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Por uma Política e um Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável: uma proposta inicial para consulta e ampla discussão - Edésio Fernandes*


1- Justificativa

O modelo de desenvolvimento e expansão que comandou nossa urbanização acelerada, produziu cidades fortemente marcadas pela presença das chamadas “periferias” e “favelas”. Dezenas de milhões de brasileiros não têm tido acesso ao solo urbano e à moradia senão através de processos e mecanismos informais - e freqüentemente ilegais -, autoconstruindo um habitat precário, vulnerável e inseguro. Favelas, loteamentos e conjuntos habitacionais irregulares, loteamentos clandestinos, cortiços, casas de fundo, ocupações de áreas públicas, nas encostas e beiras de rios – essas têm sido as principais formas de habitação produzidas diariamente nas cidades brasileiras, pela maior parte de nossos moradores urbanos.

Apesar da forte ligação que se estabelece entre o fenômeno e as grandes cidades (realmente, mais de 97% das cidades com mais de 500 mil habitantes têm favelas), a precariedade e ilegalidade da maior parte de nosso território estão hoje presentes em cidades de todos os tamanhos e todas as regiões do país. De acordo com pesquisa do IBGE (2000), as favelas estão presentes também em 80% de nossas cidades médias entre 100 e 500 mil habitantes, e em 45% daquelas entre 20 e 100 mil habitantes. Os assentamentos irregulares ou ilegais estão presentes até em pequenas cidades – 36% das cidades com menos de 20 mil habitantes têm loteamentos irregulares e 20% têm favelas.

O assunto vem à tona quando barracos desabam diante de chuvas intensas de verão ou nas intermináveis cenas de violência urbana, que são apresentadas na mídia invariavelmente associadas a estes cenários urbanos precários e inacabados. O assunto aparece também quando eclodem crises ambientais – como o comprometimento de áreas de recarga de mananciais em função de “ocupação desordenada”. Entretanto, nossos olhos e nossas almas já se acostumaram a este modelo: parece “natural” que nossas cidades tenham um “centro” – lugar com infraestrutura completa onde se concentram o comércio, os serviços, os equipamentos culturais, e onde todas as residências de nossa diminuta classe média têm escritura devidamente registrada em cartório -, e uma “periferia” feita exclusivamente de moradias de pobres, precárias e desprovidas de oportunidades, eternamente inacabada e cujos habitantes raramente têm escrituras ou registros de propriedade.

Nesses momentos em que o assunto vem à tona, aparecem as análises que culpam o Estado por não ter planejado, por não ter política habitacional, ou mesmo por ter “se ausentado”. Não é bem isto que observamos em nossa história recente. Na verdade, assim como nossas cidades são partidas entre territórios formais e informais, a intervenção do Estado nessas duas porções tem sido bastante diversa. As áreas “de mercado” são legisladas e reguladas através de um vasto sistema de normas, contratos e leis, que têm quase sempre como base a propriedade escriturada e registrada, desde o acesso ao crédito até o habite-se final de um empreendimento. Desta forma, os terrenos que, de acordo com a lei, são aptos para urbanizar, assim como os financiamentos que a política habitacional praticada no país disponibilizou, ficam reservados para o diminuto círculo dos que têm acesso à propriedade urbana legal.

Para os mercados informais e irregulares, sobram as terras que a legislação urbanística e ambiental não disponibilizou para o mercado formal: áreas de preservação, áreas públicas, zonas rurais, áreas non-aedificandi, parcelamentos irregulares, etc. Invisíveis para o planejamento e para a legislação – nem sequer se sabe quantas famílias neste país vivem em assentamentos irregulares – as periferias e favelas são permanentemente investidas pela gestão política das cidades. De fato, o processo de consolidação das periferias e favelas do país está há décadas sendo objeto de microinvestimentos em pequenas doses de infraestrutura. A ambigüidade de sua condição jurídica e urbanística torna as comunidades que ali vivem especialmente vulneráveis a políticas clientelistas.

