BE2750

Compartilhe:


Estatização de cartórios
Um bom mau exemplo!


Nas peregrinações que tenho feito Brasil afora, proferindo palestras e participando de eventos em parceria com o Governo Federal, tenho me deparado com situações paradoxais representadas pelos mais variados modelos de organização da publicidade registral.

Basicamente encontramos três tipos de cartórios: serviços efetivamente delegados, em que se podem citar, como exemplos paradigmáticos, os Estados como São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, que conheço muito bem em virtude da proximidade e do exercício da delegação. São serviços prestados de maneira exemplar e fiscalizados efetivamente pelo Poder Judiciário. Os serviços parcialmente  delegados, onde não há concursos públicos para provimento dos cartórios e os serviços estão sendo desempenhados por dublês de escrivães judiciais e notários e registradores. E por fim, há os serviços estatizados, cujo exemplo emblemático é o Estado da Bahia.

Filas, burocracia, corrupção na prestação de serviços essenciais à população

A reportagem abaixo, de Ana Carolina Araújo, mostra a situação naquele Estado. A notícia  traz informações sobre valores cobrados pelos cartórios de São Paulo, mas não explicita que parte expressiva dos valores (quase 50%) são custas e contribuições dos Estados agregadas aos valores cobrados efetivamente da população. Além disso, faz comparações entre serviços distintos – uma coisa é o reconhecimento de firma por semelhança, outra muito diferente é o ato notarial autêntico, que envolve um procedimento complexo de notarização.

Tendo em vista as propostas recorrentes de estatização de serviços notarias e de registro, seria interessante conhecer de perto esses exemplos, a começar pelo Estado da Bahia. Veja a integra da reportagem aqui. (SJ)

CORREIO DA BAHIA
http://www.correiodabahia.com.br

Cartórios de Salvador oferecem atendimento lento e deficiente

A morosidade para retirar os documentos incomoda e prejudica a população e, em diversos casos, é necessário pagar ‘um extra’ aos funcionários para agilizar a realização de serviços muitas vezes essenciais.

Ana Carolina Araújo

Praticamente todos os baianos já passaram por isso ou conhecem alguém que, em algum dia, precisou dos serviços de um cartório extrajudicial – leiam-se cartórios de notas, registro civil e imóveis. Com poucas exceções, os comentários sobre esses episódios se parecem com tragédias gregas. Espera sem fim, mau atendimento e informações truncadas estão entre as principais queixas, mas não pára por aí. Em alguns casos, a obtenção de documentos em prazos justos depende do conhecido “guaraná”. Entre classes que freqüentam diariamente os estabelecimentos, como motoboys e despachantes, o assunto é falado abertamente.
 
Os cartórios extrajudiciais são concessões públicas na maior parte do país. Através de uma concorrência, bacharéis de direito conseguem a possibilidade de explorar o serviço e o fazem com tudo o que o termo significa. Em geral, a equipe de trabalho é integrada por pessoas de uma mesma família e o serviço é prestado como cada tabelião decide. Por lá, a concorrência para a vitória dos editais é feroz e, sempre que possível, passa de pai para filho.
 
Em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, famílias formaram fortuna atuando na área, e outras esperam a oportunidade de uma nova seleção para entrar no ramo. O faturamento é certo. Em Brasília, por exemplo, a autenticação ou reconhecimento de firma de cada página de documento custa R$1,89, quase o dobro de Salvador (R$1). Mas isso não é nada perto dos R$6,70 cobrados para o reconhecimento de autenticidade no estado de São Paulo. Lá, a autenticação custa R$1,70, mas se o cidadão não levar a fotocópia do documento, paga mais R$0,30 por face a autenticar.
 
