O SREI - o Projeto Original do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e o ONR


Hoje gostaria de relembrar algumas passagens muito importantes que marcaram a trajetória do desenvolvimento tecnológico do Registro de Imóveis brasileiro.

Como sabem, sou um entusiasta do assunto. Há pelo menos vinte anos venho me dedicando a ele, produzindo textos e reflexões que se acham registrados nos anais da categoria e nos canais do próprio IRIB [1].

Dentre as várias passagens, a que mais reputo importante foi o trabalho desenvolvido no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) na modernização do Registro de Imóveis brasileiro.

Tive a honra de participar, juntamente com o colega Flauzilino Araújo dos Santos, como membro efetivo, do Grupo de Trabalho constituído para o planejamento e execução de ações necessárias à modernização dos Registros de Imóveis do Pará [2].

O CNJ havia institucionalizado o Fórum de Assuntos Fundiários (Resolução CNJ 110/2010), constituído para “o estudo, a regulação, a organização, a modernização e o monitoramento da atividade dos cartórios de Registro de Imóveis de questões relacionadas à ocupação do solo rural e urbano, inclusive a proposição de medidas e de normatização da atividade de registro sujeita à fiscalização do Poder Judiciário, sempre que isso se fizer necessário ao aprimoramento dos serviços para assegurar a segurança jurídica” [3].

Todos os esforços convergiam para a necessidade de modernização dos serviços registrais da Amazônia Legal. 

O mesmo Egrégio Conselho, em abril de 2011, instituiria o Projeto de Modernização dos Cartórios de Imóveis da Amazônia Legal, projeto-piloto de concretização do SREI, que tinha por objetivo a “modernização dos processos dos cartórios de registro de imóveis da Amazônia Legal, abrangendo todo o ciclo, desde o ingresso do título até a manutenção e guarda permanente das informações, com a utilização de processos exclusivamente eletrônicos, a ser utilizado pelos vários cartórios da região, visando garantir a segurança, padronização e confiabilidade do registro de imóveis, com intercâmbio de informações para identificação de situações jurisdicionalmente relevantes”. Para o desenvolvimento de todas as etapas do projeto foram alocados recursos públicos [4].

No seu desenvolvimento foi contratado o LSITec – Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológico, instituição de renome internacional, ligada à Escola Politécnica da USP – Universidade de São Paulo, para elaborar o SREI – Sistema de Registro de Imóveis eletrônico. E isso foi feito, com sucessivas e exaustivas reuniões técnicas, das quais participamos ativamente.

Nascia, ali, no ano de 2012, o projeto SREI – Sistema de Registro de Imóveis eletrônico, patrocinado pelo Conselho Nacional de Justiça.

Toda a documentação técnica, que serviria de base para definição de regras gerais para a informatização dos cartórios de Registro de Imóveis do país, foi recebida e assimilada pela Corregedoria Nacional de Justiça, órgão do CNJ que, por meio da Recomendação 14/2014 de 2/7/2014 (DJ 7/7/2014), a definiu como padrão e a recomendou para as corregedorias de todos os estados [5].

Nessa altura, o projeto já não se limitava única e exclusivamente à Amazônia Legal, mas irradiava-se e alcançava todo o sistema registral brasileiro. Vale a reprodução do art. 1º:

“Art. 1° Recomendar às Corregedorias Gerais da Justiça que na regulamentação ou na autorização de adoção de sistema de registro eletrônico por responsável por delegação de Registro de Imóveis, inclusive quando prestados com uso de centrais eletrônicas, sejam adotados os parâmetros e requisitos constantes do modelo de sistema digital para implantação de Sistemas de Registro de Imóveis Eletrônico – SREI elaborado pela Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos – LSI-TEC em cumprimento ao contrato CNJ n° 01/2011”.

Baixada a sobredita Recomendação 14/2014, oficiou-se às corregedorias estaduais e às “associações de classe dos Oficiais de Registro de Imóveis”, para que fossem “adotados os parâmetros e requisitos constantes do modelo de sistema digital para implantação de Sistemas de Registro de Imóveis Eletrônico – S-REI elaborado pela Associação do Laboratório de Sistemas Integráveis Tecnológicos – LSI-TEC” (arts. 1º e 2º).

