREZA DA IRREGULARIDADE 

Viabilizar tal propósito de regularização requer que se avalie as condições concretas e a dimensão da irregularidade e suas razões. Assim, um primeiro aspecto a ressaltar é que nas condições brasileiras, de reduzida correspondência entre a legislação urbanística e a realidade por conta do tamanho da exclusão social, um desafio inicial é conceituar ou especificar melhor o conteúdo e natureza da expressão “irregular”, particularmente no que se refere a assentamentos de populações de baixa renda. Adequado ou não, só é irregular o que a legislação estabelece como tal. Aí se torna evidente o grande fosso entre o desejável e a realidade urbana. No plano da materialidade dos assentamentos, sua razão de ser é, evidentemente, acomodar a população: moradias com condições físicas e serviços adequados – para a família e para a comunidade (sem impactos negativos ou riscos para si e para o conjunto da cidade) e segurança de permanência. Não é o que se vê. Nesse quadro, o que se poderia chamar de regularidade ou de “padrão”? Pode-se admitir que são três os aspectos: 

Condições reais: É a materialidade do fato observado, o conjunto de condições físicas efetivas dos assentamentos. Regularidade, nesse caso, corresponderia aatender aum padrão mínimo social e economicamente aceitável, que inclua salubridade e segurança, fundamentado na experiência concreta e não em modelos ou padrões arquitetônicos. Padrão e necessidades variam ao longo do tempo. À medida que tecnologia e produção de bens se amplia, a noção de necessidade básica também. Como a distribuição de renda é muito desigual, com extremos, o parâmetro legal é hoje uma referência ambígua, que resulta excludente e discriminador.  

Legislação urbanística e ambiental: É o que os legisladores decidem colocar na Lei. Há os objetivos - “Espírito da Lei”; e os meios para atingi-los, traduzidos em forma de artigos - os “Termos da Lei”. Ocorre que nem sempre os meios levam aos objetivos pretendidos. É o que se observa por exemplo, em relação à legislação adotada para proteção dos mananciais na Região Metropolitana de São Paulo: o intenso processo de urbanização, aliado ao esgotamento, a partir de meados da década de setenta, da oferta de lotes precários e de baixo custo (por restrições devidas à Lei 6766/79) e à ausência de outras alternativas para a habitação popular, acabou empurrando a população de baixa renda justamente para as áreas ambientalmente mais frágeis, desprezadas pelo mercado formal, o que inviabilizou por completo a aplicação da legislação de proteção aos mananciais. Nesse quadro, a remoção pura e simples da população, para atender ao estabelecido na Lei, se mostra socialmente insustentável – ao mesmo tempo em que a regularização das ocupações não tem como atender aos parâmetros legais. É um quadro extremamente delicado devido às dimensões da exclusão habitacional e a incapacidade do Estado em enfrentá-la. Nessas condições, o conceito de “razoabilidade” parece permitir que se coloque a questão: irregular é o que se afasta dos termos da Lei ou dos objetivos da Lei ? 

Posse e registro: Refere-se à segurança da permanência da população na área em que vive. Refere-se a um tema social, que é a segurança da posse, mas fica normalmente associado à propriedade, e a propriedade à sua escrituração. Do ponto de vista da regularidade urbanística, a regularidade registrária só entra na questão porque toda a ordem urbanística tem início na comprovação da regularidade da propriedade: para dar início aos procedimentos de aprovação de qualquer parcelamento ou loteamento é necessária a regularidade da propriedade.  

CONCEITOS E PROCEDIMENTOS 

Com base nesse conjunto de elementos é que se pode pensar no tema de regularização, iniciando-se por uma revisão no campo conceitual e dos procedimentos. Há necessidade de comprometer-se com ummétodo de trabalho e de formulação de propostas que parta não de traduzir conceitos em desenho ou em normas, mas de construir práticas / propostas / modelos que respondam à nossa efetiva realidade, a nossas limitações institucionais e econômicas – criativamente, sem preconceitos, já que o usual ou o conceitualmente irrepreensível, formalizado no papel ou nas normas, em nossas condições reais, tem muitas vezes levado a desastres urbanísticos e ambientais.  