Legislação - Entre os estados brasileiros, só a Bahia e o Acre ainda têm cartórios públicos, e este último já lançou edital para a concessão pública do serviço. Por aqui, continua a espera para a nova Lei de Organização Judiciária, pois a que vigora é de 1979. De acordo com a presidente do Sindicato dos Serventuários do Poder Judiciário (Sinpojud), Maria José Silva, espera-se que, com a promulgação, os cartórios ganhem mais do que os quatro escrivães, dois subtabeliões e um tabelião titular com os quais contam hoje. “Temos uma equipe desenhada para a década de 70, mas a população do estado já triplicou nesse tempo”, alfineta ela.
 
A presidente do Sinpojud não clama pela privatização dos tabelionatos, que tiraria dos seus quadros os funcionários públicos. Já a representante da Associação Nacional de Notários e Registradores do Brasil (Anoreg), a tabeliã Ivanise Pinto Varela, lamenta que a instituição tenha pouquíssima representatividade no estado. “A Anoreg funciona como um sindicato. Como aqui somos funcionários públicos, a atuação é quase nula. Somos representados pelo Sinpojud”, justifica.
 
O vice-presidente da Anoreg Brasil, Cláudio Marçal Freire, diz sentir falta da participação da Bahia nos trabalhos da instituição. Concessionário do 3o Tabelionato de Protesto de Títulos de São Paulo, ele garante que a privatização da operação dos cartórios melhora a qualidade dos serviços e ajuda a minar a corrupção.
 
Por um lado, Freire explica que os cartórios privados têm a intenção de atender, já que precisam de produtividade para garantir os lucros. Ele conta que, em discussões sobre o funcionamento dos cartórios, é informação corrente que o sistema baiano é lento, o que provavelmente não aconteceria se fosse gerido pela iniciativa privada. Outro ponto apontado pelo bacharel em direito é o temor dos tabeliões em perder suas concessões. “O estado é ineficiente como executor, mas é um excelente fiscalizador”, sugere.

Despachantes ajudam a vencer burocracia
 
Uma pesquisa feita com 69 países pela ONG Transparência Internacional mostrou que 9% dos cidadãos diziam ter pago propina ou ter alguém na família que o fez no ano anterior. No Paraguai, Camboja e Camarões, o índice foi campeão: 43%. Já em Hong Kong, Japão, Holanda e Espanha, menos de 0,5% dos entrevistados disseram ter pago propina no último ano. A intenção do estudo era mostrar que as pessoas mais pobres são mais atingidas pelo problema, pois têm o acesso dificultado aos serviços essenciais. O Brasil não foi incluído no estudo, mas há dados empíricos mostrando que a situação por aqui também não é das mais fáceis.
 
Embora sejam responsáveis pelos atestados de autenticidade legal dos documentos emitidos em um país, em muitos casos os cartórios acabam sendo o local onde se pode realizar um ato falso com respaldo legal. Além da corrupção, os mecanismos de atestado são limitados. Alguns escrivães reconhecem a mesma firma que outros afirmaram ser falsa. O que for confirmado em um cartório é tomado como certo, até porque é difícil duvidar de uma autenticação.
 
A resposta a uma enorme burocracia foi o surgimento dos despachantes, que aliviam o cidadão da ginástica de se desenrolar de um emaranhado de documentos e prazos. Algumas vezes, eles ganham só para fazer o que o cidadão não está disposto, como passar horas em filas e rodar a cidade para resolver um problema. Outras são a única forma de ultrapassar certas “barreiras” da burocracia. Ou seja, o que não é possível para o cidadão, como que por “milagre”, se resolve nas mãos do despachante.
 
Para os mais apressados, os valores cobrados são nada perto do tempo e dos aborrecimentos que seria preciso enfrentar. É quando o cidadão comum percebe que, medidas as devidas proporções, não é tão difícil escorregar e cair nos valeriodutos. A jornalista Sandra* conta que precisou pagar R$300 ao escrivão de um cartório da cidade para que os documentos para a compra de seu apartamento não demorassem meses para sair.
 
