Doação Modal e Imposição de Cláusulas Restritivas
Sergio Jacomino
Ainda recentemente, apurado com a ultimação dos preparativos para a edição do esperado volume que reúne os artigos e contribuições oferecidas pelo registrador e professor de todos nós, Ademar Fioraneli – publicação a cargo do Sérgio Fabris Editor em co-edição com o IRIB – deparei-me com a posição, fortemente defendida, de que a cláusula restritiva de inalienabilidade poderia ser imposta na chamada doação modal. Sustenta o registrador, estribado em excelente doutrina, ser perfeitamente admissível a imposição de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade em doações modais, oferecendo-nos um didático exemplo: "por escritura, o casal doa a seu filho determinada quantia em dinheiro destinada à compra do imóvel. O negócio é celebrado entre outorgantes vendedores e outorgados compradores, figurando o doador da pecúnia como interveniente-doador. Para possibilitar a aquisição em nome dos filhos, impõe ao imóvel os vínculos de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade." E conclui: "surge, aqui, a doação modal, perfeitamente possível numa escritura de venda e compra, desde que realizadas simultaneamente." (Boletim do IRIB 91, 1984, artigo em parceria com o registrador Jersé Rodrigues da Silva).
O tema foi retomado pelo registrador Elvino Silva Filho no excelente "Efeitos da Doação no Registro de Imóveis" (RDI 19/20-19) e encontra sustentação no festejado Afrânio de Carvalho. (1)
Causou-me, pois, certa perplexidade a afirmação segura dos registradores paulistas. É que, coincidentemente, havia enfrentado caso análogo, recusando o registro de título lavrado nas mesmíssimas condições. E a escritura foi lavrada por um excelente notário da comarca, lastreado na douta opinião dos citados.
À parte a perplexidade de ver qualificada como "modal" a doação de pecúnia em que se impõem cláusulas restritivas na aquisição onerosa de bem imóvel, fiquei convencido de que o desiderato dos doadores poderia concretizar-se de outra forma.(2) Contrastando, pois, as opiniões dos doutos, ouso oferecer ao debate alguns elementos para reflexão e discussões, favorecendo-me desse amplo fórum para aclarar as dúvidas que ainda remanescem em meu espírito.
Doação modal, encargo e limitação de poder
A chamada doação com encargo, modal ou onerosa (donatione sub modo), consoante dispõe o artigo 1180 do Código civil, é o negócio jurídico que se singulariza na incumbência cometida ao donatário pelo doador, em favor deste, de terceiro ou no interesse geral. Na justa síntese de Agostinho Alvim, é obrigação imposta ao gratificado (3). E sendo, portanto, obrigação, o donatário assume a liberalidade com o só fato de aceitá-la, e que lhe pode ser exigida, e, até sancionada com a revogação do benefício, como observa Caio Mário da Silva Pereira.(4)
Identificam-se, pois, dois elementos essenciais da doação modal: o ato da liberalidade e o encargo.
É preciso compreender, desde logo, que as cláusulas restritivas, impostas eventualmente pelo doador, constituem-se em limitação do poder de dispor. Consoante doutrina Carvalho Santos, "o que o Código denomina cláusula de inalienabilidade não é senão uma limitação de poder; não constitui modus". (5) Adverte-nos Pontes de Miranda: não se deve confundir encargo com limitação de poder.
Por essa razão, a maioria dos doutrinadores considera a doação com imposição de cláusulas uma doação pura (6).
