(Pré)Compreensões a Respeito da Transferência, Instituição e Extinção do Direito Real de Usufruto.
Ricardo G. Kollet
" O acontecer da interpretação ocorre a partir de uma fusão de horizontes, por que compreender é sempre o processo de fusão dos supostos horizontes para si mesmos. Sempre interpretamos, pois!
E para interpretar, necessitamos compreender. Para compreender, temos que ter uma pré-compreensão ..., constituída de estrutura prévia do sentido ..." Lenio L. Streck
Resumo: Com a vigência do Código Civil de 2002, reacende-se uma velha controvérsia estabelecida pela confusão entre a transferência do direito real de usufruto, a qual sempre foi vedada pelo ordenamento - a não ser em favor do proprietário, quando ocorria a consolidação, forma de extinção do direito real -, e a sua instituição, seja onerosa ou gratuita, seja positiva ou negativa. Neste artigo pretendemos restabelecer o entendimento que já havia sido consagrado e que nos parece não deva ser alterado pela vigência do novo ordenamento privado nacional.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
1 - AS FORMAS CONVENCIONAIS DE INSTITUIÇÃO DO DIREITO REAL DE USUFRUTO
2 - A INTRANSMISSIBILIDADE DO DIREITO REAL DE USUFRUTO
3 - A CONSOLIDAÇÃO E A RENÚNCIA COMO FORMA DE EXTINÇÃO DO DIREITO REAL DE USUFRUTO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
O direito real de usufruto destaca do proprietário atributos inerentes ao direito dominial exatamente como seu nome infere, ou sejam, o uso e o fruto, permanecendo com aquele a denominada nua propriedade, consubstanciada pelo domínio despojado das faculdades de gozar e fruir das utilidades da coisa. Este conceito de usufruto, que vinha expresso no artigo 713, do Código Civil de 1916, não foi reproduzido pelo ordenamento vigente, restando o anterior como embasamento conceitual do instituto.
Ao desenvolver o presente artigo, objetivamos relembrar conceitos já consagrados que permitiram no passado desvendar a polêmica que, em determinado momento, existiu, consistente na confusão entre instituição e transferência por alienação do usufruto. Pretendemos, então, com a revelação destes conceitos, oferecer uma luz que possa dissipar qualquer dúvida eventualmente surgida na colocação do tema pelo ordenamento atual o qual, como tencionamos demonstrar e comprovar, não alterou radicalmente a matéria.
Para tanto, devemos iniciar a exposição repassando os conceitos de usufruto legal e convencional, sendo a abordagem desta última modalidade essencial para o desenvolvimento do problema, haja vista que, no momento de sua configuração, especialmente através da atividade notarial, poderão surgir dúvidas sobre a possibilidade ou não da instituição do usufruto, por ato entre vivos, seja a título gratuito ou oneroso.
Num segundo momento, deveremos fazer uma análise da intransmissibilidade do direito real de usufruto, consubstanciada no ordenamento jurídico, revelando o caráter pessoal do direito real de usufruto e a circunstância da possibilidade de ser cedido tão-somente o seu exercício. Pretendemos demonstrar que a proibição legal, consubstanciada no artigo 1393 do Código Civil, prende-se à transmissão do usufruto já instituído, não devendo ser levada a cabo nos casos onde ainda não tenha havido a instituição nem naqueles onde haverá a extinção pela consolidação.
Por fim, devemos abordar a questão da extinção do usufruto pela consolidação, ou seja, quando a propriedade volta a ser plena - exercida na sua plenitude por uma só esfera jurídica. Tendo em vista que o ordenamento suprimiu a possibilidade expressa de alienação em favor do proprietário, poderá surgir dúvida sobre tal possibilidade. Nesse passo, analisaremos a forma pela qual a consolidação poderá operar-se mediante a transferência do direito real, seja para o nu proprietário ou para um terceiro que, ao se tornar nu proprietário, com a transmissão, passará a ser proprietário pleno consolidado.