Ela poderia ter resolvido o problema sem sequer ver o rosto do escrivão se tivesse procurado um despachante, caminho escolhido por muitos donos de imóveis de Salvador. Um dos mais populares e conhecido como Zé pode ser encontrado quase todos os dias no saguão da 2a sobreloja da Fundação Politécnica (Av. Sete de Setembro), onde funcionam vários tabelionatos de registros de imóveis. “Eu mando aqui. Trabalho com esses cartórios há 25 anos. É só me dar os documentos que eu analiso a situação e digo quanto custa. Pode ser R$500, pode ser R$3 mil”, explica, garantido ter todos os “canais” na área. “Eu não sou qualquer canal. Eu sou o canal 11, brinca”, se referindo a uma emissora de TV de grande audiência.
 
Embora despachantes e contribuintes relatem a situação em detalhes, quem trabalha nos cartórios nega veementemente a situação. “Ao acusador, o ônus da prova.” Essa é a expressão mais ouvida quando se pergunta a um dos servidores sobre a existência de fraudes e corrupção dos cartórios que dirigem, mesmo que em tempos passados.
 
A tabeliã Ivanise Pinto Varela, do 6o Ofício de Notas, no Comércio, garante que lá não há corrupção. Segundo ela, em muitos casos são os despachantes que cobram propinas e dizem a seus clientes que o dinheiro é para alguém nos cartórios. Mas ela faz ressalvas. “Pode acontecer em qualquer categoria, porque não podemos responder por todo o mundo. É a célebre ‘urgência’ que se conhece. Mas, se for o caso, a corregedoria apura”, afirma ela.

Tribunal não se pronuncia
 
O Artigo 260 da Lei de Organização Judiciária (9.832/05) diz que os serventuários da Justiça estão sujeitos às seguintes penas disciplinares: advertência, censura, suspensão e demissão. O artigo 262 prevê a demissão do servidores nos casos de crime contra a administração pública, recebimento de propinas ou prática de qualquer outra forma de improbidade.
 
A Corregedoria Geral da Justiça (CGJ) é quem fiscaliza o trabalho desempenhado pelos servidores do poder Judiciário e, quando necessário, aplica punições. O órgão fica à disposição do cidadão, que deve comparecer à sede do órgão, no prédio do Tribunal de Justiça (CAB) munido de identidade e relatar os fatos e o nome do funcionário acusado. De acordo com uma funcionária do setor, o processo administrativo leva em média dois meses para ser concluído.
 
Na teoria, tudo bem. Entretanto, o contato com o tribunal, apenas para obter informações sobre as questões que envolvem os cartórios em Salvador, foi dificultado durante a segunda e a terça-feira desta semana. Depois de informar que o corregedor do estado, desembargador João Pinheiro, está fora da cidade até amanhã, o assessor de comunicação do tribunal, afirmou que ninguém mais se disporia a falar no assunto, mesmo para dar informações sobre o funcionamento dessas repartições.
 
Na mesma ligação, o assessor se comprometeu a encaminhar para o Correio da Bahia a lista oficial de preços dos procedimentos realizados nos cartórios extrajudiciais e o procedimento para que o cidadão apresente queixa formal, mas não retornou a ligação. Depois disso, a reportagem entrou em contato com a assessoria mais três vezes, recebendo, da secretária do assessor, a informação de que ele estaria resolvendo problemas da presidência e não poderia atender à solicitação.

Alternativa da internet
 
Desde 24 de agosto de 2001, os brasileiros têm uma alternativa à via-crúcis nos cartórios. São os cartórios on-line, que realizam grande parte dos serviços feitos de maneira presencial e, de quebra, entregam o material em casa. A geração dos documentos é eletrônica, mas há validade jurídica e fé pública. Também é possível solicitar a autenticação de cópias eletrônicas quando os cartórios de origem da assinatura fazem parte do convênio.
 
Assim que foram permitidos pela Medida Provisória 2.200-2, os cartórios ocuparam o noticiário nacional prometendo revolucionar os serviços, mas, na prática, não foi bem isso o que aconteceu. Em poucas palavras, a mania não pegou para o brasileiro comum. Embora seja vantagem, em alguns casos, para empresas, pode sair mais caro e estressante para “amadores”.
 