É preciso conhecer a natureza do modus, destrinçar os seus elementos para distingui-lo da restrição. Modo é obrigação imposta àquele em cujo proveito se constitui um direito nos atos de liberalidade – testamento ou doação. (7) Segundo preleciona o tratadista de direito privado, o modus ou encargo representa uma categoria jurídica autônoma, distinta das condições resolutivas ou suspensivas. Consiste em vínculo a cargo do onerado, manifestação de vontade anexa. Incidem a seu respeito as regras jurídicas gerais sobre capacidade, forma e validade. (8)
De outra parte, as restrições de poder – como o são as cláusulas restritivas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade – distinguindo-se da condição (falta-lhe suspensividade e resolutividade) e do modus (a cláusula atua contra a vontade do beneficiado) supera-as todas, numa original e peculiar natureza jurídica: "trata-se de fenômeno autônomo, à altura da condição como do modus, que precisa – depois do nome que lhe deu F. Regelsberger – ser estudado, sem as exóticas referências ao modus e à condição. Se fosse condição, seria condição que não suspende, nem resolve: condição que não é condição. O modus obriga, mas o não cumprimento só autoriza o pedido de perdas e danos. Tal não é o efeito das cláusulas. Se fosse modus, seria um modus, que é mais do que o modus, que não seria modus." (9)
Perfilando-se com a tese de Regelsberger, através da releitura de Pontes de Miranda, também Agostinho Alvim registra que as cláusulas restritivas apresentam a nota característica de limitação de poder, e não um encargo: "tais cláusulas não se consideram encargos, pois não são impostas em benefício do doador, nem de terceiro, nem da coletividade, sendo estas as três hipóteses da lei (Código Civil art. 1.180). Por isso mesmo, tais doações se consideram puras, para os efeitos daí decorrentes. Ainda que se considere a inalienabilidade e suas variações como ônus real, ainda assim não estamos diante de uma obrigação. (10)
Não se perca de vista que o encargo, com a nota peculiar que lhe empresta Pontes de Miranda, não deixa de ser afinal uma obrigação. Conclui-se, portanto, que a imposição de cláusula de inalienabilidade não pode ser considerada como encargo, pela simples razão de que não encerra qualquer obrigação. É restrição que favorece o próprio donatário. Aliás, é categórica a conclusão de Pontes de Miranda: "não há modus se o interesse no cumprimento é exclusivamente do donatário". (11)
A compreensão do exato sentido do encargo nessas espécies de doações foi atingida pelo Ministro Sydney Sanches, quando então Desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo, no Agravo de Instrumento 29.925-1, 2a Câmara, assim ementado: "Doação – encargo – inexistência – cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade e reserva de usufruto que não o constituem – aceitação – inteligência do art. 166 do Código Civil. As cláusulas de inalienabilidade ou de impenhorabilidade de bens são simples limitação ou restrição de poder e o usufruto é restrição ao direito de propriedade, não constituindo encargo para fins de aceitação da doação a que se refere o art. 1666 do CC." (12)
Estabelecido que as cláusulas restritivas não podem ser consideradas encargos, mas tão-só limitação de poder, desnatura-se, destarte, a idéia da doação modal nos termos aqui propostos. Por uma razão muito simples: o negócio jurídico, não encerrando encargo qualquer, seria, no exemplo analisado, doação pura.
Poder-se-ia conjecturar, até em benefício da discussão, que a doação, dirigida à obtenção de um determinado resultado, sem a anexa imposição de qualquer obrigação ao donatário, seria o caso de datio ob causam, simples conselho, recomendação, desarmado das sanções jurídicas do encargo, nudum præcepetum. Voltaremos ao assunto.
Mas, se deste ponto-de-vista não se poderia falar propriamente em encargo, modus, vamos verificar que, no caso de doação de numerário para aquisição do bem e, concomitantemente (simultaneamente, no mesmo ato notarial, na lição de Fioraneli) a imposição de cláusulas restritivas, exsurge então um novo elemento, dissociado do complexo que forma a doação modal. Sob o ângulo dessa indispensável conexão – que na opinião de Agostinho Alvim é liame essencial que deve existir entre a doação e a obrigação imposta – observaremos que a dissociação que se identifica na imposição de cláusulas acarreta a desnaturação da doação modal. Assim é que, "se a restrição, ou a obrigação for imposta em ato posterior, não haverá associação alguma, e sim dissociação; por isso mesmo, encargo não existirá, ainda que se lhe dê esse nome" (13) . A mais típica das "determinações anexas", na didática de Pontes de Miranda, é justamente o encargo ou modus, que se apõe ao lado de outra manifestação de vontade, classificada como anexa.