Por todas estas razões, a informalidade da produção do habitat entre os grupos mais pobres precisa ser urgentemente enfrentada, dadas as graves conseqüências socioeconômicas, urbanísticas, ambientais e políticas desse fenômeno diretamente para os moradores dos assentamentos informais, mas também para as cidades e para a população urbana como um todo.

2 - Por uma Política Nacional sobre Regularização Fundiária

Reconhecendo a dimensão, a gravidade e as implicações dos processos de desenvolvimento urbano informal, o Governo Federal deve pela primeira vez formular uma política nacional sobre a questão, especialmente visando a orientar os programas específicos de regularização dos assentamentos já consolidados.

2.1 Natureza da Política Nacional

De imediato, deve-se dizer que qualquer iniciativa do Governo Federal tem necessariamente de levar em conta a distribuição de competências jurídico-políticas estabelecidas pela Constituição Federal de 1988 e pelo Estatuto da Cidade sobre a questão, de forma a formular uma política condizente com a ordem jurídica em vigor e com os processos sócio-políticos já construídos no Brasil.

Nesse contexto, o Governo Federal deve reconhecer o papel central dos Municípios no enfrentamento dos problemas decorrentes dos processos de desenvolvimento informal e na formulação e implementação dos programas de regularização fundiária dos assentamentos informais em áreas urbanas.

A ação do Governo Federal, portanto, deve ter o sentido de apoiar, complementar e/ou suplementar a ação dos governos municipais, intervindo de forma mais direta – mas sempre em parceria com os Municípios - apenas nos casos em que os assentamentos a serem regularizados estejam situados em terras de propriedade da União, e que se enquadrem nos critérios da Medida Provisória no. 2.220, de 2001 (Concessão Especial de Uso para Fins de Moradia).

Trata-se certamente de um papel da maior importância, especialmente porque se precisa urgentemente de criar uma frente ampla e integrada de ação intra- e intergovernamental, bem como de diversas formas de parcerias entre o estado e a sociedade civil, frente essa cuja formação o Governo Federal tem melhores condições de promover e liderar.

2.2 - Pressupostos da Política Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável

O recém-criado Ministério das Cidades deve coordenar um amplo processo de discussão das bases dessa “Política Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável”, partindo dos seguintes pressupostos:

O reconhecimento do direito à moradia e à segurança da posse como direitos humanos fundamentais, de acordo com a Constituição Brasileira e nos termos da Campanha Global da ONU pela Segurança da Posse executada por UN-Habitat;

o acesso à terra urbana como efeito jurídico do princípio constitucional da função social e ambiental da propriedade (tanto privada quanto pública) e da cidade;

a supremacia do Direito Público sobre o Direito Privado na regulação da ordem urbanística e na interpretação e aplicação do Estatuto da Cidade;

a compreensão da natureza curativa dos programas de regularização, que devem ser implementados em um contexto amplo de políticas públicas em todas as esferas governamentais, com ênfase na produção de opções de moradia social, no manejo do uso e ocupação do solo urbano e em políticas fiscais e extrafiscais, sempre nos termos do Estatuto da Cidade, visando a quebrar o ciclo perverso que tem produzido a informalidade e a prevenir a produção irregular das cidades;

a necessidade de conciliação entre a regularização urbanística e ambiental com a regularização jurídica; e

a necessidade de contribuir para a renovação dos processos de mobilização social em torno da discussão acerca do desenvolvimento urbano informal, especialmente pelo reconhecimento da participação popular efetiva em todas as etapas dos processos de regularização.

