BE2450
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Direito registral imobiliário: luzes e trevas
Ildeu Lopes Guerra
PONTO CRÍTICO
Fui convidado a opinar sobre o artigo abaixo reproduzido num fórum de discussões que se desenvolve, muito ativamente, no Curso de Direito Registral na PUC Virtual de Minas Gerais, sob a coordenação do Prof. Dr. Edésio Fernandes.
Não quis deixar de me manifestar naquele ambiente acadêmico que é restrito ao curso. Entretanto, considero que a opinião manifestada pelo Dr. Ildeu L. Guerra merece ser apreciada, considerada e debatida num círculo mais amplo.
Gostaria que os leitores deste Boletim pudessem se manifestar sobre o tema.
Para isso, estaremos publicando o artigo e a resposta no Blogue Registral: http://registral.blogspot.com
Sinta-se, caro leitor, inteiramente à vontade para manifestar ali a sua opinião. Ela será apreciada por nossa comunidade de direito registral. (SJ)
Direito registral imobiliário: luzes e trevas
Ildeu Lopes Guerra*
Nuvens da inquisição ainda se encontram em alguns cartórios de registro de imóveis, verdadeiros repositórios da burocracia. Tudo é feito de modo a não consumar o ato registral, pelo qual já receberam, antecipadamente. Se não bastassem os absurdos das exigências feitas, quase sempre com mais de 30 dias da data do protocolo, quando a vítima, após o calvário do acompanhamento diário junto à serventia, se depara com a exigência, lhe é dito ou escrito: "suscite dúvida!"
Transfere-se o serviço do oficial para o Juiz da Vara de Registros Públicos que, no mais das vezes, pelo desconhecimento do que de fato está ocorrendo, emite o "atestado de óbito da vítima”. Esta, por falta de conhecimento ou condições, não contestou nem apresentou defesa, correndo o processo à revelia.
O processo de dúvida, se competente o oficial, é o remédio último, somente quando examinadas todas as possibilidades de se realizar o ato, e não podendo as partes superar o exigido, se legal e razoável.
No que se refere às incorporações imobiliárias da Lei n. 4.591/1964, "o bicho pega". De início, temos a variedade de relações de documentos, quando a lei é uma só. Apresentando o processo, com base na relação, mesmo com o acompanhamento diário, somente decorrido um mês ou mais (quando o prazo legal é de 15 dias) o apresentante é surpreendido com exigências de documentos, superiores às descritas na relação, além de, obrigatoriamente, ser exigida a revalidação de todo o processo.
Faz-se necessário que os cartórios tenham ciência de que a incorporação imobiliária é uma operação comercial, envolvendo altos custos financeiros.
O empreendimento só pode ser lançado no mercado após o registro da incorporação imobiliária. O atraso de um lançamento pode, simplesmente, inviabilizar o negócio. Alegam que a documentação não está a contento (o que ocorre, em certos casos), porém, a maioria dos processos é feita por empresas, advogados ou despachantes especializados. Por que o ônus desta contratação? Tempo e custo, em virtude do exposto, em vão.
A lei impõe aos incorporadores a obrigação de registrar a incorporação, ao passo que alguns cartórios tratam de inviabilizar os registros. Daí que, de cada cinco prédios em construção, pelo menos três estarão na informalidade. É a realidade, comprovada pelos próprios cartórios, quando se verifica a proliferação de contratos ou escrituras de fração ideal, correspondendo à futura unidade que, depois de protocolados, são devolvidos, com a exigência da apresentação do processo de incorporação.
A construção civil necessita de regras claras, sólidas. Os riscos dos negócios são os de mercado, sendo desnecessário acrescentar outros, como vem acontecendo.
As empresas da construção civil são as que "criam" imóveis, lotes ou edificações, que são a base, o produto, do registro de imóveis. São elas que, conforme estatísticas, por meio da geração de empregos, pagamentos de impostos, respondem por, pelo menos, 60% da movimentação econômica do país. Merecem respeito, não só dos cartórios, mas de todas as repartições públicas e dos governos.