A indispensabilidade dessa conexão, que num só momento une a doação à obrigação imposta, sua existência incontornável, é que permitiria a subsunção à regra do artigo 1180 do Código Civil, o que se não verifica no caso presente.
Vejamos graficamente. É preciso distinguir as várias etapas que se sucedem na doação modal que pode existir na entrega do numerário para aquisição de bem imóvel. Aproveitando-nos do exemplo oferecido, é razoável identificar-se os seguintes momentos: (a) doação do numerário; (b) imposição do encargo (adquirir determinado bem imóvel); (c) aquisição do bem imóvel e (d) imposição das cláusulas.
A conexão que existe entre o ato de liberalidade e a obrigação se aperfeiçoa, no máximo, na aquisição do bem imóvel. Esse o encargo. Esse o modus. Aqui a doação modal. É bastante razoável identificar o interesse do doador na aquisição do bem de raiz e não a dissipação dos recursos em outro qualquer emprego, ainda que lícito. Mas nem mesmo isso, muitas vezes, pode ser considerado uma doação modal, pelas razões que logo abaixo analisaremos de perto.
Se a doação modal, nos termos propostos, é perfeitamente possível, não o é, entretanto, a imposição de cláusulas.
Mas é preciso verificar atentamente um aspecto crucial, não considerado na doutrina e na jurisprudência aqui perfilados: cogitando-se de manifestação de vontade do beneficiado no adimplemento do encargo, incidindo aqui, portanto, as regras jurídicas sobre validade do negócio jurídico anexo, patenteia-se a nulidade de imposição de cláusulas pelo próprio titular de domínio: é cediço que ninguém pode tornar inalienável bem de seu domínio. (14)
Jurisprudência
Não passou desapercebida aos olhos atentos do grande registrador a vacilação jurisprudencial que está na origem da dissensão: "O assunto mereceu decisões divergentes do E. Conselho Superior da Magistratura do Estado de São Paulo. Em uma primeira decisão, entendeu-se não ser possível a vinculação do imóvel com a cláusula de inalienabilidade em uma escritura de compra e venda, em que o dinheiro para aquisição tivesse sido doado por terceiro, mesmo que comparecente na escritura de compra e venda. Posteriormente, o mesmo E. Conselho, integrado pelos mesmos Desembargadores, em decisão relativa ao mesmo assunto, apenas alterada a natureza da cláusula que passou a ser a de incomunicabilidade, modificou a sua orientação, entendendo ser essa espécie de doação uma doação modal". (15)
Na primeira delas, apreciando caso de doação de numerário para aquisição de bem imóvel, com concomitante instituição de usufruto e cláusulas, o Colendo Conselho deixou consignado que é impossível a instituição de vínculos em contrato de compra e venda: "na verdade, o contrato contém cláusula de inalienabilidade, somente admissível quando imposta em testamento ou doação". (16) A decisão mais recente (17), enfrentando diretamente o problema, deixou consignado ser perfeitamente possível tal negócio jurídico, qualificado de doação modal. Esta última delas, trazendo excelente doutrina nacional e alienígena, tornou-se referência posterior. (18)
Entre as duas manifestações pretorianas, expressão da cultura e inteligência jurídica daqueles que forjaram o que alguém qualificou de "Escola Paulista de Direito Registral", inclino-me à primeira delas, no que pese a sua extrema concisão e síntese. E o faço com a devida vênia, pois o tema encerra reconhecidas dificuldades.