Temos no Brasil – como de resto, na América Latina como um todo, o mau hábito de importar, na maioria das vezes sem crítica, modelos, padrões e práticas exemplares de outros contextos – econômicos e de organização da sociedade e do estado. Não é diferente nos modelos e instrumentos urbanísticos. Adotados esses padrões, sob forma de legislação, normas técnicas ou mesmo expectativa ou referência para a prática profissional, cedo nos deparamos com sua não observância. É o conhecido eufemismo das “leis que não pegam” ou da mais ampla “irregularidade” dos assentamentos e edificações. 

Em termos de habitação a aritmética básica ilustra essa condição: numa referência tradicional de relação custo da moradia / renda familiar, a ordem de grandeza é que esta importe no equivalente a dois anos e meio de renda mensal total, ou seja, trinta vezes seu valor (o que equivale a um comprometimento de 20% da renda familiar por um prazo der 25 anos – considerados juros e encargos). Como referência, considerando-se a renda de cinco salários mínimos - R$ 1200,00 (metade das famílias da RMSP tem renda igual a esse valor ou inferior) se chegaria a uma moradia de R$ 36.000,00. Toda legislação (Uso e Ocupação do Solo, Código de Obras, Normas Técnicas) que, se aplicada, leve a um padrão de imóvel de valor final superior a esse, na ausência de subsídio, joga por definição metade da sociedade na irregularidade. Não é de causar surpresa que mais da metade dos imóveis na cidade sejam irregulares.  

Essas condições costumam não ser reconhecidas, inclusive no meio técnico, numa operação simplificadora que atribui a irregularidade puramente à falta de fiscalização. Assim, um primeiro ponto para construir um processo de  capacitação em habitação  de  interesse  social  consiste em desenvolver conhecimento partindo do pressuposto de que o atendimento deve ser universal. Isso requer um olhar sobre a realidade que apreenda a efetiva condição da maioria da população bem como as condições institucionais de provisão e gestão.  

Para tanto é necessário rever conceitos e modelos, adotando-se em seu lugar padrões calcados na realidade, em que a referência seja salubridade e segurança, porém no contexto real; não o ingênuo estabelecimento de padrões ideais porém inatingíveis. Uma meta intangível é um incentivo para que não seja nada cumprida. Regras são cumpridas ou ignoradas, mas dificilmente  “meio cumpridas”. Melhor uma regra mais básica, passível de ser compreendida e atendida por todos do que uma que seja mais elaborada, mais rigorosa e inviável na prática. 

Criar padrões próprios para uma perspectiva de atendimento universal em Políticas Públicas – portanto incorporando as necessidades da maioria da população exige auto-confiança e investimento em pesquisa; e que se atribua a ela a respeitabilidade e status que se atribui à designada “pesquisa de ponta”, de altíssima tecnologia mas de aplicação restrita. Não se pode transigir quando à precisão dos fundamentos técnicos, pelo contrário, devem ter o maior rigor, mas não se pode deixar de incorporar obrigatoriamente as variáveis de exequibilidade e capacidade gerencial no contexto real. 

O que se tem observado é que os assentamentos precários, especialmente os que se encontram em áreas “protegidas” por razões ambientais, do ponto de vista jurídico são irregularizáveis segundo a legislação existente; do ponto de vista social têm representado a única alternativa de moradia de enorme parcela da população. 

Nas grandes cidades brasileiras a questão ambiental talvez hoje mais grave é associada à forma de ocupação do solo. É expressão de um processo de industrialização periférica e dependente, consolidado à base de baixos salários e correspondente a um processo de urbanização acelerado, que levou a população urbana de pouco mais de 30 % do total em 1940 a 55 % em 1970, chegando a 2000 com mais de 80% da população vivendo em cidades (3). Isso significou, nos maiores centros, crescimentos anuais de até 10% e mesmo superiores, em determinados períodos. 