As exigências poderiam ser feitas de uma única vez, no prazo legal, e fundamentadas.
Os oficiais e seus examinadores têm o dever e a obrigação de saber ver e compreender os documentos que examinam, à luz do conhecimento do direito registral imobiliário, pois, somente com essa compreensão, poder-se-á, se for o caso, acatar ou informar a parte interessada, bem com complementá-los ou corrigi-los.
É preciso ter em mente que o usuário dos serviços de registros não sabem e não têm a obrigação de saber das questões registrárias. E mais: o usuário merece todo o respeito, enquanto cidadão e ser humano que é.
É preciso que o usuário não seja tratado como criminoso ou vigarista, e sim como um ignorante com relação à matéria registral, ao passo em que mestre ele é em outras atividades, nas quais ignorante, provavelmente, será o oficial do cartório. Por que não?
É hora, estando já consolidado no país o Direito Registral Imobiliário, de todos aqueles que estão do outro lado do balcão dos cartórios serem qualificados, educados e respeitosos com o usuário.
Resta recorrer aos ensinamentos do saudoso Dr. Gilberto Valente da Silva (magistrado, estudioso dos registros públicos, conselheiro do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB, que prestou, sem remuneração, consultoria jurídica ao IRIB e a seus associados por mais de 26 anos, até 2003, quando faleceu), a maior autoridade em registros públicos no Brasil, incansável lutador, durante toda a sua vida, contra a burocracia cartorária.
O heuretés, o inventor do contemporâneo registro de imóveis brasileiro, nas palavras do também eminente Desembargador do TJSP, Ricardo Dip (Revista de Direito Imobiliário, 55 - fls. 388) precisa lançar sua luz sobre Minas Gerais, em especial na Corregedoria Geral de Justiça, para serem adotadas as "Normas de Serviços para o Registro de Imóveis", com regras claras, prazos precisos, principalmente com relação às incorporações imobiliárias, Lei n. 4.591 de 16 de dezembro de 1964 e loteamentos da Lei n. 6.766, de 19 de dezembro de 1979.
Em São Paulo, a Corregedoria, democraticamente, abre as portas para os oficiais de registros públicos apresentem suas contribuições para atualização e aperfeiçoamento das "Normas de Serviços dos Cartórios Extrajudiciais", existentes desde os idos de 1978. Desde então, vem sendo atualizadas permanentemente.
A luta dos oficiais, do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, a contribuição da 1ª Vara de Registros Públicos, do Conselho Superior de Magistratura e da Corregedoria Geral de Justiça de São Paulo, no sentido de só emitirem sentenças ou pareceres após a requalificação dos títulos e acatamento de consultas, consolidaram o Direito Imobiliário Registral.
A jurisprudência, hoje, serve de base para todos os países, cujos sistemas registrais são iguais ou semelhantes ao sistema brasileiro. É chegada a hora de a Corregedoria Geral de Justiça e do Conselho Superior de Magistratura de Minas Gerais se manifestarem e, a exemplo de São Paulo, criarem nossa norma e os mecanismos que propiciem aperfeiçoamento dos nossos oficiais, principalmente os de Registro de Imóveis, acatando consulta, emitindo provimentos que determinem suas atuações em casos polêmicos.
Que, nos processos de dúvida, seja feito um novo exame do título. O usuário se vê, hoje, submetido a verdadeiros abusos de poder de determinados cartórios (ainda bem que são minoria) com descabidas exigências, não fundamentadas e com a prévia decretação de "suscitar dúvida".
Ora, o exame e a qualificação do título são da competência do oficial, operador do direito, a ele inerentes, e não do juiz da Vara de Registros Públicos. O processo de dúvida, como previsto na Lei de Registros Públicos, é a providência última, quando a parte não pode ou não quer cumprir a exigência, e se esta for legal.