Com a pontualização destes conceitos, temos em mente desvelar uma orientação segura para as contratações envolvendo o direito real de usufruto, instituto largamente utilizado pela sociedade durante a sua exemplar vigência, notadamente pela função notarial, exercida pelos notários quando da lavratura destes atos. Para tanto aproveitaremos a longa experiência de vida que o instituto possui, somando as novas tendências que a dinâmica social e o novo ordenamento jurídico impõem, conjugados numa equação que possibilite a obtenção de um resultado satisfatório para o direito e, por conseqüência, para a sociedade.
1- AS FORMAS CONVENCIONAIS DE INSTITUIÇÃO DO DIREITO REAL DE USUFRUTO.
Para bem pontualizar este capítulo, houvemos por bem inicialmente distinguir o usufruto legal do convencional. O primeiro decorre de disposição de legal, ou seja, a lei prescreve determinada circunstância que dá ensejo ao surgimento do direito real, independentemente da vontade das partes. Nesta categoria incluem-se aqueles oriundos do direito de família.
Segundo Caio Mário, o usufruto legal não se enquadra na condição de direito real. O autor revela a natureza obrigacional deste direito, pregando inclusive a impossibilidade de seu acesso ao fólio real (1). Defende, ainda, que o usufruto por efeito imediato da lei, não integra o capítulo dos direitos reais mas sim aquele inerente ao pátrio poder (2). Para o mister proposto neste trabalho, não nos interessa senão fazer menção à existência desta modalidade. O que realmente vai interessar são as formas convencionais de instituição do usufruto, bem como a sua extinção como passamos a analisar.
Podemos perceber que, ao contrário das formas de extinção do usufruto, apontadas no artigo 1.140, do Código Civil de 2002 (antigo 739, do Código Civil de 1916), as formas de instituição do usufruto não são determinadas taxativamente pela lei. Assim, podemos declinar com a doutrina de Serpa Lopes que as formas convencionais de instituição do usufruto são por ato jurídico entre vivos ou por disposição "causa mortis" (3). Por sua vez a instituição por ato entre vivos, segundo o mesmo autor, poderá ser onerosa ou gratuita.
A instituição convencional do usufruto por ato entre vivos - na qual devemos, para alcançar o desiderato proposto, centrar nosso estudo -, a nosso ver, pode ser positiva ou negativa. Positiva é quando o proprietário destaca de sua esfera jurídica os poderes inerentes à propriedade, consistentes no uso e fruição do bem, em favor de terceiro. Será negativa a instituição quando o proprietário transfere a nua propriedade a um terceiro, reservando-se o usufruto sobre o imóvel.
A instituição convencional do usufruto, por ato entre vivos, que houvemos por bem designar como positiva, ocorre quando o proprietário destaca do seu direito os atributos inerentes ao usufruto (uso e fruição), em favor de terceiro, de forma gratuita ou onerosa, instituindo assim o direito real de usufruto. Esta modalidade comporta ainda que o proprietário transfira, por instituição, o usufruto para uma esfera jurídica e a nua propriedade para outra.
Assim, podemos fazer crer que, originariamente, poderá ser feita uma compra e venda ou doação onde, paralelamente à alienação ou transferência da nua propriedade, seja instituído o usufruto, sem contrariedade aos dispositivo legal contido no artigo 1.393 do Código Civil, como voltaremos a argumentar oportunamente.
Chamamos de negativa a modalidade de instituição de usufruto quando o mesmo permanece, por reserva, na esfera jurídica do proprietário. Não há neste caso uma instituição propriamente dita. Ocorre tão-somente o destaque da propriedade despojada dos caracteres que configuram o usufruto, o qual permanece reservado àquele que era proprietário e passa a ser usufrutuário. Esta modalidade, a nosso ver, é admitida tanto na doação da nua propriedade quanto na compra e venda da mesma.
