A retenção e a instituição positiva do direito de habitação
Júlio Soares Neto
A habitação é um direito real sobre coisa alheia, e assim como o uso, é considerada um usufruto em miniatura.(1)
Trata-se de direito personalíssimo e espécie de direito real de uso. A própria lei, no artigo 1.416 do Código Civil, aduz que se aplica à habitação as disposições do usufruto quando houver compatibilidade. Na realidade, são institutos diversos, com características próprias, mas com pontos em comum.
Por não ser muito utilizado na praxe notarial, é provável que se estranhe o aparecimento da habitação por retenção, hipótese denominada por Orlando Gomes, quando discorre sobre o usufruto, de deductio usufructu, entendendo alguns doutrinadores que a reserva de usufruto seria o mesmo que usufruto negativo, enquanto que a instituição seria usufruto positivo.(2)
Portanto, como é possível notar, não há óbice em raciocinar em termos de usufruto, aplicando-se a regra ao direito de habitação, desde que não haja antinomia.
A retenção gera algumas nuances que merecem ser destacadas. O principal efeito é a ausência de hipótese de incidência tributária, o que não ocorre com a instituição positiva gratuita ou onerosa, geradora de tributação, seja por disposição expressa da legislação tributária, ou de forma genérica, quando a norma prevê incidência do imposto de transmissão na criação de um direito real, desde que não seja de garantia, não importando a modalidade.
Portanto o notário deve ser preciso em sua escrita, trabalhando com a terminologia correta para evitar dubiedades. É claro que a situação é variável conforme os ditames de cada legislação tributária especificamente.
A dedução ou retenção gera um ato notarial autônomo e um registro, não sendo caso de averbação, em que pese haver corrente sustentando a segunda opção, já que uma parte do direito de propriedade foi retida no patrimônio do alienante. A meu viso, a dedutibilidade não impede o fato jurígeno determinante representado pela criação de um direito real, que necessita de inscrição para adquirir eficácia em relação a terceiros, sendo o registro necessário, pois caso contrário, os efeitos gerados somente integrarão relação jurídica de natureza pessoal.
A averbação não pode alterar de forma efetiva o núcleo de um registro, já que prima pela acessoriedade.
A alteração de um estado civil merece lançamento registral, pois se refere à continuidade subjetiva, neste caso deve-se lançar mão de averbação, mas se a dissolução da sociedade conjugal acarretar transmissão de propriedade que é o maior dos direitos reais, ou até mesmo partilha dos bens, com a respectiva mudança de regime jurídico de comunheiros (propriedade de mão comum na Alemanha, inerente ao regime de bens do casamento) para condôminos, tal fato, por si só, exige uma nova inscrição.
Quando a mudança de regime jurídico acarretar criação de direito real, tal qual ocorre na situação jurídica de proprietário para usufrutuário, habitador ou usuário, bem como, conforme já mencionado, quando comunheiros tornam-se condôminos, nestas hipóteses, o registro é o ato a ser praticado pelo oficial.
Não é correto concluir no sentido de que a espécie de ato registral (inscrição, transcrição ou averbação) esteja relacionada ao fato de haver ou não tributação, já que temos atos inscritíveis como a penhora, o bem de família, a partilha quando os bens do ex-casal ficam em condomínio, que efetivamente não sofrem incidência de impostos.
O cancelamento do usufruto reservado ou da habitação, em virtude de renúncia, formalizada por escritura pública, deve ser lançado como averbação, devendo o renunciante recolher o imposto de transmissão devido ao Estado se o ato for gratuito. O cancelamento do referido direito real por óbito do usufrutuário ou habitador, também gera tributação, mas efetivamente vai depender da hipótese tipificada na legislação tributária de cada ente federativo.
A instituição e a retenção do direito real de habitação podem ocorrer no bojo de um negócio jurídico bilateral, como a compra e venda, numa doação que é negócio jurídico unilateral quando não há encargo, em transação judicial, nos autos de inventário por falecimento ou divórcio, porém em sede de testamento só pode haver instituição positiva, por motivos óbvios.
Não se admite instituição da habitação por codicilo, por outro lado adquire-se o direito por usucapião. O direito real de habitação previsto no artigo 1.831 do Código Civil tem origem legal, ou seja, independe do acordo de vontades, portanto o fenômeno da retenção é vedado.
Só o titular do domínio ou propriedade, pode estabelecer o direito de habitação deducto, e por isso não é correto, tal qual ocorre com o usufruto, que o casal doe o imóvel aos filhos e reserve o direito de habitação, em sua totalidade, em favor de um dos cônjuges, pois estaria faltando uma operação, ou seja, um dos cônjuges deverá instituir a habitação, na proporção de sua meação, que na hipótese é equivalente à metade do bem, em favor do outro consorte. Além disso, essa disposição positiva, em forma de instituição, é fato gerador de imposto de transmissão, a ser recolhido na Secretaria Estadual de Fazenda, se o ato for gratuito, ou no órgão municipal, se se tratar de ato oneroso. Havendo dois fatos geradores, v.g., venda mais instituição de habitação, incidirá dois tributos que poderão ser recolhidos em guias separadas ou eventualmente em uma única, desde que corresponda ao valor devido.