Em primeiro lugar, concordando com a afirmação preambular de que na doação modal o donatário é vinculado ao modus. (19) Unicamente é de se salientar que a determinação vinculada à liberalidade se torna de fato nítida, no caso em comento, na consecução da aquisição do bem imóvel. O modus se consubstancia, adquire visibilidade, quando se identifica a conexão da aquisição do bem conforme a determinação do ato de liberalidade do doador. Quando não haja essa necessária conexão, que num só momento une a doação à obrigação imposta, não há encargo. (20) A imposição de cláusulas, embora instrumentada no mesmo contrato notarial, é negócio jurídico que se alheia da doação modal, conforme salientado supra.
Depois, não se nega que se trata de típica doação modal o negócio jurídico consistente em liberalidade em pecúnia para ser empregada de maneira determinada. E os exemplos, citados no V. acórdão, recolhem-se fartamente na doutrina (21).
Mas o próprio Pontes de Miranda, advertindo-nos de que não há modus se o interesse no cumprimento é exclusivamente do donatário, conforme já referido, reconhece que não é fácil a distinção. E conclui, "não há doação modal se o doador apenas exprimir conselho, ou sugestão, ou desejo, ou opinião". (22)
E parece ser esse o caso referido no V. acórdão, data maxima venia. Fundada na doutrina de Agostinho Alvim, aponta o exemplo de doação pecuniária para compra de uma fazenda, acrescentando, à guisa de explicação, que a espécie "não é em tudo idêntica à dos autos, porque aqui o modus ainda exige que o bem adquirido com o dinheiro seja clausulado de incomunicabilidade, modus que não beneficia somente a donatária, mas também a prole, porquanto com a cláusula é evitada a dilapidação do bem que refoge do patrimônio comum." (23)
Mas aqui se aninha, precisamente, a dificuldade referida por Pontes de Miranda, já apontada, e ainda por Hedeman, quando salienta que a concepção jurídica do instituto cria certas dificuldades e que é, muitas vezes, difícil vincar os limites do simples desejo ou conselho. E acrescenta: "El punto de vista humano (económico) consiste em que el aprovechamiento de lo donado no debe quedar al puro arbitrio del donatario, sino que para el tratamiento y utilización de lo donado le pueden ser establecidas ("impuestas") por el donante líneas de orientación".(24)
De fato, o próprio Agostinho Alvim, no exemplo referido na V. decisão, tratava de circunscrever os beneficiários dos encargos impostos na doação: o próprio doador, terceiros ou o "interesse geral", na dicção restritiva do artigo 1180 do Código Civil. Conclui, sem titubear, que além das três hipóteses consideradas no Código, "somente resta o caso de imposição visando a favorecer o próprio donatário. E pelo argumento de exclusão, conclui-se que unicamente neste último caso não lhe assiste obrigação de sujeitar-se ao que foi imposto." O emérito professor da Católica de São Paulo remata o raciocínio dizendo que "há, nessa hipótese, mero conselho, ou recomendação" ou ainda "mera exortação (...) como, p. ex., dou-te tanto, para comprares uma fazenda". (25)
Note-se que na hipótese apontada no V. aresto, como exemplo e referência, não se reconhece a doação modal. Ocorre, ali, o que os autores qualificam, na linguagem antiga, como sendo o modus simplex, ou seja, somente um conselho, desejo ou exortação, contraposto ao modus qualificatus, que é o autêntico encargo (26). Sendo a doação feita exclusivamente no interesse do donatário, a fim de se obter tão-somente um resultado, sem imposição de uma obrigação, temos, eventualmente, o caso especial de datio ob causam, e não doação sub modo .