Este entendimento foi expressado por Serpa Lopes, apud, M.I. Carvalho de Mendonça, de forma absoluta quando asseverou:
O usufruto, instituído entre vivos, pode assumir as seguintes formas:
a) pode o doador alienar pura e simplesmente a propriedade despida do uso e gozo, reservando estes para si;
b) pode dispor do uso e gozo, reservando para si a propriedade;
c) pode instituir conjuntamente dois titulares, deferindo a um a propriedade e a outro o uso e gozo. (4)
Entretanto, como o atento leitor pôde perceber, as situações propostas pelo ilustre tratadista dizem respeito à instituição pelo "doador". A questão que se arvora é saber se podemos aplicar a mesma lógica para a compra e venda, ou seja: o proprietário aliena, a título oneroso, a nua propriedade em favor de terceiro, reservando-se o usufruto (instituição negativa); o proprietário institui, a título oneroso, o usufruto em favor de terceiro e reserva o usufruto; ou, ainda, vende a nua propriedade e institui o usufruto onerosamente, em favor de esferas jurídicas diversas.
O mesmo tratadista, do alto de seu conhecimento jurídico, ao pronunciar-se sobre a questão, reproduzindo decisão de sua lavra, na qual julgou improcedente dúvida sobre a registrabilidade de escritura de compra e venda, lavrada nos moldes acima propostos, ou seja, a nua propriedade para o casal e o usufruto para os filhos, nos responde cifradamente:
Por escritura lavrada em notas do Tabelião ... Arlindo Borges de Freitas e sua mulher venderam vários lotes de terreno, especificados na escritura a Manuel da Silva Quinta, sendo que a este a nua propriedade, e aos primeiros o usufruto dos referidos lotes.
...
Depreende-se facilmente, ante a lição supra, que a escritura impugnada não encerra nenhuma aberração jurídica, mas se trata de um ato perfeito, apto a ser transcrito e só de extraordinário possui a sua raridade.
IV) Deve, portanto, ser transcrita a escritura objeto da dúvida, fazendo-se a transcrição da alienação da nua propriedade e a inscrição da constituição do usufruto, nos competentes livros. ... (5).
A dúvida dissipada magistralmente pelo Dr. Miguel Maria de Serpa Lopes, no ano de 1939, parece querer reacender sua tênue labareda, tendo em vista a alteração constante do novo ordenamento civil brasileiro, notadamente no artigo 1393 (antigo 717). A nosso ver, ela revela pouca luminosidade para tentar ofuscar a resplandecência da vetusta decisão. Na tentativa de manter o brilho desta chama, analisaremos, no próximo capítulo, os aspectos sobre a intransmissibilidade do direito real de usufruto.
2- A INTRANSMISSIBILIDADE DO DIREITO REAL DE USUFRUTO.
O ordenamento civil anterior, em seu artigo 717, previa que o "usufruto só se pode transferir, por alienação, ao proprietário da coisa". O ordenamento atual prevê, em seu artigo 1.393: "Não se pode transferir o usufruto por alienação".
Conforme Viana, ao comentar o dispositivo em questão, o mesmo "já se encontrava no direito anterior", sendo que a "linguagem atual é mais objetiva, ressaltando o caráter inalienável do usufruto". Para o doutrinador, houve somente uma adequação na linguagem, o que nos leva a crer na permanência do traçado essencial do instituto, ou seja, somente não poderá ser transferido por alienação usufruto já constituído regularmente. (6)
Segundo parte da doutrina, a inalienabilidade do direito real de usufruto foi concebida pelo legislador no intuito de proteger o usufrutuário, tendo em vista que em geral o mesmo é instituído para amparar pessoas desprotegidas ou mesmo como auto-proteção para o próprio doador quando reserva o direito. Nesse sentido, o entendimento de Venosa quando assevera: "Como geralmente é ato benéfico, a permissão de alienação suprimiria sua finalidade". (7).
