No modelo francês, o registro é mais fraco
Mónica Jardim
Nos sistemas jurídicos nos quais a constituição ou transmissão dos direitos reais não ocorre com base no mero acordo de vontades das partes, dependendo da verificação de um modo (ato de execução do acordo de vontades previamente firmado, por exemplo, a tradição da coisa e o registro), a situação jurídica dos bens é suscetível de ser facilmente conhecida por parte dos terceiros.
Mônica Jardim em aula proferida em Tiradentes, MG em 27/9/2005. |
Acontece que o Direito francês, desde 1804, consagra um sistema de título e, portanto, a transferência da propriedade e a constituição de outros direitos reais realizam-se por mero efeito do consentimento das partes (conforme os artigos 1138 e 1583 do Código Civil). Por isso, a transferência da propriedade é, em princípio, ignorada pelos terceiros – sobretudo quando a coisa fica (por exemplo, até ao pagamento do preço) nas mãos do vendedor que a pode ceder a um segundo adquirente, ao qual será, posteriormente, oposta à primeira aquisição, o mesmo ocorrendo em relação à constituição de um direito real menor (por exemplo: uma servidão non aedificandi) que é, em regra, ignorada pelo subadquirente do direito de propriedade.
Tentando obviar a estes inconvenientes:
a) No domínio dos bens móveis, a posse é assumida como instrumento de publicidade e entre dois adquirentes sucessivos do mesmo móvel é preferido não o primeiro, mas aquele que tiver obtido a posse da coisa, mesmo que o seu título tenha data posterior, desde que prove que adquiriu a posse de boa fé (artigos 2279, 1 e 1141 do Código Civil) – princípio da posse vale título.
b) Em matéria imobiliária, ao contrário, a posse não confere o direito, conseqüentemente, é necessário que os terceiros sejam informados sobre a situação dos imóveis através de outro meio de publicidade. Tal é conseguido (ou tentado) através do registro, na medida em que a transmissão e a constituição de direitos reais, enquanto não inscritas, são inoponíveis a terceiros.
c) A publicité foncière (publicidade imobiliária) foi introduzida no ordenamento jurídico francês há longa data e têm sido objeto de evolução permanente.
No entanto, a reforma mais significativa surgiu com o decreto-lei de 4 de janeiro de 1955, posteriormente ampliado por decreto de 14 de outubro de 1955, os quais ainda hoje estão em vigor, apesar de algumas alterações posteriores.
Devido à reforma de 1955 e às disposições complementares posteriores, o sistema deixou de padecer de vícios e defeitos que o faziam alvo de múltiplas críticas, tornando-se digno de uma consideração bem mais favorável.
Características da publicité foncière atual
1) O registro é efetuado em repartições públicas – dependentes do Ministério das Finanças – com competência territorial delimitada (Bureau des Hypothèques).
2) O registrador, dotado de um estatuto particular, é um agente da administração fiscal.
3) Não se toma o prédio como unidade registral; o registro não é feito por prédios mas por pessoas, que são o fulcro da atividade do conservador.
Não obstante, desde o decreto de 4 de janeiro de 1955, o sistema francês mistura uma publicidade pessoal com uma publicidade real, uma vez que, apesar das inscrições e das transcrições se fazerem a partir das pessoas (do nome das pessoas), uma busca pode ser feita a partir do índice imobiliário relacionado com o cadastro.
4) Não estão sujeitos a registro todos os atos referentes a direitos reais, mas apenas aqueles casuisticamente assinalados pela lei.
5) O registro das hipotecas e dos privilégios faz-se por “inscrição”; o registro de atos e julgamentos é feito por “publicação/transcrição”;
6) A inscrição das hipotecas e dos ônus imobiliários é facultativa e, portanto, quem não a solicite não se sujeita a outra conseqüência para além da inoponibilidade do seu direito em face de terceiros. No entanto, a verdade é que a referida inoponibilidade torna as garantias em apreço inúteis para os beneficiários.
O registro de atos e decisões judiciais é, regra geral, obrigatório, devendo ser requerido dentro de determinado prazo; no entanto, o conservador não pode recusar o registro após o decurso desse prazo e, portanto, o seu cumprimento não é condição legal para o registro.
7) A falta de realização do registro gera conseqüências diversas consoante os casos: inoponibilidade; impossibilidade de registrar um ato posterior, responsabilidade civil, inadmissibilidade do pedido em certas ações judiciais, etc..
8) O funcionário encarregado do registro não faz a prévia qualificação do ato, limitando-se a examinar os requisitos que lhe são extrínsecos e fá-lo somente de acordo com as regras da publicité foncière. Não vigora, assim, neste sistema, o princípio da legalidade.
9) O registro não gera qualquer presunção iuris tantum de exatidão do seu conteúdo: o que é conforme com a modalidade da sua execução, a qual, envolvendo apenas um controle formal dos títulos não pode, mesmo por via da presunção, atestar a existência do direito na esfera jurídica do titular aparente. Conseqüentemente, o registro apresenta uma fraca força probatória, impedindo que o sistema consagre o princípio de legitimação.
10) A publicidade serve, apenas, para informar terceiros sobre atos já ocorridos e para solucionar conflitos entre titulares de direitos reais concorrentes sobre o mesmo imóvel; por isso, a conseqüência para a falta de publicidade é, em regra, a inoponibilidade.
O registro não é condição de existência ou de validade do ato; ele não é pressuposto para que ocorra a constituição ou transmissão do direito cujo fato aquisitivo é publicado; ele não expurga os eventuais vícios de atos inscritos, conseqüentemente, o registro não garante o adquirente contra o risco de vir a sucumbir em face do verus dominus. Mas o registro é condição de oponibilidade do ato em face de terceiros (para efeitos de registro), protegendo, assim, o titular inscrito perante terceiros que não hajam registrado direitos conflitantes adquiridos anteriormente e cumprindo, nessa medida, o seu papel de instrumento de informação e proteção, que assegura a prevenção de conflitos.
11) Está consagrado, obviamente, o princípio da prioridade;
12) Vigora o princípio denominado de efeito relativo da publicidade, nos termos do qual, nenhum ato ou julgamento pode ser publicado no álbum imobiliário "se o título do disponente ou anterior titular não tiver sido previamente registrado" (artigo 3, al. 1 do decreto de 14 de janeiro de 1955). E todo o documento depositado, quer com o intuito de inscrever uma hipoteca quer com o intuito de publicar outro ato ou julgamento, deve conter uma referência (data, volume e número) ao registro de que foi objeto o título do disponente ou anterior titular do direito (artigo 33 do decreto de 14 de outubro de 1955). Desta forma, assegura-se uma publicidade contínua, ou seja, o conhecimento de toda a cadeia de transmissões que afetaram o imóvel e a cadeia dos sucessivos titulares de direitos.
13) Como a publicidade imobiliária não oferece plena segurança aos adquirentes, tal segurança apenas é obtida, em definitivo, através do instituto da prescrição aquisitiva ou do usucapião.
* Mónica Jardim é Mestra em Direito Civil pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal. É membro do Conselho Editorial do Irib. O texto foi publicado na Revista do SFI, publicação oficial da Abecip. Edição 21, 2005, p. 32-33.
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