A FORMAÇÃO DA IRREGULARIDADE 

Nos primórdios da industrialização, com a reduzida capacidade do Estado de promoção e gestão de políticas públicas voltadas ao assentamento humano e prioridade dos recursos públicos dada à implantação da infraestrutura para a Produção, o assentamento dos grandes contingentes de população que afluíam à cidade a cada dia, se deu majoritariamente pela auto-construção de moradias em arruamentos na periferia das cidades, de baixíssima qualidade, sem infraestrutura, com lotes comercializados a baixo custo e a prazo. 

Sem qualquer restrição ambiental, funcional, de qualidade ou estética, esse processo, marca desde seu início uma ocupação territorial predatória, contínua, sem a mínima reserva de áreas públicas e em condições técnicas que na grande maioria das vezes desencadeou situações de erosão de difícil controle. 

Esse processo não deixou de ter continuidade, nos anos mais recentes, sob formas talvez um pouco diferenciadas, apesar da redução das taxas de crescimento e do desenvolvimento de instrumentos de controle. A principal expansão urbana continua se dando de modo precário, generalizando o designado “assentamento informal”. 

Do ponto de vista demográfico, foi fora dos núcleos centrais mas dentro das regiões metropolitanas que ocorreu o maior crescimento de população, com a consequente intensificação dos processos de suburbanização e periurbanização precária, ao lado da implantação segregada dos mais diversos tipos de condomínios e loteamentos fechados, que abrigam populações de renda mais alta.  

Ao mesmo tempo, a ausência de alternativa habitacional para a maioria da população pobre nas grandes cidades brasileiras, particularmente nas duas últimas décadas, teve como uma das consequências, a ocupação irregular e predatória ao meio ambiente urbano. Os loteamentos irregulares, as ocupações informais e as favelas proliferam justamente nas áreas ambientalmente mais frágeis, protegidas por lei (através de fortes restrições ao uso) – e consequentemente desprezadas pelo mercado imobiliário.  

Nesse contexto, a principal questão ambiental urbana é antes de tudo um problema de moradia e de carência ou insuficiência de política habitacional. 

Do final dos anos 40 até meados da década de 70 o país teve seu mais intenso ritmo de urbanização, que resultou numa a expansão periférica e precária das cidades. Apenas na década de 70 tem início uma legislação com alguma exigência de infraestrutura e de espaços públicos. A legislação paulistana que impõe regras de qualidade aos loteamentos é de 1972; a legislação nacional sobre esse assunto é de 1979 – a Lei Federal 6766/79. A incorporação de controles ambientais é instituída sob forma de Lei em São Paulo em 1975, com a Lei de Proteção aos Mananciais – 898/75.  

Ao serem aprovadas, essas duas Leis (Proteção aos Mananciais e Loteamentos) continham dispositivos admitindo a regularização, sob forma de exceção, do que já estava implantado, criando a figura do empreendimento adaptado.  

Em São Paulo, nas áreas de Proteção a Mananciais – particularmente aquelas ao sul da cidade - bacias das represas Guarapiranga e Billings, são diversos os loteamentos produzidos literalmente à margem de qualquer Lei, implantados após a promulgação da legislação de proteção dos mananciais mas, a maior parte deles, tem algum pedido de aprovação ou mesmo planta aprovada na década de 50 mas só se implantou efetivamente nas duas décadas seguintes, em geral sem maiores preocupações com a regularidade urbanística ou legal. Com a interdição do registro em Cartório de Registro de Imóveis das propriedades em loteamentos irregulares, iniciada com a Lei 6766/79, houve uma verdadeira corrida à regularização e a criação de legislação de exceção. Mesmo essa exigia condições que a maioria dos assentamentos não dispunha.  