Mas é do texto da R. decisão que o encargo (in casu de imposição de cláusulas) beneficiaria a prole, "porquanto com a cláusula é evitada a dilapidação do bem que refoge do patrimônio comum". (27) Mas, se tal ocorre, é em razão dos efeitos e não da causa. Fosse a intenção do doador proteger e beneficiar prole do donatário, teria à sua disposição – adquirindo o próprio imóvel – a figura do fideicomisso. Ademais, como bem observado por Agostinho Alvim, a inalienabilidade em tais casos não impediria que o donatário dispusesse livremente do bem por testamento (art. 1723 do Código Civil). (28) Portanto, a imposição das cláusulas não pode ser considerada em benefício de terceiros, mas tão-somente em favor do próprio donatário.
Enfim, inclino-me francamente à orientação esposada pelo C. Conselho Superior da Magistratura de São Paulo no Agravo de Petição 227.817, em que foi relator o Des. José Carlos Ferreira de Oliveira, em tudo consentâneo com o decidido por Serpa Lopes. Peço vênia para citar o professor fluminense longamente: "o que, antes de tudo, cumpre indagar é se a escritura de fls., nos termos em que se acha concebida, facultava a cláusula de inalienabilidade que ali figura. O que se permite concluir da leitura do texto do instrumento aludido, é que o imóvel foi diretamente vendido às outorgadas. Assim sendo, não houve doação do imóvel, mas do dinheiro necessário à sua aquisição. Para que houvesse doação do imóvel, mister se fazia que este pertencesse aos doadores ou que estes tivessem feito um contrato de compra e venda em favor das donatárias. Mas tal não se deu, conforme se verifica claramente da escritura de compra e venda. Uma comissão nela interveio para entregar o preço ao comprador, enquanto que o contrato de compra e venda se estabeleceu diretamente entre as demais partes. Conseqüentemente, não tendo sido o objeto da doação o imóvel e sim o dinheiro, o dinheiro necessário à sua aquisição, a conclusão lógica é que nenhuma cláusula de inalienabilidade, nenhum ônus podia recair sobre o dito imóvel como efeito de uma doação que sobre ele não versou, de vez que, como bem ensinam Aubry et Rau: ‘la defense d’aliener ne pourrait pas avoir pour objet d’autres biens que les biens donnés’ (Aubry et Rau, Cours de droit civil français, XI, not. 32 bis, § 692, p. 191, 5a ed. 1919). (29)
Finalmente, a fim de ilustrar o debate aqui travado, socorro-me de recentes decisões da Egrégia Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de São Paulo e da 1a Vara de Registros Públicos da capital.
Decidindo caso concreto que versava sobre incomunicabilidade de bens pela regra do art. 269, I e II do Código Civil, o juiz Francisco Eduardo Loureiro deixou consignado, de passagem, que "cumpre consignar, finalmente, a fim de evitar futuros problemas, que a observação consignada em ata de correição não guarda a menor contradição com o presente parecer. O que se determinou em correição é que a imposição de cláusulas voluntárias restritivas à transmissão imobiliária (impenhorabilidade, incomunicabilidade e inalienabilidade) fossem impostas somente no próprio ato da liberalidade (doação ou testamento). O que se não admitiu é que a imposição de cláusulas atingisse imóvel adquirido a título oneroso, por venda e compra, somente porque o dinheiro relativo ao preço tivesse sido doado em anterior oportunidade". (30)
A determinação consignada na ata de correição, referida pelo parecerista, foi vazada nos seguintes termos: "o registro n. 1 refere-se a aquisição de nua propriedade por venda e compra. Consta apenas que o numerário para a aquisição foi doado por terceira pessoa, que adquiriu o usufruto. Averbaram-se, porém, cláusulas restritivas com relação à nua propriedade. Incorreto o proceder, uma vez que o negócio jurídico de doação do dinheiro correspondente ao preço não se confunde com o negócio jurídico da aquisição onerosa da nua propriedade. As cláusulas restritivas não poderiam ter sido impostas." (31) A registradora, por seu turno, sustentou a viabilidade de seu proceder baseada no escólio de Afrânio de Carvalho, Elvino Silva Filho, Ademar Fioraneli, Jersé Rodrigues da Silva, além dos precedentes jurisprudenciais aqui referidos.