O que é permitido ao usufrutuário, em usufruto prévia e regularmente constituído, é a faculdade de ceder o exercício do direito em favor de terceiros. Esta prerrogativa vem materializada pelo próprio artigo 1.393, segunda parte, quando permite a cessão do exercício, a título gratuito ou oneroso. No caso de cessão do usufruto por tempo indeterminado, extinguindo-se o direito principal (usufruto) por qualquer das formas previstas pelo artigo 1.410, extinguir-se-á também o direito do cessionário, tendo em vista a consolidação da propriedade. Não é outro o entendimento de Caio Mário, quando expressa:
A primeira questão atraindo a atenção do civilista diz respeito ao exercício do direito , no sentido da percepção efetiva ou material da utilização da coisa. Procede o usufrutuário normalmente em pessoa, realizando as colheitas, recebendo juros, dividendos e aluguéis, etc. Nada impede, todavia, que o faça por outrem, a quem cede a percepção dos frutos, no todo ou em parte. Daí dizer-se que é lícito ceder o exercício do usufruto, o que o Direito Romano já autorizava, como se infere da passagem de Ulpiano, ao aludir à fruição pelo usufrutuário mesmo e à faculdade de alugar e vender: usufructuarius vel ipse frui ea re, vel alii fruendum vel locare, vel vendere potest (Digesto, Liv. 7, Tít. I, fr. 12 parágrafo 2o ). O mesmo princípio vigora em nosso direito, permitindo-lhe usufruir em pessoa o prédio, com sua habitação ou instalação, bem como arrendá-lo, mas sem mudar-lhe a destinação econômica, a não ser mediante expressa autorização do proprietário (Código Civil, art. 1399). (8)
Outra questão a ser levada a efeito diz respeito à sanção que deva ser cominada na eventualidade de o usufrutuário transferir por alienação seu direito a terceiros.
Entendemos que não se trata de causa invalidante absoluta tendo em vista que esta sanção somente é aplicada quando a lei taxativamente declarar o ato nulo, ou proibir-lhe a prática sem cominar sanção (art. 166, VII, CCB). Neste caso a lei proíbe a prática ( "não se pode transferir o usufruto por alienação") no artigo 1.393 e comina a sanção no artigo 1.410, VII, ou seja: "O usufruto extingue-se, cancelando-se o registro no Cartório de Registro de Imóveis: ... por culpa do usufrutuário, quando aliena ...".
Portanto, ao que parece, o princípio protetivo do usufrutuário, pregado pela doutrina, se relativiza na medida em que o ordenamento permite de um lado a renúncia voluntária e de outro determina que no caso de alienação resulte extinto o direito, efetivando-se, num e noutro caso, a consolidação da propriedade.
Parece ficar claro, então, que a intransmissibilidade do direito real de usufruto somente vai incidir quando se fizerem presentes os seguintes suportes fáticos: a) que haja existência de usufruto regularmente instituído; b) que a causa do título de transferência seja a alienação (compra e venda, doação, cessão do usufruto); c) que haja intenção do usufrutuário de alienar, não se configurando as hipótese de renúncia ou consolidação previstas em lei.
Podemos exemplificar um caso de alienação vedada pelo ordenamento quando "A" é usufrutuário, "B" é nu proprietário e "A" doa seu direito de usufruto para "C". Neste caso estariam presentes todos os elementos da previsão normativa. Configurar-se-ia, então, a hipótese fática, criando para o nu proprietário o direito subjetivo de ver extinto o usufruto e ter a propriedade plena consolidada em seu nome, nos termos do artigo 1.373, combinado com o 1.140, inciso VII, ambos do CCB.
Se, ao contrário, na mesma situação "A" e "B" resolvem doar o imóvel para "C", não há infringência do dispositivo legal, pois a relação jurídica poderá ser decomposta da seguinte maneira: "B" doa a nua propriedade para "C", enquanto que "A" renuncia ao usufruto, consolidando a propriedade em "C", sendo todas as figuras típicas e possíveis no ordenamento.
