BE2379

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Constitucional. Argüição de descumprimento de preceito fundamental – constitucionalidade. Decisão judicial administrativa. Concurso – notários e registradores. Provimento Conselho Superior da Magistratura de São Paulo 612/98.


DECISÃO: Trata-se de argüição de descumprimento de preceito fundamental ajuizada pela Associação dos Notários e Registradores do Brasil - ANOREG/BR contra o Provimento nº 612/98 do Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo, que estabeleceu as regras para a realização dos concursos para a outorga de delegações de notas e de registro do Estado de São Paulo.

O argumento principal da Autora é de que o Provimento nº 612/98, ao exigir concurso de provas e títulos também para a remoção contrasta com a Lei nº 8.935/94, que no seu art. 16 (a partir da redação dada pela Lei nº 10.506/2002), afirma que uma terça parte das vagas serão preenchidas por meio de remoção, mediante concurso de títulos. Afirma afronta ao art. 2º, da Constituição Federal, sustentando que(...) O Conselho Superior da Magistratura, ao editar o Provimento 612/98, legislou a respeito da matéria ( concurso público para outorga de delegações de notas e registros) extrapolando suas atribuições. Para justificar o esforço legiferante, buscou o rgão do Poder Judiciário de São Paulo, insinuar a supremacia do dispositivo constitucional que esclarece que uma serventia não pode permanecer vaga por mais de seis meses”. (fl. 6).

Ao contrário do que se verifica em outras ordens constitucionais, que limitam, muitas vezes, orecurso constitucional aos casos de afronta aos direitos fundamentais, optou o constituinte brasileiro por admitir o cabimento do recurso extraordinário contra qualquer decisão que, em única ou última instância, contrarie a Constituição.

Portanto, a admissibilidade do recurso constitucional não está limitada, em tese, a determinados parâmetros constitucionais, como é o caso daVerfassungsbeschwerde na Alemanha (Lei Fundamental, art. 93, n. 4a), destinada, basicamente, à defesa dos direitos fundamentais.

Assinale-se, porém, que, mesmo nos sistemas que admitem o recurso constitucional apenas com base na alegação de ofensa aos direitos fundamentais, surgem mecanismos ou técnicas que acabam por estabelecer uma ponte entre os direitos fundamentais e todo o sistema constitucional, reconhecendo-se que a lei ou ato normativo que afronta determinada disposição do direito constitucional objetivo ofende,ipso jure, os direitos individuais, seja no que se refere à liberdade de ação, seja no que diz respeito ao princípio da reserva legal.

A Corte Constitucional alemã apreciou pela primeira vez a questão no chamadoElfes-Urteil, de 16.1.1957, deixando assente que uma norma jurídica lesa a liberdade de ação (Handlungsfreiheit) se contraria disposições ou princípios constitucionais, tanto no que se refere ao aspecto formal quanto no que diz respeito ao aspecto material (BverfGE 6, 32 (36 s.; 41)).

No referido julgado explicitou a corte Constitucional alemã orientação que seria repetida e aperfeiçoada em decisões posteriores: “De tudo o que se afirmou, resulta que uma norma jurídica somente pode restringir, eficazmente, o âmbito da liberdade individual (allgemeine Handlungsfreiheit) se corresponder às exigências estabelecidas pela ordem constitucional. Do prisma processual, significa dizer: todos podem sustentar, na via do recurso constitucional, que uma lei que estabelece restrição à liberdade individual não integra a ordem constitucional, porque afronta, formal ou materialmente, disposições ou princípios constitucionais; (...)” (LF, art. 2, I). (BverfGE 6,32 (33)).

Tal como assinalado, essa decisão permitiu que oBundesverfassungsgericht apreciasse, na via excepcional daVerfassungsbeschwerde (recurso constitucional), a alegação de afronta não apenas aos direitos fundamentais, mas a qualquer norma ou princípio constitucional.