A situação hoje é de uma extensa área de loteamentos onde vive população de baixa renda, em situação irregular e em grande parte das vezes em áreas que comprometem os mananciais urbanos. Há da ordem de um milhão e meio de pessoas nessas condições no entorno dos mananciais da cidade de São Paulo (Represas Guarapiranga e Billings). Do ponto de vista jurídico são irregularizáveis segundo a legislação existente; do ponto de vista social representam a única alternativa de moradia de enorme parcela da população. 

A QUESTÃO DA REGULAMENTAÇÃO 

Quebrar esse círculo de insensatez implica em reverter procedimentos de trabalho e de proposição de regulamentações, viabilizando efetiva correspondência entre legislação e condição concreta. Ora, nossa tradição quanto à regulamentação urbanística tem sido a da aprovação de Lei / pouca efetividade da Lei (irregularidades) / anistia e elaboração de Lei mais rigorosa, que estimula o descumprimento e a irregularidade, nova anistia e assim indefinidamente. Não é exagero avaliar-se que a grande maioria dos arruamentos e regulares em São Paulo, o são por força de anistias ou formas de regularização. Aqueles que tiveram sua aprovação estritamente dentro da Lei, previamente à implantação, são inequívocas exceções. 

Com o objetivo de discutir a natureza desse conflito, prioritariamente no caso da ocupação existente nas áreas de proteção ambiental e a necessidade de garantir condições de consumo da água dos mananciais de São Paulo, iniciou-se trabalho em parceria entre o Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos do Departamento de Projeto da FAUUSP e integrantes do Ministério Público do Estado de São Paulo – Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Urbanismo e Meio Ambiente, além de Municipalidades da Região Metropolitana de São Paulo.  

O desenvolvimento do projeto vem permitindo melhor compreensão da dinâmica de implantação de loteamentos e edificações irregulares e/ou clandestinos e a avaliação de seus efeitos negativos. Tem também identificado gargalos e dificuldades no controle do uso do solo, e maneiras mais adequadas de abordagem da questão da irregularidade, com instrumentos e soluções técnicas alternativas e possibilidades novas, como o recurso ao Termo de Ajustamento de Conduta e os novos instrumentos decorrentes do Estatuto da Cidade, como o Usucapião Especial Urbano ou o Usucapião Coletivo.  

Decorrentes do conjunto dos trabalhos – de investigação e de projeto, uma série de produtos vão se consubstanciando, entre eles a identificação e sistematização de situações típicas e portanto evidenciando as verdadeiras questões.  

Tem-se trabalhado a partir de casos concretos, selecionados entre os procedimentos em fase de investigação pelo Ministério Público. Elabora-se para esses casos proposta de alternativas urbanísticas – incluindo infra estrutura, em nível de anteprojeto.  

O material produzido vai sendo consolidado à medida que alguns aspectos se mostram mais definitivos, permitindo assim, acúmulo e avanços. Esse material é constituído tanto por relatos e desenhos referentes a intervenções físicas visando qualificação ambiental quanto por trabalhos teóricos, conceituais, ou mesmo de interpretação e explicitação, que buscam inserir o tema dos assentamentos populares em áreas inadequadas, num contexto mais amplo, construindo nexos e desdobramentos.  

O objetivo específico do trabalho é desenvolver, a partir do estudo de casos concretos, a proposição de soluções urbanísticas para mitigar os prejuízos coletivos nas situações de irregularidade consolidada e de difícil reversão, melhorando as condições ambientais e permitindo alguma solução/ regularização jurídica. Procura também estabelecer restrições e exigências que facilitem o processo de fiscalização e desenvolver parâmetros que contribuam para a elaboração dos Planos de Bacia, conforme instituído pela Lei no 9.866/97 – Proteção e Recuperação das Bacias. 

Esses aspectos são fundamentais para a sustentação das adequações e qualificação propiciada pelas intervenções propostas. 