Mesmo se considerarmos a nulidade do ato de transmissão, por alienação, do usufruto, o que não nos parece ser o mais correto, conforme já argumentado, esta circunstância não contraria a argumentação planteada no capítulo anterior. O suporte fático da norma jurídica do artigo 1.393 refere-se a usufruto já regularmente instituído, não atingindo a regular instituição ou reserva de usufruto a título originário.
Esta situação já vinha se operando normalmente na vigência do Código Civil de 1.916, no qual existia dispositivo semelhante a respeito da inalienabilidade do direito real de usufruto. A adequação redacional do artigo em tela não apaga todo o entendimento que levou muito esforço para ser construído. Assim, temos que a orientação contida na doutrina de Serpa Lopes continua com sua clareza e luminosidade intactos. É o que podemos auferir da lição de Maluf, nos comentários que faz ao artigo 1.393, em obra coordenada por Fiúza, quando expressa:
O usufruto é inalienável, mas pode ser cedido a título gratuito (comodato) ou até oneroso, como, por exemplo, o contrato de locação. Admite-se a penhora do usufruto, mesmo que o usufrutuário resida ou não no bem onerado (JTACSP, 126/18).
O dispositivo equipara-se ao art. 717 do código Civil de 1916, com considerável melhora em sua redação. No mais, deve ser-lhe dado o mesmo tratamento doutrinário dispensado ao artigo apontado. (negritamos) (9)
Entretanto, quando no caso do usufruto já regularmente instituído, usufrutuário e nu proprietário resolverem se desfazer do bem em favor de terceira pessoa, operando-se a consolidação numa esfera jurídica alheia à relação original - considerando que a possibilidade jurídica da renúncia opera a consolidação em favor do proprietário original -, como deve o intérprete, notadamente da área notarial, percorrer os corredores que se lhe oferecem à caminhada? É o que pretendemos declinar no próximo capítulo.
3- A CONSOLIDAÇÃO E A RENÚNCIA COMO FORMAS DE EXTINÇÃO DO DIREITO REAL DE USUFRUTO.
Até o presente momento parece ter ficado patente que é possível juridicamente a instituição do usufruto, mediante ato de vontade, gratuito ou oneroso, de forma positiva, ou seja, quando o proprietário destaca o uso e a fruição do seu imóvel em favor de esfera jurídica alheia, ou de forma negativa, quando este destaca a nua propriedade e reserva-se o direito de usufruto.
Uma vez instituído o usufruto concluímos, juntamente com o ordenamento jurídico e a mais avalizada doutrina nacional, que o mesmo somente poderá ter seu exercício transferido, mediante cessão (onerosa ou gratuita), ficando vedada a transferência, por alienação, do direito real em si.
Entretanto, outra situação que se afigura é quando proprietário e usufrutuário pretendam transferir, por alienação, seja gratuita ou onerosa, a propriedade plena em favor de terceiro?
Segundo o Código Civil brasileiro, artigo 1.410, que trata da extinção do usufruto, dois caminhos são colocados à disposição do operador do direito para resolução desta questão: um pela alienação conjunta do bem, quando haveria a extinção do direito real pela consolidação na nova esfera jurídica (inciso VI) e outro pela alienação por parte do nu proprietário em favor de uma terceira esfera jurídica e a posterior renúncia do usufrutuário (inciso I), operando-se a consolidação em favor da mesma.
No primeiro caminho, haveria a transmissão da propriedade plena. Esta possibilidade poderá encontrar óbices de natureza fiscal, notadamente quando se tratar de doação, visto que, no Estado do Rio Grande do Sul, incide o imposto de transmissão tanto na renúncia voluntária do usufruto, quanto na transmissão da nua propriedade. Entretanto, analisando-se sob uma ótica puramente jurídica, a transmissão, neste caso, seria da propriedade plena como unidade material e não dissociada de acordo com as relações jurídicas preexistentes. Resulta, a nosso ver, possível tal providência, devendo o notário, diante de um caso concreto, submeter à autoridade fiscal competente, seja municipal ou estadual, para que a mesma proceda a fixação da incidência do imposto respectivo.