2.3 Objetivos gerais da Política Nacional

Os objetivos gerais dessa Política Nacional devem ser:

apoiar os Municípios na implementação do Estatuto da Cidade, com ênfase nos novos instrumentos de regularização fundiária indicados no Estatuto da Cidade e na ampliação do acesso, por parte da população de menor renda, à terra urbanizada;

promover a integração, em todos os níveis de governo, de programas de regularização (combinando urbanização e legalização) com políticas includentes de planejamento urbano e estratégias democráticas de gestão urbana;

promover o reconhecimento de maneira integrada dos direitos sociais e constitucionais de moradia e preservação ambiental, qualidade de vida humana e preservação de recursos naturais.

2.4 Objetivos específicos da política Nacional

Os objetivos específicos da Política Nacional devem ser:

promover o reconhecimento dos novos direitos (especialmente usucapião e concessão de direito real de uso) e sua plena utilização, enfatizando que são novas formas de direitos reais de propriedade, priorizando soluções coletivas a problemas que são essencialmente coletivos;

buscar a remoção dos obstáculos da legislação federal fundiária, cartorária, urbanística e ambiental;

criar condições para o reconhecimento dos títulos representativos dos novos direitos acima mencionados pelas agências de crédito públicas e privadas;

incentivar formas de parcerias com a sociedade civil, promovendo ampla participação popular em todas as etapas das intervenções de regularização fundiária.

3 - Por um Programa Nacional de Apoio a Regularização Fundiária Sustentável

Com base em tais pressupostos e objetivos, o Ministério das Cidades deve discutir os termos de um “Programa Nacional de Apoio à Regularização Fundiária Sustentável”, buscando especialmente promover a necessária compatibilização entre objetivos, princípios, mecanismos, processos e recursos.

O “Programa de Apoio” deve ser estruturado em torno de quatro estratégias principais fundamentalmente integradas, quais sejam, estratégias de apoio jurídico, financeiro, urbanístico e administrativo/institucional.

3.1 Estratégia de apoio jurídico

A estratégia de apoio jurídico deve buscar:

discutir a necessidade de revisão da legislação federal em alguma medida;

promover aproximação, diálogo, informação e sensibilização de atores fundamentais como Juízes e Corregedores, Ministério Público, OAB e Faculdades de Direito, Registradores Públicos, etc., visando ao reconhecimento dos novos direitos coletivos consolidados pelo Estatuto da Cidade e a viabilizar o registro imobiliário dos mesmos;

difundir uma nova cultura jurídica baseada no princípio da função social e ambiental da propriedade e da cidade.

3.2 Estratégia de apoio financeiro

A estratégia de apoio financeiro deve visar principalmente a:

identificar e centralizar recursos de programas existentes no âmbito do Governo Federal;

captar recursos da iniciativa privada;

captar recursos de agências internacionais de financiamento e cooperação.

3.3 Estratégia de apoio urbanístico

A estratégia de apoio urbanístico deve buscar sobretudo aproximação, diálogo, informação e sensibilização de atores como CONFEA, CREAs, IABs, FNA, FISENGE, Faculdades de Arquitetura e Urbanismo, Faculdades de Engenharia, Faculdades de Geografia, Associação Nacional de Geógrafos e outras entidades profissionais, para:

prestação de assistência técnica a custos mais baixos;

enfrentamento dos problemas decorrentes da ocupação de áreas de risco e outras áreas de valor ambiental.

3.4 Estratégia de apoio administrativo/institucional

Finalmente, a estratégia de apoio administrativo/institucional deve propor a construção das bases de um diálogo permanente com as Prefeituras, visando a:

disseminar o uso democrático dos processos e instrumentos do planejamento, tais como as ZEIS - zonas especiais de interesse social, para minimizar a pressão do mercado imobiliário e garantir a permanência dos ocupantes nas áreas regularizadas;

apoiar a revisão das regulações urbanísticas municipais e dos parâmetros construtivos nas ZEIS; montar um Banco de Experiências municipais de regularização fundiária;

e promover troca de informações União/ Município, visando subsidiar processos de tomada de decisão.