Como desdobramento natural do projeto deve-se avançar no desenvolvimento de diretrizes de preservação / ocupação e uso do solo para áreas ambientalmente sensíveis e de mananciais na grande São Paulo – e outros grandes centros, incorporando à sua concepção ambiental e urbanística critérios e formas de aplicação, fiscalização e controle, compatíveis com a cultura e as normas jurídicas nacionais e locais e a efetiva capacidade de gestão do poder público e articulação da população envolvida. 

PRODUÇÃO DE CONHECIMENTOS

No que tange à pesquisa, pela própria natureza de seus objetivos, o desenvolvimento aponta para três rumos principais de investigação: aspectos técnicos, aspectos jurídicos e aspectos de gestão. 

No que se refere a aspectos Técnicos atenta-se particularmente ao desafio de buscar alternativas de intervenção que viabilizem, em assentamentos consolidados de impossível adequação à legislação vigente, atingir-se uma condição de respeito ao “Espírito da Lei”, qual seja, a proteção aos mananciais e sua manutenção ao fim da intervenção.  

Para atender ao objetivo de garantir a qualidade da água dos mananciais, a legislação de proteção hoje vigente utiliza como instrumento restrições de uso e ocupação do solo: baixa densidade de ocupação, por meio de lotes obrigatoriamente grandes. Admitir a possibilidade de Reparação de Danos e Ajustamento de Conduta em condições de completa impossibilidade de adequação aos padrões da Lei implica em disponibilizar outras alternativas e instrumentos que assegurem atingir seus objetivos, ou seja, que permitam conseguir boa qualidade e adequada quantidade de água e ao mesmo tempo estabeleçam padrão de controle que garanta o estabelecido no Termo de Ajustamento. 

Nessa linha tem-se Investigado no meio técnico, propondo-se projetos de moradia que minimizem o comprometimento ambiental em áreas junto aos mananciais da cidade de São Paulo: tanto mitigar situações onde a ocupação inadequada é de remoção socialmente inviável, como desenvolver projetos e implantações alternativas que permitam simultaneamente moradia e preservação ambiental;  buscar, no caso de assentamentos consolidados, de moradia pobre, evitar a contaminação da água pelo esgoto doméstico, recorrendo a propostas de ação local, de baixo custo e baixo impacto. 

Em relação aos aspectos Jurídicos, o trabalho é voltado à investigação de elementos que incluem: levantamento e análise de inquéritos civis, procedimentos preparatórios e ações civis relativas a assentamentos irregulares em áreas de mananciais em curso nas Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo; antecedentes de regularização urbanística e/ou registrária desse tipo de loteamentos; termos de ajustamento de conduta celebrados e padrões de compensação ambiental que tenham sido aceitos. 

Quanto a aspectos de Gestão a pesquisa vai em duas direções: a primeira observa procedimentos adotados em órgãos institucionais, como Prefeituras, Secretaria do Meio Ambiente, Ministério Público e Conselhos Gestores de Bacia Hidrográfica quanto a regularização e ações de controle e fiscalização de loteamentos irregulares, particularmente nas áreas de proteção a mananciais; a segunda associa aspectos técnicos e de gestão, propondo o desenvolvimento de metodologia de análise de casos, estabelecimento de uma “tipologia” referencial e produção de parâmetros ou “modelos“ de orientações a assumir nos diferentes tipos de assentamentos e de irregularidades que se apresentam nas áreas de mananciais. Trata-se de caracterizar situações padrão e definir diretrizes de ajustamento que possam ser adotadas para formulação de Termos de Ajustamento de Conduta.  

EFETIVIDADE DA REGULARIZARIZAÇÃO 

Vislumbrando esse contexto fica evidente que nem tudo que é irregular é precário. No entanto todos os assentamentos precários são irregulares. A irregularidade normalmente é por não seguir a regulamentação, contendo padrões muito abaixo dos exigidos por Lei: declividade maior do que a permitida, lotes menores do que a área mínima, falta de áreas públicas, falta de infra-estrutura. Novo círculo vicioso se estabelece: o assentamento é irregular por estar abaixo do padrão estabelecido em Lei – portanto, para tornar-se regular, é necessário investir recursos – desapropriações, remoções e obras. No entanto, para obter financiamento é necessário que o assentamento seja regular: desde a propriedade da terra à aprovação do projeto e sua implantação. Conseqüentemente, se pereniza a irregularidade.  