Mais recentemente, o Egrégio Conselho Superior da Magistratura de São Paulo deixou de apreciar um caso em tudo idêntico ao tratado neste opúsculo. Não se conheceu do recurso por falta de capacidade postulatória. Mas o V. acórdão deixou antever que o enfoque do problema poderia ser reapreciado. Após o relatório, deixou consignado que "a hipótese é de negativa de registro de escritura pública de venda e compra acoplada à doação modal, vedando-se o acesso ao cadastro predial, em virtude de estipulação, no aludido ato, de cláusulas restritivas de inalienabilidade, e incomunicabilidade, o que descaracterizaria a natureza do negócio celebrado".(32)
O Tribunal de Justiça de São Paulo já se manifestou sobre o tema: "verifica-se dos termos da escritura referida, que os ali constantes como ‘intervenientes doadores’, não doaram o bem, mas, sim, o dinheiro equivalente ao seu preço, e, assim, estavam impossibilitados de gravar o imóvel com as cláusulas restritivas. Sabe-se que para que prevaleçam e produzam os seus efeitos, as restrições voluntárias ao direito de propriedade devem ser subordinadas a determinados requisitos: hão de provir de doação ou testamento e deverão constar de registro público (...). Ora, os intervenientes à escritura nunca possuíram aquele bem, que foi transmitido diretamente pelos vendedores ao comprador, e, como conseqüência, estavam impossibilitados de instituir as cláusulas de inalienabilidade e impenhorabilidade, já que não o doaram ao apelante". As cláusulas foram canceladas por determinação judicial. (33)
Conclusão
Em conclusão, submetendo estas parcas considerações acerca do tema já enfrentado pelos mais doutos, ouso insinuar que a doação de pecúnia para aquisição de bem imóvel, com imposição de cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade não traduz doação modal. As cláusulas restritivas de domínio traduzem limitação do poder de dispor. Não constituem modus. Este, por sua vez, é obrigação imposta àquele em cujo proveito se constitui um direito nos atos de liberalidade.
Assim sendo, a restrição, favorecendo o próprio donatário, não pode configurar encargo, não sendo razoável admiti-la como elemento da doação modal.
Depois, se a restrição, ou a obrigação, for imposta em ato posterior, não haverá associação alguma, e sim dissociação; não existirá encargo, ainda que se lhe dê esse nome.
Finalmente, considerando-se que há obrigação do beneficiado, no adimplemento do encargo – incidindo, portanto, as regras jurídicas sobre validade do negócio jurídico anexo – patenteia-se nulidade de imposição de cláusulas pelo próprio titular de domínio, já que não é lícito tornar inalienável bem de seu próprio domínio.
Notas
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Carvalho, Afrânio. Registro de Imóveis. 3a ed. Rio de Janeiro : Forense, 1982, p. 111. Interessante verificar a concordância do professor fluminense com a tese. Não deve passar desapercebido que o mestre se louvou em decisões do CSMSP, especialmente no Agr. de Pet. 237.990, extensivamente citado abaixo. Não se desconhece, igualmente, a posição de Ulpiano que admitia a figura anteriormente ao Código Civil: "não é necessário que os bens declarados inalienáveis tenham sido diretamente transmitidos ao proprietário: podem ser bens adquiridos com dinheiro doado ou legado, conforme a determinação do doador ou testador." (Souza, José Ulpiano Pinto de. Das cláusulas restrictivas da propriedade. São Paulo : Escolas Prof. Salesianas, 1910, p. 76, § 54). Mas também o mesmo Ulpiano propôs a possibilidade de serem gravados outros bens que porventura já possuíssem os herdeiros, legatários ou donatários – contra o que a doutrina alvejou de restrições e dúvida. Também não se desconhece que Orozimbo Nonato, comentando a clássica posição de Ulpiano tenha concedido mostrar-se a tese "benemérita de aceitação" (Nonato, Orozimbo. Estudos sobre sucessão testamentária. Vol. II. Rio de Janeiro : Forense, 1957, p. 321).