3.5 Ação em terrenos ocupados de propriedade da União Federal

De imediato, a Secretaria de Programas Urbanos do Ministério das Cidades deve promover uma integração interministerial para facilitar a regularização urbanística, jurídica e social em terras da União, com base na MP 2.220, de 2001, para o que será necessário realizar o cadastramento do patrimônio da União.

3.6 Apoio a Municípios

Da mesma forma, a Secretaria deve buscar prestar apoio técnico e financeiro para:

realização de cadastros municipais para identificação, mapeamento e cadastramento das irregularidades urbanas;

assistência técnica e jurídica aos Municípios para montagem e/ou aperfeiçoamento de programas municipais de regularização fundiária;

formação de uma rede de parceiros de para prestação de apoio técnico, jurídico e social aos Municípios nas ações de regularização fundiária;

a criação de um sistema de informação que possa identificar regimes de posse;

analisar e revisar políticas, no sentido de provê-las, acompanha-las e avaliá-las;

e a divulgação junto aos Municípios e à sociedade das ações do Ministério das Cidades e do escopo dos programas disponíveis, fontes de recursos existentes e da rede de assistência técnica.

3.7 Outras linhas de ação

Outras possíveis linhas de ação a serem perseguidas pela Secretaria devem incluir:

discutir a possibilidade de regularização urbanística, jurídica e social em terras da União, com base na MP 2.220/01, bem como remover, sempre que possível, os obstáculos à regularização de assentamentos informais em terrenos de marinha;

formação de parcerias para discutir a regularização urbanística, jurídica e social em próprios municipais e estaduais e propriedades privadas, com base no Estatuto da Cidade;

realizar o cadastramento do patrimônio da União, com ênfase nas áreas afetadas pela MP 2.220/01;

apoio técnico e financeiro para realização de cadastros municipais para identificação, mapeamento e cadastramento das irregularidades urbanas;

assistência técnica e jurídica aos municípios para montagem e/ou aperfeiçoamento de programas municipais de regularização fundiária;

formação de uma rede de parceiros de para prestação de apoio técnico, jurídico e social aos municípios nas ações de regularização fundiária;

sistema de Informação que possam identificar regimes de posse; analisar e revisar políticas, no sentido de provê-las, acompanha-las e avalia-las;

divulgação junto aos municípios e à sociedade das ações do ministério e do escopo dos programas disponíveis, fontes de recursos existentes e da rede de assistência técnica.

3.6 Recursos

Recursos devem ser buscados no Orçamento Geral da União e em programas já existentes, como Programa de Subsídio para Habitação e Habitar Brasil BID, e discussões devem promovidas com outras possíveis fontes tais como o Banco Mundial, Cities Alliance, agências de cooperação de governos estrangeiros, ONGs internacionais, Lincoln Institute of Land Policy, UN-HABITAT e UNDP.

Prioridade deve ser dada a:

Municípios com ações de regularização urbanística e fundiária já iniciada e contando com recursos do Governo Federal;

Municípios com ocupações identificadas em terras da União;

Municípios selecionados para o Programa Fome Zero.

4 - Conclusão

O desafio é gigantesco, os problemas são muitos, as dificuldades enormes e os recursos esparsos, mas também são muitas as idéias e é enorme a energia do novo Ministério das Cidades.

Uma boa mobilização intergovernamental e social deve ser estimulada em torno da Política Nacional, de forma a legitimar o desenho conceitual do Programa de Apoio e para promover a construção das bases sóciopolíticas e jurídico-institucionais de sua materialização.

* Jurista e urbanista: Consultor da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades. Este texto é o resultado de uma revisão de uma proposta preliminar elaborada pelo autor, e que foi devidamente discutida por diversos membros da equipe da Secretaria de Programas Urbanos e de outros departamentos do ministério das Cidades, bem como por uma equipe interministerial; as sugestões e os comentários resultantes dessas discussões incorporados no presente texto.



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