As Zonas Especiais de Interesse Social, recorte no padrão urbanoutilizado pioneiramente em Recife, na década de 80, no ABC a partir de 90 e finalmente incorporadas ao Estatuto da Cidade a partir de 2001, constituem um tipo de alternativa, que visa garantir a permanência dos assentamentos populares existentes e reservar áreas ainda desocupadas para uso habitacional de baixa renda. 

O Estatuto da Cidade introduz diversos instrumentos e alternativas, cuja aplicação, no entanto não pode ser aleatória ou generalizada. É necessária uma coordenação sinérgica de vários fatores – o projeto de regularização exige uma concepção integrada e articulada de: projeto urbanístico; tecnologia e projeto de infraestrutura, solução de regularização urbanística (adequação, revisão de Leis, enquadramento como ZEIS), solução de regularização da propriedade (compra e venda, desapropriação, usucapião, usucapião coletivo, concessão especial simples desmembramento da gleba em lotes), solução de financiamento das obras, solução de manutenção (condomínio, cooperativa, responsabilidade do poder público). 

Os projetos já desenvolvidos no âmbito da pesquisa LabHab – CAO-UMA vão consolidando algumas conclusões: 

A experimentação e a prática fazem parte da construção teórica. O desenvolvimento de projetos e sua aplicabilidade são essenciais a essa construção. São diversas as proposições de desagravamento e de melhoria ambiental que vem sendo desenvolvidas enquanto projetos-piloto no âmbito desse Projeto de Pesquisa, que envolve pesquisa, ensino e extensão (4). Representam uma etapa do trabalho. É a partir dessas experiências que começa a ser possível precisar níveis de irregularidade, formas de intervenção e superação e caminhos para a regularização também nos campos jurídico e registrário.  

No tocante ao projeto urbanístico os estudos partem da análise da inserção do assentamento em relação à área urbana consolidada e localização das redes de infraestrutura. A avaliação é desenvolvida por micro-bacia, considerando o posicionamento e implantação do assentamento e a topografia. 

As propostas adotam o princípio de dificultar a expansão para áreas ainda não ocupadas, facilitando assim o processo de fiscalização, que é indispensável, tanto quanto a oferta de outras alternativas, por meio de programas habitacionais. Os projetos utilizam recursos técnicos simples e de baixo custo. A partir dos antecedentes, se procura avançar no sentido do detalhamento técnico e orçamento das obras.  

É importante no entanto ressaltar que a irregularidade do assentamento está normalmente associada não apenas à falta de renda das famílias mas à fragilidade de sua inserção social. Nesses termos, a sustentabilidade de qualquer processo de regularização passa não só pelo projeto e investimento, mas essencialmente pela promoção de inclusão social. Isso implica na necessidade de: sinergia das ações setoriais promovidas;

capilaridade da presença do estado (agentes de saúde / urbanos);

implementação de ações visíveis – identidade, qualidade urbana;

circulação transversal (cruzamento de vales, ligando perpendicularmente as vias radiais que constituem normalmente os únicos acessos aos bairros);

participação da comunidade; programas associados de  emprego e renda. 