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Não perquiri diligentemente sobre quais seriam os meios legais para que os doadores alcançassem o que pretenderam com a chamada "doação modal". O aconselhamento das partes é tarefa do tabelião (arg. do art. 6o da Lei 8935/94). Por essa razão, não se procurou enquadrar, nas figuras correntias, a hipótese aventada por Ulpiano na citação supra (nota ). Não nos alongamos – por exceder os objetivos deste opúsculo – em distinguir as hipóteses de modus e condição, no caso de doação. Remeto o leitor à síntese oferecida por Orosimbo Nonato, (Op. Cit. p. 280, n. 591, passim). Não se enfrentou, finalmente, a possibilidade de o numerário ser gravado com as cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade, com a condição de sub-rogação de vínculo no imóvel adquirido, reconhecidas as dificuldades para sua sustentação, especialmente pelo fato de que o festejado Agostinho Alvim sugere sua impossibilidade recaindo sobre coisas fungíveis e consumíveis (Alvim, Agostinho. Da doação. São Paulo: RT, 1963, p. 240-241). Vide decisão da 1ª Vara de Registros Públicos da Capital de SP (Proc. 38/89) em que o magistrado, José Renato Nalini, julgando dúvida suscitada, entendeu ser o caso de doação condicional.
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Alvim, Agostinho. Op. Cit. , p. 223
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Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições. 10a ed. Vol. III. Rio de Janeiro : Forense, 1999, p. 158.
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Santos. J.M. de Carvalho. Código Civil brasileiro interpretado. 11a ed. São Paulo : Freitas Bastos, V. XXIII, 1986, p. 320.
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Por todos Alvim, Agostinho. Op. Cit. p. 239, n. 18.
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Nonato, Orozimbo. Op. Cit. , p. 279.
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Miranda. Pontes. Tratado de direito privado. T.5, Rio de Janeiro : Borsoi, 1955, p. 217.
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Miranda, Pontes. Op. Cit. t. LVII p. 64.
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Alvim, Agostinho. Op. Cit. p. 223 e 239, especialmente § 18. Não se ignora que por muito tempo, no passado, a doutrina vacilou na identificação da natureza jurídica das cláusulas restritivas. Afinal, joeiraram-se três teorias: (a) a da incapacidade do proprietário; (b) a da obrigação de não alienar (ou de não fazer); (c) a da indisponibilidade real da coisa. Cfr. o clássico Souza, José Ulpiano Pinto de. Op. Cit., p. 142 passim. Maluf, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. São Paulo : Saraiva, 1981, p. 32. Cfr. ainda a posição de Gomes, Orlando. Sucessões. 6a ed. Rio de Janeiro : Forense, 1992, p. 178 passim
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Miranda, Pontes. Op. Cit. t. XLVI p. 206. Cfr. também, Lopes, Miguel Maria de Serpa. Curso. Vol. III, 3a ed. São Paulo : Freitas Bastos, 1960, p. 414, n. 288 passim. Ennecerus, Ludwig, Kipp, Theodor, Wolff Martin. Derecho de obligaciones. V. II, Barcelona : Bosch, 1966, p. 228 passim. Os tratadistas alemães advertem que a "intenção dos doadores se dirige ao nascimento de uma obrigação efetivamente vinculante, e esta intenção não existirá quase nunca quando o cumprimento seja exclusivamente do interesse do donatário".
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RT 594/103.
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Alvim, Agostinho. Op. Cit. p. 224.
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Por todos Ulpiano (Op. Cit. p. 175, n. 121). Cfr. tb. RT 200/374 e sentença de Gilberto Valente da Silva (RDI 6/158).