No segundo caminho oferecido haveria primeiro a transmissão da nua propriedade a uma terceira esfera jurídica e, em ato simultâneo e subseqüente, a renúncia do usufruto, operando-se, então, a consolidação da propriedade plena nesta terceira esfera jurídica. Neste caso, também deve o notário atentar para a questão do imposto de transmissão, a cargo da unidade fazendária respectiva. Deixamos de abordar a questão do imposto de transmissão mais amiudemente por não ser tema central do presente debate.
O que pretendemos deixar fixado é que, seja qual for o caminho escolhido pelo operador para resolver o problema proposto, o propósito final das partes envolvidas estará devidamente amparado pelo ordenamento jurídico pois estaremos tratando de extinção do direito de usufruto, seja pela consolidação ou pela renúncia, institutos devidamente prescritos em lei.
A doutrina é consentânea em admitir tais formas de extinção do usufruto. Para pontualizar a questão trazemos a lição de Caio Mário, atualizada segundo o Código Civil de 2002 por Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho, quando expõe:
...Pela consolidação, quando, na mesma pessoa, se reúnem as condições de usufrutuário e nu proprietário, como no caso de adquirir ele a propriedade da coisa frutuária, por ato entre vivos ou causa mortis: finitur usus fructus ... si fructuaris proprietatem rei adquisierit, quae res consolidatio appelatur ( Institutas, Liv. III, Tít. IV, parágrafo 3o )...
... Pela renúncia. O novo código civil incluiu, no rol das causas extintivas, a renúncia, hipótese que a prática dos negócios, muitas vezes, suscita. Trata-se de um direito patrimonial de ordem privada, e, como tal, suscetível de renúncia, que muito freqüentemente se dá no momento em que usufrutuário e nu proprietário alienam o bem frugívero (sic). A renúncia pode ser gratuita e extinguir simplesmente o usufruto; ou onerosa sob a forma de venda ... (10)
Devemos ainda, na busca de esgotar as situações fáticas que possam decorrer do assunto em pauta, trazer à colação o fato consistente na pretensão de determinado usufrutuário e nu proprietário pretenderem transferir seus direitos a duas órbitas jurídicas distintas. Explicamos: quando nu proprietário e usufrutuário resolvem transferir, por alienação, respectivamente, seus direitos para nu proprietário e usufrutuário distintos. Neste caso, resultaria impossibilitada a pretensão pois a mesma estaria em desacordo com o preceituado no artigo 1.393 do Código Civil.
O deslinde desta questão, a nosso ver, poderá ser otimizado de duas formas: a primeira seria através da renúncia por parte do usufrutuário, consolidando a propriedade no nu proprietário e este, por sua vez, repassa para as órbitas jurídicas alheias separadamente a nua propriedade e o usufruto, conforme mecanismo devidamente delineado anteriormente; a segunda, através da transmissão pelos dois em favor de uma só esfera jurídica alheia e esta, por sua vez, institui o usufruto em favor da outra, positiva ou negativamente, conforme for a intenção.
CONCLUSÃO
Sob a égide do ordenamento jurídico instituído pelo Código Civil de 1916, onde constava expressamente que o usufruto somente poderia ser transmitido, por alienação, ao proprietário da coisa, o entendimento consagrado foi no sentido de que esta norma somente incidiria se já estivesse constituído o usufruto, conforme a doutrina de Serpa Lopes, retro mencionada, baseada em ilustrada decisão que o mesmo proferiu no caso concreto já nos idos dos anos trinta do século passado.
Sem sombra de dúvidas, não ocorreram modificações significativas no ordenamento privado nacional que tenham ofuscado, sequer de passagem, tal orientação. A instituição originária do usufruto, seja gratuita ou onerosa, positiva ou negativa (termos cunhados para este ensaio), é perfeitamente possível juridicamente.