Do ponto de vista da regularização, a maior dificuldade não é nas favelas, mas nos parcelamentos irregulares: enquanto na favela há maior continuidade da área ocupada e uniformidade (de tipologias, área de cada unidade e forma de posse, já que ninguém é proprietário da terra), nos parcelamentos há tamanhos diferentes de lotes, lotes com pequena ou grande ocupação, construções nos mais diversos estágios: de barracos improvisados às mais sólidas e acabadas, proprietários quites, compradores que interromperam o pagamento e ocupantes 

Face a esse conjunto de considerações, algumas propostas para viabilizar a regularização de assentamentos precários e garantir sua manutenção, podem ser elencadas:

-     Atribuir à área o caráter de ZEIS, sendo o perímetro aprovado em Lei;

-     Envolvimento da comunidade, por meio de conselho de ZEIS, montado desde o início do projeto;

-     Considerar a área como capaz de receber financiamento mesmo antes da regularização formal, bastando o “Projeto de Regularização” e a assinatura de um termo de responsabilidade por parte dos interessados, superando assim, o impedimento da contratação de financiamento.

-     O Projeto de Regularização, específico para a ZEIS passa a constituir-se na regra para aquele lugar – a  “convenção do bairro”. 

O tema, complexo e de raízes estruturais, envolve diversos aspectos em que, no conhecimento acumulado e disponível na sociedade e no meio acadêmico, as “noções” são muitas e as certezas muito poucas – e as práticas são reconhecidamente insatisfatórias. A pesquisa, “Reparação de Danos e Ajustamento de Conduta em Matéria Urbanística”,  desenvolvida em parceria, representa importante espaço de reflexão e elaboração mas deve ser compreendida como apenas parte de um processo muito mais abrangente, que é lento, de construção de novas maneiras de enfocar o problema do assentamento em grandes cidades, o que envolve concepções de urbanismo, soluções técnicas, corpo jurídico, formação de profissionais, estrutura administrativa e gestão, provisão de recursos, adequação dos formatos de financiamento. 

NOTAS 

(1) IBGE, Estatísticas de população. Censo Demográfico 2000 – Resultados do Universo. População residente, por situação do domicílio – Brasil. Pop total; 169.799.170; Pop Urbana: 137.953.959 – 81,24%. Página Web, 10/09/2003 

(2) Ministério das Cidades. O ambiente da desigualdade. Texto subsídio à Conferência das Cidades. 2003. Página Web, 25/08/2003 

(3) IBGE, Estatísticas de população. Dados Históricos dos Censos. População residente, por situação do domicílio – 1940-1996. População Urbana: 1940: 31,23%; 1970: 55,92%. Página Web, 10/09/2003 

(4) Projeto “Reparação de Danos e Ajustamento de Conduta em Matéria Urbanística”, apoiado pelo Programa de Pesquisas em Política Públicas da FAPESP. Os trabalhos se desenvolvem a partir de loteamentos irregulares que tenham processo no Ministério Público, identificados como casos paradigmáticos. A partir deles se desenvolve a pesquisa e também uma disciplina optativa de ateliê. Nessa disciplina, se envolvem professores, alunos, promotores públicos, representantes das prefeituras e profissionais convidados, para aprofundar conhecimentos sobre as áreas e sobre o contexto jurídico e institucional, cabendo aos alunos, orientados pela equipe de professores desenvolver análises e projetos, com propostas de alternativas para regularização jurídica e urbanística dos assentamentos.

Os diversos casos já estudados ou em estudo situam-se nos Municípios de Santo André, São Bernardo e Diadema (na Bacia Billings) e Embu (na Bacia Guarapiranga).

No que se refere à pesquisa, mais propriamente, o desenvolvimento dos trabalhos inclui diversos níveis de envolvimento e participação, que se consubstanciam em: atividades regulares da equipe mais ampla: a equipe completa constitui-se de mais de 20 pessoas, incluindo: Pesquisadores, Equipe Parceira (Promotores de Justiça do Caouma), Promotores de Justiça dos Municípios de Diadema, Embu, Santo André e São Bernardo, técnicos das áreas de Habitação e Meio Ambiente dos referidos Municípios, Bolsistas do Projeto (FAPESP e PIBIC), Bolsista Programa PAE-USP, Estudantes com Trabalho Final de Graduação no tema. 

* Maria Lucia Refinetti Martins é professora - Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos FAU-USP – Departamento de Projeto



Últimos boletins



Ver todas as edições