S. Gregório, os notários e a fé pública
Sergio Jacomino
Ora et labora.
Dia 4/8/99, dia do padre.
A saída de Franca foi tumultuada. O corre-corre típico de afazeres de última hora. A mala, os telefonemas inadiáveis, o azáfama de decisões derradeiras. Enfim, desgaste desnecessário. Ou não.
Mas, o dia prometia. Logo após exercitar o ritual diário do pé direito no chão, de experimentar a firmeza do cosmo pela certeza do Cascolac frio, veio a primeira grande descoberta. Ainda embaciado pelas brumas do símbolo e do sonho, dei-me de cara com o livro árabe Histórias da tradição Sufi, disposto distraidamente sobre a cômoda. Tesouro presenteado pelas mãos abençoadas de Petelinkar. Logo deixei-me levar pela história de Zadig. Inesperadamente, de maneira definitiva e fugaz, fui atingido por um raio! Transfigurada a certeza em plena incerteza, a clareza pelo seu contraste, pude então percorrer cada linha, experimentar cada sentido, recuperando a posse de um código há muito perdido. O livro iluminava velhos caminhos da alma. O escrito verberava em cada canto de mim! Por mais estranho que possa parecer, aquele texto agora me examinava, sobranceiro, decifrava-me, deliciava-se do meu assombro. A sua personalidade se manifestava no vivo de sua voz. O mapa de meu coração estava decifrado. Tudo então se fez compreensão, absoluta e perfeita. Tão perfeita, que poderia jurar que a alcançaria com as próprias mãos. Ou com o coração. Chorei. Como resposta à minha angústia, a pequena história do ermitão desarmou a dura cerviz. A indignação que assomava, a resistência que se articulava contra as duras injustiças, incompreensíveis e inaceitáveis desmandos, tudo foi sendo superado por uma compreensão superior e ativa, por paradoxal, na aceitação dos fatos. Mas, estava agora convencido de que esses fatos não são mais do que meras representações. Uma em várias. Várias em Milhões. Mas há uma certa tessitura, urdida nos misteriosos caminhos do espírito, que aponta numa justa direção: o vento sopra onde quer, e ouves a sua voz. É preciso ter paciência e humildade. Fico sempre agradecido por ser introduzido nos mistérios da compreensão. Um sábio sacerdote, esse Petelinkar. Foi o Padre homenageado nesse grande dia.
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Cenóbio.
O claustro é apavorante. O silêncio emoldura a algaravia interior. Amplifica a desordem. Magnifica o vozerio desafinado dos pensamentos desencontrados. Caos.
5/8
Mas o silêncio nos coloca diante de uma premente necessidade: agir. Sim, agir. A vida contemplativa dos mosteiros é ação em harmonia. É concentrar-se para o equilíbrio. É o trabalho da transformação. Caminhadas solitárias na manhã fria e escura.
Os salmos se alternam nas vozes que buscam. O que buscam? Sei o que busco: sentido e harmonia. Disciplina e coragem. Despi-me diante do altar e a minha busca está em busca de si mesma. Como buscar? Fixei-me em cada palavra, haurindo todo o sentido que pudesse oferecer, em diligente busca de cada idéia que pudesse desentranhar. Mas, não há respostas. Só o palavrório, palavras despidas de ânimo. Mas há sua contraparte: o silêncio. E a música maviosa das palavras em louvor. O som, o som que ecoa pelas reentrâncias do templo, no tempo. O som. Reverbera um longínquo sentido, verbo da alma, sua linguagem ancestral é ruínas da alma, clara, calma, suave, salmo. O verbo. Sua ação acústica faz vibrar cordas secretas, abrem-se as portas da cidadela fortificada.
Pela manhã, o cochilo. Havia algo de muito sério para resolver. Sei lá o quê! Cai num sono entrecortado de sustos e suspiros.
À tarde o sol lambe gostosa e preguiçosamente os bancos do jardim. Como o tempo parece correr lentamente nas tardes de Claraval!
É noite. Desci as escadas na escuridão. Sinto o pulso alterado. O medo é tão antigo quanto o luar.
10/8 – Dei famulus.
Meu confrade. Suas mãos instruídas guiam-me, seguras, na descoberta de formas essenciais entranhadas na madeira bruta. Minha idéia tosca, meus parvos projetos, esbarram nas formas que se fazem concretas, pouco a pouco, inesperadamente. A madeira se transforma, de dura indeterminação, potência essencial, descerram-se belas formas: compreendo, então, que todas as obras louvam e encaminham-se a Deus – quod omnia intendunt assimilari Deo. Toda a matéria está impregnada do Altíssimo. A lavra na madeira bruta é um ato de amor e louvor. E de sabedoria. Revelam, nos detalhes, os mistérios da criação.
Sinergia.
Senti o coração do torno. Tomei-lhe o pulso de energia abundante e generosa. Auscultei seus intestinos. Vi o seu centro tranqüilo e poderoso, onde tudo é repouso e movimento. E soube que já sabe de mim.
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Notarius – sub brevitate scribere.
O que se sabe de Santo Ambrósio, além das precárias fontes gregas, chegou até nós pelo zelo de Santo Agostinho, que desde a África, encarregou Paulino, antigo notário da Igreja de Milão, de redigir-lhe a biografia. Mais ainda. Segundo nos informa Schuster, faziam parte da vida quase conventual dos clérigos que cercavam S. Gregório, dois notários: Emiliano e Patério, todos notáveis, distintos pela cultura e pela excelência de virtude, sendo que este último publicou, sancionado pelo escrupuloso rigor crítico do Papa, uma antologia de comentários bíblicos de Gregório.
Tudo isso me remete, novamente, à madeira informe, grávida de cálices e malgas. Tanger a Verdade e dela haurir os atributos de fidelidade, exatidão, constância, firmeza, e plasmar a afirmação fidedigna: testemunho de fatos e atos da vida. Eis o meu ofício! Ars notarie.
11/8/99
Isaías e a brasa do altar
"Vê, isto tocou os teus lábios,
a tua iniqüidade está removida,
o teu pecado está perdoado". (Is. 6)
Tarde única. Borrada de sanguinolência solar. Outeiros alaranjados de Claraval, cimos tingidos de matizes de fucsinas. As colinas ardendo em bandeiras rosáceas e carmim. Os elementos são testemunhas do meu arrebatamento.
Não pude deixar de pensar em entropia. Nem no seu reverso complementar: o enguiço cósmico emoldurou uma nova aliança. A absolvição de meus pecados.
Dei gratia!
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