Após a solicitação do serviço, muitas vezes mais caros do que nos cartórios presenciais, o cliente precisa imprimir um boleto e pagar no banco ou via internet. Só depois de confirmar o pagamento, recebe o material. Para isso, também é preciso pagar uma taxa de entrega. Alguns cartórios virtuais só aceitam o Sedex, uma das mais caras formas de entrega disponíveis no país.
 
Para retirar a 2ª via atualizada de uma certidão de nascimento no site do Cartório Brasileiro, o cidadão paga R$65 para receber o documento em até duas semanas. De acordo com o site, o valor inclui “as custas do cartório, frete do cartório até nossa sede (Sedex ou carta registrada), frete de nossa sede para seu endereço (carta registrada) e custas de serviço”. No local, a mesma certidão custa R$4,50. Em resumo, o processo só vale a pena para quem mora fora da comarca onde quer solicitar um documento. Para quem está na mesma cidade, apesar dos aborrecimentos, continua sendo mais fácil, barato e ,muitas vezes, mais rápido, sair de casa e enfrentar uma filinha.

Denúncias sobre cobrança da propina
 
A “urgência” relatada por Ivanise foi detalhada à reportagem pelo motoboy Márcio *, em frente ao seu cartório. Ele se dispôs a prestar serviço a uma amiga que mora no exterior e precisava de um documento provando ser solteira. A certidão custa R$34 e, segundo um funcionário, levaria dez dias para ficar pronta. O rapaz explicou que era urgente. Foi quando veio a proposta.

Urgência é R$50”. Constrangido, o motoboy confessa que chegou a oferecer R$20, na tentativa de conseguir o “favor”. “Não adiantou. Aí eu vou esperar até o dia 25”, conformou-se. Ele conta ainda que não foi a primeira nem a segunda vez. Para resolver um problema pessoal, já chegou a pagar R$150 a um subtabelião.
 
No cotidiano, os motoboys de empresa lidam diretamente com a situação. A maioria dos cartórios tem, estampado na porta, o limite de documentos a serem autenticados para cada cliente. A intenção é diminuir as filas. Em um dos cartórios do Comércio, o limite são 30 documentos por turno. No dia em que a reportagem esteve no local, Márcio tinha cem páginas nas mãos. Afirmou que não haveria problemas. “Tudo se dá um jeito”.
 
Ontem, os funcionários de empresas que esperavam nas filas do tabelionato do Shopping Sumaré relataram experiências semelhantes. “Quando a gente diz, na empresa, que vai precisar de um ‘guaraná’ para o escrivão, eles acham que a gente está colocando no bolso. Mas é a pura verdade”, queixou-se Paulo*.
 
Acostumado a percorrer os cartórios da cidade, ele chegou a nominar os tabeliães mais procurados pelos negociantes quando há necessidade de se driblar a lei. Um deles é titular de um cartório no Comércio. De acordo com Paulo, com a ajuda do servidor do Judiciário, consegue-se até transferir veículos sem a presença do vendedor, que é exigida por lei. “O pessoal da Feira do Rato todo vai lá, mas a coisa é fechada”, afirmou.
 
Na porta da sala do chefe, uma prática que só é comum em cartórios privados: uma sinalização vistosa com o nome do titular do cartório. A linha telefônica do prédio está em seu nome, e não do estado do estabelecimento. Nas redondezas, o local não é conhecido pelo número do ofício, como de costume, mas pelo nome do tabelião.
 
A reportagem foi até o local para confirmar a denúncia, mas não conseguiu provas concretas. De acordo com a Corregedoria Geral da Justiça (CGJ), não há queixas sobre pagamento de propinas no cartório. O motoboy Paulo tem sua explicação: “Lá, não é com gente pequena não. Ele só faz negócio direto com quem usa gravata”. (Edição de 22/11/2006)



Últimos boletins



Ver todas as edições