É que, como observa Hans-Jürgen Papier, qualquer inconstitucionalidade de lei restritiva de direito configura, também, afronta aos direitos fundamentais: “O significado dos direitos fundamentais nos termos da Lei Fundamental não se limita mais exclusivamente a garantir a legalidade (Gesetzmässigkeit) das restrições impostas à liberdade individual pelo Executivo e pelo Judiciário. Mediante a vinculação do Poder Legislativo aos direitos fundamentais não se suprime, mas se reforça e se completa a função de proteção dos direitos fundamentais. Administração e Justiça necessitam para a intervenção nos direitos fundamentais de uma dupla autorização: Além da autorização legal (gesetzliche Ermächtigung) para a intervenção, deve-se exigir também uma autorização constitucional para a limitação dos direitos fundamentais. Se os direitos fundamentais da Lei Fundamental não se exaurem na legalidade do segundo e do terceiro Poder, surge, ao lado da reserva legal, a idéia de uma reserva da Constituição. Então afigura-se lícito admitir que, de uma perspectiva jurídico-material, os direitos fundamentais protegem contra restrições ilegais ou contra limitações sem fundamento legal levadas a efeito pelo Poder Executivo ou pelo Poder Judiciário. A legalidade da restrição ao direito de liberdade é uma condição de sua constitucionalidade; a violação à lei constitui uma afronta aos próprios direitos fundamentais (Die Gesetzmässigkeit des Freiheitseingriffs ist eine Bedingungseiner Verfassunmässigkeit, sein Gesetzesverstoss ist auf ieden Fall Grundrecht, svestoss). (PAPIER, Hans-Jürgen.Spezifisches Verfassungsrecht” und `Einfaches Recht als Argumentationsformal des Bundesverfassungsgerichts”,  in  Bundesverfassungsgericht un Gundgesetz, Tübingen, 1976, vol. I, p. 432 (433-434)).

Tenho sustentado, doutrinariamente, com apoio em Klaus Schlaich, que também a incompatibilidade entre as normas regulamentares e a lei formal pode ensejar a interposição de recurso constitucional sob alegação de afronta a um direito geral de liberdade (Schlaich,Das Bundesverfassungsgericht, 1997, p. 108).

Tal como enunciado por Christian Pestalozza (Verfassungsprozessrecht, 2 a ed., Munique, 1982, pp. 105-106), configuram-se hipóteses de afronta ao direito geral de liberdade (Lei Fundamental alemã, art. 2 o, I), ou a outra garantia constitucional expressa: a) a não-observância pelo regulamento dos limites estabelecidos em lei (Lei Fundamental, art. 80, I); b) a lei promulgada com inobservância das regras constitucionais de competência; c) a lei que estabelece restrições incompatíveis com o princípio da proporcionalidade (BVerfGE 38/288 (298).

Embora essa orientação pudesse suscitar alguma dúvida, especialmente no que se refere à conversão da relação lei/regulamento numa questão constitucional, é certo que tal entendimento parece ser o único adequado a evitar a flexibilização do princípio da legalidade, tanto sob a forma de postulado da supremacia da lei quanto sob a modalidade de princípio da reserva legal. Do contrário, restaria praticamente esvaziado o significado do princípio da legalidade, enquanto princípio constitucional em relação à atividade regulamentar do Executivo.

De fato, a Corte Constitucional estaria impedida de conhecer de eventual alegação de afronta, sob o argumento da falta uma ofensa direta à Constituição. Especialmente no que diz respeito aos direitos individuais, não há como deixar de reconhecer quea legalidade da restrição aos direitos de liberdade é uma condição de sua constitucionalidade. Não há dúvida, igualmente, de que esse entendimento aplica-se ao nosso modelo constitucional, que consagra não apenas a legalidade como princípio fundamental (art. 5 o, II), mas exige também que os regulamentos observem os limites estabelecidos pela lei (CF, art. 84, IV).

A matéria suscita, porém, um debate especial em torno da aplicação do princípio da legalidade no contexto da jurisdição constitucional, encetando discussão sobre se a verificação da legalidade constitui, ou não, matéria própria de controle de constitucionalidade. Nesse contexto, oportunas as lições de Kelsen:

(...)A jurisdição constitucional, enquanto controle de atos administrativos, significa uma jurisdição administrativa especial, diferenciando-se da jurisdição administrativa geral apenas porque controla exatamente a constitucionalidade do ato, e não sua simples conformidade lei. Nesse sentido, o controle da legalidade de decretos também é um ato de jurisdição administrativa, pois por um lado o decreto vale tradicionalmente como ato de administração, e por outro lado apenas a conformidade desse ato lei - isto é, sua legalidade - está sujeita ao controle, e não diretamente a sua constitucionalidade. Decerto que o princípio da legalidade de todo decreto está, via de regra, estabelecido por lei constitucional formal, o que também acontece freqüentemente com relação a todo ato executivo. Assim, toda ilegalidade de um ato administrativo seria indiretamente também uma inconstitucionalidade. O limite teórico-jurídico entre jurisdição constitucional e jurisdição administrativa resulta, portanto, apenas na diferença entre constitucionalidade direta e indireta.”(Kelsen, Jurisdição Constitucional, Trad. Alexandre Krug, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 19)