O examinador precisa saber olhar, compreender o título que examina à luz da legislação, dos costumes e das jurisprudências, para acatá-lo ou refutá-lo fundamentadamente, por escrito, no prazo de 15 dias, e não após o prazo de entrega (30 dias) como vem acontecendo.
Esperamos que a Corregedoria assegure esta nova era com um provimento que defina, detalhadamente, a relação de documentos que deverão ser exigidos para o registro de processos de incorporação da Lei n. 4.591, de 16 de dezembro de 1964, inclusive determinando o prazo legal para a comunicação da pendência, quando houver.
Se as serventias cumprirem seu papel, determinado na Constituição e nas leis que regem os registros públicos, mais registros e averbações serão feitos na forma da lei.
Aí, sim, livres ficaremos das nuvens e dos entulhos presentes, até então, no Estado.
*Ildeu Lopes Guerra – Especialista dm registros cartorários, atua há mais de 30 anos como consultor de Direito Registral Imobiliário. Fonte: Revista Del Rey Jurídica – Ano 8 – n. 16 – 1° Semestre de 2006.
Lux in tenebris lucet
Sérgio Jacomino*
Começo por dizer que a resolução do problema apresentado pelo especialista dispensa qualquer tipo de regração.
O artigo do Dr. Ildeu Lopes - muito respeitoso e lisonjeiro com o Irib e com os registradores bandeirantes - embora identifique claramente certas conseqüências gravosas da atuação do registrador, aponta para soluções que vão agravar ainda mais a situação denunciada.
Curiosamente, a crítica é vácua de boas propostas para melhorar a situação que afronta. Houve uma capitulação às idéias que conformam um ambiente de paternalismo judiciário anacrônico que precisa ser compreendido e enfrentado. Explico-me.
Diz ele que: (a) as exigências dos registradores são absurdas; (b) transfere-se ao juiz-corregedor a solução de problemas que caberia ao registrador resolver; (c) a atuação dos cartórios, no caso de incorporações, está motivando a clandestinidade jurídica, etc. Vamos analisar alguns desses aspectos.
As críticas são muito genéricas. Dizer-se que as "exigências são absurdas" implica a necessidade de analisar escrupulosamente em que sentido o são. É comum se ouvir dizer que certas decisões judiciárias são um absurdo. Bem entendido: eventualmente o serão quando não contemplem os nossos interesses! Sem que possamos conhecer concretamente, caso a caso, o que foi objeto de devolução, quais os motivos e fundamentos, fica muito difícil qualificá-lo de absurdez.
Ainda que algumas devoluções sejam mesmo um absurdo (como o serão algumas decisões judiciais - e o paralelismo não é ocioso) é preciso saber que existe remédio jurídico para isso e que a situação reclama muito menos regulação e muito mais independência jurídica, autonomia funcional e fiscalização.
Esse o ponto que me contrapõe às idéias do consultor.
As “consultas ao juízo” – que o autor chega a defender – e a adscrição ao juízo-corregedor permanente são reminiscências medievais da atividade, lembranças de épocas priscas em que o tabelião (e dublê de escrivão do judicial) estava sujeito estritamente ao comando judiciário – era um braço articulado da máquina judiciária. O registrador moderno deve ser independente. Deve ter autonomia. Deve sujeitar-se unicamente à lei e à sua consciência. Não deve consultar qualquer autoridade acerca de seu mister. E deve ser responsabilizado pelos seus atos.