Contudo, como sabemos, somente uma fração do sistema foi colocado em prática, remanescendo pendente de implementação o núcleo do SREI, que é a reestruturação do próprio sistema registral em bases inteiramente eletrônicas.

ONR nasce inspirado pelo CNJ

 O ONR – Operador Nacional do Registro de Imóveis eletrônico nasce inspirado pelas linhas gerais traçadas pelo próprio CNJ. Esse fato torna-se nítido ao destacarmos seus elementos essenciais, que se acham indicados no documento de base – SREI Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário Parte 1 Introdução ao Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário, de lavra de Volnys Bernal e Adriana Unger, cientistas da LSITEC [6]:

a) Regularização fundiária. O SREI foi desenvolvido sob a égide da Lei 11.977/2009 para dar suporte aos processos de regularização fundiária (item 1, p. 4) e servir de base para a modernização do sistema registral pátrio.

b) Central Nacional. O documento, aprovado pelo CNJ, é claro: o “SREI foi concebido de forma que a sociedade enxergue a serventia de registro de imóveis como sendo um serviço único, porém operado de forma distribuída pelos diversos cartórios. A obrigatoriedade do oferecimento de serviços eletrônicos advinda da Lei nº 11.977/2009 e a popularização do acesso à Internet abre a oportunidade de estabelecimento de um ponto de contato para o oferecimento de serviços eletrônicos imobiliários” (item 3.2, p. 14).

c) Centrais Estaduais. As centrais estaduais foram antevistas no art. 1º da Recomendação 14/2014 como elemento acessório e de suporte do SREI. Ali se autorizava a adoção do “sistema de registro eletrônico por responsável por delegação de Registro de Imóveis, inclusive quando prestados com uso de centrais eletrônicas” (itens 3.4.1 e 3.4.2, p. 18).

d) SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado [7], que visa a disponibilizar “um ponto único de contato para solicitação de serviços na forma eletrônica para qualquer cartório do Brasil”.

e) SC – Serviço do Cartório [8], que corresponde ao sistema existente em cada Registro de Imóveis a fim de automatizar as atividades internas, manter o registro eletrônico imobiliário, auxiliar no atendimento de solicitações de usuários presenciais, realizar o atendimento de solicitações eletrônicas encaminhadas através do SAEC e interagir com outras entidades (itens 3.4.1 e 3.4.2, p. 18).

f) Bases de dados do SAEC. A base de dados nacional não representa uma base redundante dos dados mantidos e conservados em cada Serventia. Os dados ali congregados devem resumir-se a:

                                          I.     Base estatística;

                                         II.     Base de indisponibilidade de bens e

                                        III.     Base de CPF (item 3.3, p. 16-7).

A estrutura foi decalcada da experiência paulista, que foi por nós concebida em parceria com a Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo.

Tanto o SAEC como o SC visavam concretizar o que o ONR agora se propõe a fazer em cooperação com o Conselho Nacional de Justiça, por sua Corregedoria-Nacional, e com base em lei federal. Eis os objetivos a serem normalizados: ponto único de acesso, universalização dos serviços de registro, padrões uniformes de intercâmbio de dados, banco de dados meramente referencial, Registro de Imóveis eletrônico, repositório confiável de documentos natodigitais, verificação de integridade de livros eletrônicos, matrícula eletrônica, etc. Aliás, essa mesma concepção havia sido prestigiada pela Coordenação Nacional das Centrais de Serviços Eletrônicos Compartilhados do Registro de Imóveis, criada no âmbito institucional do IRIB [9].

Em nenhum momento se cogitou de substituir os cartórios em suas atividades tradicionais, nem subtrair os dados de registro que devem ser mantidos sob a guarda e responsabilidade do Oficial Registrador, nem afastar o poder normativo e fiscalizador do Poder Judiciário.

Centrais estaduais

Como vimos, as centrais eletrônicas estaduais representam a face visível e periférica (e de certo modo muito singela) de um sistema mais complexo e robusto que é o SREI, o sistema de Registro de Imóveis eletrônico propriamente dito.