Assim, os notários que devam erigir os propósitos econômicos dos interessados - consistentes na aquisição do usufruto por uma esfera jurídica e da nua propriedade por outra - à categoria de jurídicos, poderão perfeitamente lavrar uma escritura de compra e venda da nua propriedade com instituição onerosa de usufruto. Preferencialmente deve ser adotada esta terminologia a fim de não confundir-se a instituição originária de usufruto com a transferência por alienação, vedada pelo ordenamento.
O mesmo poderá ocorrer com relação à instituição de usufruto que ousamos denominar negativa, quando o doador ou vendedor, por exemplo, aliena tão-somente a nua propriedade, reservando-se o direito real de usufruto, que já se encontrava em seu âmbito jurídico.
Quando o usufruto já estiver instituído e pretenderem, nu proprietário e usufrutuário, alienar a coisa como propriedade plena, a mesma poderá ser feita por um dos caminhos declinados no capítulo terceiro deste artigo, quais sejam, diretamente ao terceiro ou primeiramente transmitindo a nua propriedade e em seguida renunciando o usufrutuário ao direito real. A consolidação da propriedade plena na esfera jurídica do terceiro resulta configurada num e noutro caso.
A transmissão simultânea do usufruto e da nua propriedade respectivamente para duas outras órbitas jurídicas, conforme declinamos seria contrária ao ordenamento. Faz-se necessário primeiramente a renúncia do usufrutuário, para que o proprietário pleno possa instituir originariamente o usufruto ou, a transmissão da propriedade plena a uma das esferas jurídicas alheias a qual, por sua vez, procederá à instituição originária do usufruto, positiva ou negativamente.
Devemos atentar, em qualquer dos casos, para as normas relativas ao imposto de transmissão, particulares a cada Estado, no caso de transmissão gratuita, ou a cada município, no caso de transmissão onerosa. À autoridade fazendária competente é atribuída a responsabilidade pela fixação do imposto devido.
Estas são as breves anotações que houvemos por bem oferecer a nossos leitores no intuito de proporcionar um (re)posicionamento dos institutos da extinção, instituição e transferência do direito real de usufruto, exatamente no sentido de propiciar uma interpretação baseada numa "pré-compreensão", na linha proposta por Streck (11), ou seja, que permita aos operadores, especialmente da área notarial, estabelecer uma "fusão nos horizontes" revelados pelo instituto em seu duplo espectro, ou seja, no antigo e no novo ordenamento privado nacional.
* O autor é Tabelião e Registrador Civil em Porto Alegre - RS, Especialista em Direito Notarial e Registral pela UNISINOS e Mestrando em Direito pela UNISC.
Notas
(1) Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p 292.
(3) Lopes, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos Registros Públicos. 6a Ed. - Brasília: Livraria e Editora, 1997, tomo III, p. 176.
(6) Viana, Marco Aurélio da Silva. Comentários ao Código Civil, volume XVI: dos direitos reais / Marco Aurélio S. Viana. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 632
(7) Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil (Coleção Direito civil). 3a ed. - São Paulo: Atlas, 2003, p. 436.
(9) Fiuza, Ricardo. Novo Código civil comentado / coordenador Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 1227.
(11) Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2a Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 197.
REFEERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Fiuza, Ricardo. Novo Código civil comentado / coordenador Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2002.
Lopes, Miguel Maria de Serpa. Tratado dos Registros Públicos. 6a Ed. - Brasília: Livraria e Editora Brasília Jurídica, 1996.
Pereira, Caio Mário da Silva. Instituições de direito civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
Streck, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e hermenêutica: uma nova crítica do direito. 2a Ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
Venosa, Silvio de Salvo. Direito Civil (Coleção Direito civil). 3a ed. - São Paulo: Atlas, 2003.
Viana, Marco Aurélio da Silva. Comentários ao Código Civil, volume XVI: dos direitos reais / Marco Aurélio S. Viana. Rio de Janeiro: Forense, 2003.
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