Mas como blindar a atuação desse profissional? Como protegê-lo das investidas imperiais? Como protegê-lo de ordens judiciais ilegais, interferências em sua atividade, desrespeito às suas convicções jurídicas etc? A CF/88 diz que compete ao Judiciário a fiscalização do serviço notarial e registral. Muito bem. Mas qual a extensão dessa fiscalização? No que consiste? Até onde pode chegar? Como delinear claramente – tendo como referência a independência jurídica do registrador – a atuação de cada um dos atores, juízes e registradores? A Lei 8.935/94 regulamentou a tal disposição constitucional e, s.m.j., não reproduziu o espartilho legal antecedente ao advento da CF e da Lei 8.935/94. Mas o ambiente ainda remanesce. Os limites que vincam as atribuições de cada um ainda são tênues e inspiram a tendência de exoneração de responsabilidades denunciada. Sabemos que nessa conjuntura, na dúvida os registradores decidirão: “é melhor que o juiz decida!”.
O próprio autor aponta o círculo vicioso que existe nesse contubérnio: “transfere-se o serviço do oficial para o Juiz da Vara de Registros Públicos que, no mais das vezes, pelo desconhecimento do que de fato está ocorrendo, emite o ‘atestado de óbito da vítima’”. Será que a solução proposta – “serem adotadas normas de serviços para o registro de imóveis” – resolverá o problema? Ou o agravará?
A competência privativa para legislar sobre registros públicos é da União (art. 22, XXV, CF/88). A competência para regulamentar a lei é própria da União, por paralelismo. A estadualização dessa regulação - pela normação heterogênea no âmbito dos Tribunais - malfere a constituição? Será que a proposta do autor não é simplesmente… inconstitucional?
Enquanto remanescerem essas notas arcaicas de submissão ao juízo, muitos registradores não terão a garantia da independência jurídica, do seu efetivo exercício e, via de conseqüência, acabarão submetendo os casos mais complexos à apreciação do juiz-corregedor, o que há de sobrecarregar inevitavelmente o órgão correcional – além de acarretar custos e gerar incertezas para o utente.
O registrador, por medo atávico do corregedor – figura quase mitológica, com reverberações gil-vicentinas em nossas dimensões jurídico-culturais – desvestir-se-á da estola da independência jurídica e autonomia e se sujeitará, gostosamente, ao espectro de poder que dimana da figura do magistrado. É cômodo. Não gera responsabilidades.
Sobre clandestinidade jurídica há uma verdadeira cortina de fumaça. A proliferação de contratos ou “escrituras de gaveta” responde a múltiplos interesses. Há uma síndrome de clandestinidade. E como toda situação tipicamente sindrômica, é difícil reduzir a coleção de fatores concorrentes a uma cômoda explicação. Mas um aspecto merece destaque. A clandestinidade, nos negócios jurídicos decorrentes de incorporações imobiliárias, está intimamente ligada à lavagem de dinheiro. Os órgãos encarregados de verificação (como o COAF, p. ex.) têm a mira posta em certas incorporadoras. Esse argumento – de que de cada cinco prédios em construção, pelo menos “três estarão na informalidade” – deve ser posto sob foco crítico. É que a clandestinidade, nesses casos, é simplesmente ilegal. Dispenso-me de citar artigos da lei 4.591/64. Agora o mais importante: se o registro não se alcança – e as conseqüências do não-registro acarretem prejuízos ou danos ao incorporador – cabe responsabilização do registrador.
Enfim, sou insuspeito para falar do Judiciário, já que considero a reaproximação com a Galáxia Judiciária uma necessidade de sobrevida da própria atividade. Valorizo essencialmente o Judiciário. Embora releve, e muito, a vinculação com o Judiciário, devo lhes dizer que é imprescindível concretizar nas fímbrias institucionais a independência jurídica do registrador. E sua autonomia no exercício da profissão.
O nosso articulista parecer ser normativista. “Dêem-me uma norma e eu lhes darei o sentido do mundo!” – parece nos dizer. Concluo dizendo que só se produzirá luz nas trevas decantadas pelo articulista quando se ultrapassar esse modelo de atomização das atividades registrais e notariais; quando alcançarmos um estágio de molecularização dessas partes que estão fenecendo, à míngua de independência jurídica, autonomia funcional e responsabilidade profissional.
*Sérgio Jacomino é registrador imobiliário e Presidente do Irib.
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