E continua Kelsen:

A divisão de competências que a Constituição austríaca estabeleceu entre a Corte Constitucional e a Corte Administrativa corresponde diferenciação exposta acima, na medida em que o controle de constitucionalidade de leis e atos administrativos individuais - estes últimos desde que sejam determinados diretamente pela Constituição. A divisão de competências que a Constituição austríaca estabeleceu entre a Corte Constitucional e a Corte Administrativa corresponde diferenciação exposta acima, na medida em que o controle de constitucionalidade de leis e atos administrativos individuais - estes últimos desde que sejam determinados diretamente pela Constituição - está confiado Corte Constitucional. Dentro da competência desse rgão, contudo, incluem-se também aquelas matérias sobre as quais ele decide como Corte Administrativa, na medida em que precisa meramente verificar a legalidade de atos administrativos. Isso vale particularmente para a alçada da Corte Constitucional quanto ao controle de decretos, emitidos geralmente com base em leis ordinárias e só excepcionalmente com base na Constituição ou em leis constitucionais especiais. Neste último caso, evidentemente, o controle de decretos significa jurisdição constitucional ”. (Kelsen, Jurisdição Constitucional, Trad. Alexandre Krug, São Paulo, Martins Fontes, 2003, p. 19-20)

O princípio da legalidade, entendido aqui tanto como princípio da supremacia ou da preeminência da lei (Vorrang des Gesetzes), quanto como princípio da reserva legal (Vorbehalt des Gesetzes), contém limites não só para o Legislativo, mas também para o Poder Executivo e para o Poder Judiciário.

A idéia de supremacia da Constituição, por outro lado, impõe que os órgãos aplicadores do direito não façamtabula rasa  das normas constitucionais, ainda quando estiverem ocupados com a aplicação do direito ordinário. Daí porque se cogita, muitas vezes, sobre a necessidade de utilização da interpretação sistemática sob a modalidade da interpretação conforme à Constituição.

Uma primeira questão refere-se, v.g., ao cabimento de recurso extraordinário contra decisões proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça e pelos demais tribunais nas hipóteses em que se discute a legitimidade de aplicação de norma regulamentar (reserva legal).

É de se perguntar se, nesses casos, tem-se simplesquestão legal, insuscetível de ser apreciada na via excepcional do recurso extraordinário, ou se o tema pode ter contornos constitucionais e merece, por isso, ser examinado pelo Supremo Tribunal Federal.

Ainda nessa linha de reflexão poder-se-ia questionar se a decisão judicial que se ressente de falta de fundamento legal poderia ser considerada contrária à Constituição para os efeitos do art. 102, III,a, da Constituição.

Na mesma linha de raciocínio seria, igualmente, lícito perguntar se a aplicação errônea ou equivocada do direito ordinário poderia dar ensejo a recurso extraordinário.

A resposta a estas questões tem repercussão sobre os limites da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Registre-se, por fim, que se tem ampliado a própria concepção sobre o que seja matéria constitucional, para fins de abarcar na competência da jurisdição constitucional situações de flagrante desrespeito à Constituição (Nesse sentido cfr: RE-Agr-395662, 2aTurma, DJ 11/05/05).

Assim, não há óbice para que se analise, em condições especiais, a constitucionalidade de atos regulamentares em face da Constituição, pois a questão constitucional, muitas vezes, é posta de forma tal que se afigura possível a ofensa aos postulados da legalidade e da independência e separação de poderes, os quais merecem proteção da Corte Suprema.

Todavia, o tema revela-se complexo, especialmente em face dos limites - ainda não precisamente definidos - da Argüição de Descumprimento de Preceito Fundamental.

Por outro lado, é possível que, nesse contexto, a concessão da liminar acabe por trazer maiores prejuízos a todo o sistema jurídico institucional. Se, porventura, o Tribunal entender procedente a pretensão da Requerente, a decisão haverá de repercutir sobre o certame realizado.

Assim, ressalvando oportunidade de melhor juízo quando da apreciação do mérito,indefiro o pedido de liminar.

Publique-se.
Brasília, 31 de março de 2006.

MinistroGILMAR MENDES, Relator
Fonte: Argüição de descumprimento de preceito fundamental n.87, Supremo Tribunal Federal. Decisão de 31/3/2006).



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