As centrais estaduais são indiscutivelmente importantes e compõem uma parte essencial do SREI ao avançar na ideia de criação de um guichê eletrônico para fins de universalização de acesso (§ único do art. 17 da LRP cc. § único do art. 38 da Lei 11.977/2009). Representa uma das faces da mesma moeda, mas é apenas um ramal do SREI, não o seu centro medular.

Busca-se agora reatar o trato da linha de desenvolvimento do Sistema de Registro de Imóveis eletrônico SREI, sem disrupção deletéria de seus fundamentos e postulados, tal e qual se acham previstos na Recomendação 14/2014 da Corregedoria-Nacional do Conselho Nacional de Justiça.

ONR baixará normas jurídicas para os procedimentos internos dos cartórios?

Há uma confusão de base aqui. Normatização, normalização e gestão administrativa e financeira são conceitos diferenciados e é preciso distinguir muito bem esses aspectos e espancar as possíveis dúvidas.

a) Normatização – tratamos, aqui, da competência legal e constitucional para baixar normas técnicas sobre o registro (inc. XIV do art. 30 da Lei 8.935/1994) e sobre a fiscalização de seus serviços (§ 1º do art. 236 da CF cc. art. 37 da Lei 8.935/1994). Essas atribuições e a competência, que são exclusivos e indelegáveis do Poder Judiciário, remanescem intocáveis. Nos termos do § 4º do art. 54 da MP 759/2016 resta reafirmado que caberá à Corregedoria Nacional de Justiça do Conselho Nacional de Justiça exercer a função de agente regulador do ONR.

b) Normalização, tomamos a expressão no sentido acolhido pela Recomendação 14/2014 do CNJ, que aprovou o conjunto de normalização do SREI (v. o item 1.1 do documento SREI Sistema de Registro Eletrônico Imobiliário, já citado). A normalização compreende o estabelecimento de requisitos técnicos aplicáveis tanto à operação dos sistemas de software e hardware quanto à forma de estruturação e operação. Visa, em última análise, estabelecer as bases técnicas para a criação de infraestrutura para implantação do SREI, em protocolos de compliance com as normas baixadas pelo Poder Judiciário, que a tudo fiscaliza e correciona [10].

c) Gestão e administração dos cartórios. O gerenciamento administrativo e financeiro das serventias é da responsabilidade exclusiva do respectivo titular (art. 21 da Lei 8.935/1994). Essa autonomia refere-se, basicamente, ao controle de despesas de custeio, investimento e pessoal, atribuição de funções, remuneração de prepostos, etc. e não pode alcançar a definição de padrões tecnológicos relativamente aos dados do registro que são, em sua essência, públicos. 

Postas estas premissas, fácil compreender que a implantação de um sistema de Registro de Imóveis Eletrônico, em todo o país, demanda o concurso da instituição registral (art. 37 da Lei 11.977/2009), de um agente regulador (Poder Judiciário – CNJ, § 4º, do art. 54 da MP 759/2016) e de um organismo normalizador, representado pelo ONR (arg. do art. 37 da Lei 11.977/2009 cc. § 1º do art. 54 da MP 759/2016).

Essas atividades, correlacionadas entre si (instituição, regras jurídicas e processos tecnológicos envolvidos) conformam a ideia do SREI.

Nada como um exemplo prático

Gostaria de finalizar com um exemplo prático que pode demonstrar claramente o papel desempenhado por cada ator nesse complexo sistema de modernização do sistema registral pátrio.

Tomemos como exemplo a Central Nacional de Indisponibilidade de Bens – CNIB. Ela foi criada pelo Provimento CNJ 39/2014, de 25/7. O concurso de esforços dos próprios oficiais registradores imobiliários, com apoio, disciplina e regulamentação do Poder Judiciário, redundou no sistema que está em funcionamento desde 2014.

Note-se, todavia, que o impulso dos registradores, somado ao acolhimento e disciplina normativa do Poder Judiciário, dependeriam ainda de um elemento consubstancial ao próprio sistema: a sua normalização, isto é, o estabelecimento de requisitos técnicos aplicáveis à operação dos sistemas de hardware e software quanto à forma de estruturação e operação, como asseverado acima.