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Silva Filho, Elvino. Efeitos da doação no registro de imóveis. RDI 19/20-19. Os acórdãos a que se refere o registrador paulista é o Agr. de Pet. 227.817, DJ de 9/1/94, Rel. Des. José Carlos Ferreira de Oliveira e Agr. de Pet. 237.990, Rel. Des. Márcio Martins Ferreira in Acórdãos do CSM, biênio 1974/1975, p. 122.
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Agr. de Pet. 227.817, já citada.
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Agr. de Pet. 237.990, já citada.
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Cfr. a excelente decisão da lavra do magistrado Kioitsi Chicuta no Processo 518/91, prolatada quando de sua meritória passagem pela Primeira Vara de Registros Públicos de SP. Na verdade, a importância das decisões do Conselho Superior da Magistratura de São Paulo se patenteia neste caso, pois além do trabalho dos registradores Ademar Fioraneli, em parceria com Jersé Rodrigues da Silva, Elvino Silva Filho, a decisão referida na nota acabou fundamentando a posição de Afrânio de Carvalho, na passagem referida na nota .
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Ennecerus, Ludwig, Kipp, Theodor, Wolff Martin. Derecho de obligaciones. V. II, Barcelona : Bosch, 1966, p. 228, § 125. Cfr. ainda Hedemann, J.W. Tratado de derecho civil. Derecho de obligaciones, Vol. III, Madrid : Editorial Revista de Derecho Privado, 1958, p. 289.
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Alvim, Agostinho, op cit. p. 224.
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Por todos Agostinho Alvim, citado extensivamente neste trabalho.
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Miranda, Pontes. Op. Cit. t. XLVI p. 206, § 5014.
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Agr. de Pet. 237.990, já citada.
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Hedemann, J.W. Op. Cit. p. 289, IV.
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O V. acórdão refere-se à 2a edição do conhecido livro do Prof. Agostinho Alvim (São Paulo : Saraiva, 1972, p. 246). Na edição utilizada por este estudo, p. 236, item 14.
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Ennecerus, Ludwig, Kipp, Theodor, Wolff Martin. Op. Cit. p. 228, § 125.
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Loc. Cit.
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Op. Cit. loc. Cit.
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Lopes, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos Registos Públicos. Vol. III, 2a ed. Rio de Janeiro : A Noite, 1950, p. 396, § 567.
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Processo CG 431/96, de 26/2/96, parecer aprovado pelo Des. Márcio Martins Bonilha, Corregedor-geral da Justiça de São Paulo. Cfr. tb. Ap. Civ. 24.858-0/0, Araçatuba, DJ de 26/1/96.
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Ata de correição geral ordinária de 26/5/93, da comarca de Araçatuba, SP.
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Ap. Civ. 26.713-0/4, DJ 6/12/95, Rel. Antônio Carlos Alves Braga.
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Ap. Civ. 135.598-1, Barretos, 15/1/91, Rel. Leite Cintra.
Bibliografia
Alvim, Agostinho. Da doação. São Paulo: RT, 1963.
Carvalho, Afrânio. Registro de Imóveis. 3a ed. Rio de Janeiro : Forense, 1982.
Ennecerus, Ludwig, Kipp, Theodor, Wolff Martin. Derecho de obligaciones. V. II, Barcelona : Bosch, 1966.
Gomes, Orlando. Sucessões. 6a ed. Rio de Janeiro : Forense, 1992.
Fioraneli, Ademar et. al. Boletim do IRIB 81.
Hedemann, J.W. Tratado de derecho civil. Derecho de obligaciones, Vol. III, Madrid : Editorial Revista de Derecho Privado, 1958.
Lopes, Miguel Maria de Serpa. Curso. Vol. III, 3a ed. São Paulo : Freitas Bastos, 1960.
Maluf, Carlos Alberto Dabus. Das cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade. São Paulo : Saraiva, 1981.
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Nonato, Orozimbo. Estudos sobre sucessão testamentária. Vol. II. Rio de Janeiro : Forense, 1957.
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