Nu-proprietário e habitador podem transferir seus direitos em prol de terceiro, em favor do qual se consubstanciará a plena propriedade. Porém é vedada a transferência da nua-propriedade em favor de X e da habitação em favor de Y, já que o direito real de habitação não pode ser alienado. O habitador poderá renunciar em prol do nu-proprietário que ato contínuo, não está impedido de alienar a nua-propriedade e instituir direito de habitação em favor de pessoas diversas ou estabelecer em seu favor o direito de habitação deducto.
Outra questão interessante, diz respeito à possibilidade do registro da habitação reservada em separado da liberalidade ou do negócio jurídico que deu origem ao direito. Tem-se entendido que não é possível o parcelamento desses atos, pois a nua-propriedade não pode subsistir sozinha, já que a existência de um ônus natural é presumida, significando que o direito retido é como se fosse um gravame em relação à propriedade despida, aplicando-se o princípio da gravitação jurídica, ou seja, o acessório segue o principal, sendo necessário realizar dois registros de uma só vez.(3)
O promitente vendedor pode instituir direito real de habitação em prol de terceiro, bem como deduzi-lo em seu favor, sendo possível na escritura definitiva efetivar a venda e consolidar a habitação ou usufruto em favor do adquirente, que neste caso será comprador e habitador, aplicando-se o inciso VI, do artigo 1.410 do Código Civil.(4).
Gostaria de destacar alguns aspectos relevantes em relação à habitação e ao usufruto. O direito real de habitação não pode ser cedido pelo habitador, em favor de terceiros, pois tal ato desnaturaria o instituto que tem na gratuidade característica basilar. O mesmo não ocorre com o usufruto, que pode ser objeto de cessão, auferindo o cessionário todas as vantagens econômicas advindas da utilização do bem e de seus componentes. É importante frisar que o usufrutuário que cede seus direitos a terceiros, não se desvincula do negócio jurídico originário, sendo obrigatória a sua interveniência na escritura de extinção do usufruto, não podendo o cessionário fazê-lo isoladamente. A escritura de cessão de usufruto, para parte da doutrina, não é objeto de registro, por ser direito personalíssimo e não estar elencada no artigo 167 da Lei de Registros Públicos.
Não concordo com esse entendimento, já que não sou favorável à taxatividade dos atos registrais. Mas adotando-se o primeiro posicionamento, que é majoritário, há quem entenda que a cessão do usufruto poderia ser inscrita como anticrese (número 11, do inciso primeiro, do artigo 167 da LRP), levando-se em conta que os frutos civis inerentes à coisa podem ser direcionados a terceiros.(5)
O habitador não pode ceder nem dar em anticrese o bem, mas pode aliená-lo ao nu-proprietário, consolidando a plena propriedade em favor deste.
A habitação não pode ser constituída em favor de pessoa jurídica, pois somente a pessoa física habita e mora, mas é mister mencionar que Pontes de Miranda defende posição contrária.(6)
Também se aplica à habitação o direito de acrescer, quando houver mais de um habitador e previsão contratual.
Tudo que foi dito em relação à habitação, aplica-se ao direito real de uso, exceto quanto à possibilidade de instituição em favor de pessoa jurídica, hipótese também viável em relação ao usufruto, que estabelece normas complementares aptas a serem aplicadas, desde que não haja incompatibilidade estrutural entre os institutos.
Notas
* Júlio Soares Neto é tabelião do Primeiro Ofício de Justiça de Valença-RJ.
(1) Orlando Gomes (Direitos Reais, Editora Forense, 10ª. Edição, páginas 292 e 293)
(2) Ricardo Guimarães Kollet (Trabalho publicado no site do IRIB sobre a pré-constituição do usufruto)
(3) ApCiv 99.458-0/9 – Conselho Superior da Magistratura – j. 27.02.2003 – rel. Corregedor-Geral da Justiça Luiz Tâmara – DOE-SP 14.05.2003.
(4) ApCiv 097.891.0/0-00 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – j.27.02.2003 – rel. Corregedor-Geral da Justiça Luiz Tâmara.
(5) ApCiv 81.895-0/6 – Conselho Superior da Magistratura de São Paulo – j.27.12.2001 – rel. e Corregedoria-Geral da Justiça Luís de Macedo.
(6) Tupinambá Miguel Castro do Nascimento (Direitos Reais Limitados, Livraria do Advogado, Porto Alegre, 2004, p.80)
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