Enfim, sem a normalização não teria sido possível lançar-se à instituição do CNIB, nem a disciplina e normatização do Poder Judiciário teria sentido. Enfim, a Central não seria possível sem a construção da infraestrutura tecnológica que lhe dá concretude e executabilidade.

Registre-se de passagem e por derradeiro que o que faltou no âmbito do SREI, foi, justamente, a normalização para que o sistema saísse do papel e se tornasse uma realidade concreta em todo o país, tal e qual previsto na sobredita Resolução 14/2014.

Conclusões

a) O ONR é um passo a mais no processo iniciado no âmbito do Conselho Nacional de Justiça no contexto das Recomendações baixadas por aquele órgão. O ONR Visa modernizar o sistema registral brasileiro, reconhecendo o protagonismo essencial dos registradores na construção do SREI e a regulação e fiscalização do Poder Judiciário como seu órgão diretor e regulador.

b) O ONR não se preordena à constituição de um cadastro centralizado, nem se apropriará de dados, títulos, documentos, registros que devem ser mantidos e preservados no âmbito de cada serventia.

c) O SAEC – Serviço de Atendimento Eletrônico Compartilhado representa apenas um pivô de informações (hub[11], permitindo o intercâmbio de dados via webservice.

d) O ONR não se imiscuirá no gerenciamento administrativo e financeiro das serventias, nem substituirá o registrador em seu nobre ofício de qualificação registral.

e) O ONR foi concebido para servir como organismo normalizador a fim de dar concretude e executabilidade ao sistema do SREI em âmbito nacional, não retirando atribuições dos registradores, nem malferindo a competência normativa do Poder Judiciário.

Sou agradecido ao Conselho Nacional de Justiça por ter sido convocado para prestar minha colaboração pessoal ao grande projeto de modernização do sistema registral brasileiro.

São Paulo, 29 de maio de 2017.

SÉRGIO JACOMINO
Presidente do IRIB



[1] Indico o texto A Microfilmagem, a Informática e os Serviços Notariais e Registrais Brasileiro. São Paulo: AnoregSP, 1996, p. 77. Na internet: https://goo.gl/TZ0d2E. No ambiente do IRIB: Dos Livros de Registro ao Fólio Real Eletrônico. Palestra proferida no XXIV Encontro Nacional do IRIB, 1997. Vídeo: Youtube.

[2] Cfr. Portaria da Presidência do CNJ n. 19, de 23/2/2010, que instituiu um grupo de trabalho para planejamento e execução das ações necessárias à modernização dos registros de imóveis do Estado do Pará. Acesso: https://goo.gl/qYv0BQ.

[3] Resolução CNJ 110/2010, acesso em: https://goo.gl/hyV0uf

[4] V. Projeto de Modernização dos Cartórios de Imóveis da Amazônia Legal - Plano do Projeto. Acesso em https://goo.gl/s4XWnR.

[7] Cfr. § único do art. 17 da LRP cc. § único do art. 38 da Lei 11.977/2009.

[8] Cfr. art. 37 da Lei 11.977/2009.

[9] Cfr. a série de documentos, atas e regime da Coordenação no endereço: http://circuloregistral.com.br/2017/05/26/coordenacao-nacional-das-centrais-de-ri

[10] Um exemplo de normalização é norma da ABNT (NBR 15906) de gestão de serviços notariais e de registro. A norma foi elaborada pela Comissão de Estudo Especial de Gestão Empresarial Cartorária (ABNT/CEE-148) e estabelece requisitos de um sistema de gestão para gerir processos com qualidade, de forma a satisfazer as partes interessadas, atender aos requisitos legais, elementos de gestão socioambiental, saúde e segurança ocupacional, visando a excelência nos serviços.

[11] Hub é processo ou dispositivo por meio do qual se transmite ou difunde determinada informação. Sua característica essencial é garantir que a mesma informação será enviada para muitos receptores ao mesmo tempo. 

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