BE2158
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Seminário regional discute a regularização fundiária no Recife - II
O presidente do Irib, Sérgio Jacomino, fez importantes questionamentos a alguns palestrantes e autoridades que participaram do Primeiro Seminário Regional de Regularização Fundiária. Confiram, a seguir, as entrevistas.
- O Estado não é uma entidade com existência real, é a representação jurídica da sociedade” – entrevista com o jurista Sérgio Sérvulo da Cunha
- A partir da concessão e da outorga do título registrado, nós não teremos mais cidade formal e cidade informal” – entrevista com a coordenadora municipal do Programa de regularização fundiária da Prefeitura de Recife, Paula Mendonça
- O Irib tem sido um parceiro fundamental para realizar essa prioridade de política de desenvolvimento urbano no Recife” – entrevista com o secretário de Planejamento Participativo, Obras, Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Recife, João da Costa
- Eu gostaria de reafirmar a importância do diálogo que está sendo estabelecido, que ele permaneça, continue e que possa render frutos positivos, para o que realmente interessa, que é o interesse social, a regularização fundiária em prol do interesse maior da sociedade” – entrevista com a promotora do MP-PE Bettina Guedes, membro da Promotoria de Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente
REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA
O Estado não é uma entidade com existência real, é a representação jurídica da sociedade” – entrevista com o jurista Sérgio Sérvulo da Cunha
Sérgio Jacomino –O sr. considera que a apropriação individual de bens deva ser tutelada, mas reconhece que existe um elemento medular na relação que o homem tem com determinadas coisas necessárias para o seu trabalho, sua vida, profissão , etc. Como o senhor entende que deva ser essa tutela?
Sérgio Sérvulo – A propriedade é o poder mais amplo que se pode ter sobre alguma coisa. A amplitude desse poder, entretanto, pode variar segundo o interesse geral. Se conceituarmos a propriedade,a priori, como um direito absoluto, toda regulação desse direito parecerá uma restrição de direito individual, uma intervenção indevida do Estado. Creio ser outra a perspectiva adequada; nela, a amplitude do poder do proprietário depende de uma outorga.
SJ -Sim, e essa "permissão", entre aspas, deriva da sociedade ou do estado?
Sérgio Sérvulo - O Estado não é uma entidade real, mas a representação jurídica da sociedade; o que tem existência real é a sociedade. Aqui também se nota a inversão decorrente desse modelo lingüístico que nós utilizamos inconscientemente desde o século 18. A sociedade permite que haja a propriedade individual, pois é de seu interesse que os indivíduos tenham o necessário ao seu consumo, à sua existência e à sua iniciativa. Mas não lhe interessa que os poderes do proprietário, passando além do necessário, venham a prejudicar a convivência social.
SJ -Mas a representação dessa trama irredutível de interesses que é a sociedade não se dá com a traição e sacrifício de alguns desses interesses no altar dessa representação? A transubstanciação da realidade social em ordem jurídica não é essencialmente uma falsificação? Uma representação jurídica da sociedade pode (e tende) a ser tão artificial (e em alguns casos tão violenta) quanto mais complexa é a sociedade...
Sérgio Sérvulo – Sem dúvida. A finalidade do Direito não é a reprodução das relações sociais de poder, mas a busca do melhor para todos. O que justifica o poder é que ele seja não o poder dominante, mas a deliberada delegação de poder social, a pura expressão dos interesses gerais da sociedade.
SJ -Como ente animado e encarnado de certos interesses plenários, o Estado pode impor um sentido unívoco, racional e lógico - próprio do discurso jurídico. Nesse sentido seria legítimo desconfiar de um interesse "estatal" divorciado dos interesses "sociais"? Como resolver institucionalmente essas perenes contradições?
Sérgio Sérvulo – Pela ação política inserta no constitucionalismo. E tratando-se de ciência social – que é o nosso caso – também denunciando o quanto ela está penetrada de ideologia. É o que pretendi fazer com a análise do conceito de propriedade e do respectivo modelo lingüístico.
SJ -A propriedade ou a posse, antes de tudo um fato social, e as leituras que se fazem hoje desse fenômeno, está sempre contaminada por uma visão dessa “maquina da linguagem” chamada direito. Não é possível subverter essa linguagem a partir de uma interpretação que desconstrua essa lógica? Tal seria injurídico? É possível flagrar esse instantâneo do fenômeno social relacionado com a posse e convertê-la em peça de regulação?
Sérgio Sérvulo – Na verdade, é esse modelo lingüístico que subverte a realidade. O primeiro dever do cientista é ajustar suas lentes para enxergar a realidade. Inexiste diferença de conteúdo entre a posse e a propriedade: trata-se de duas figuras jurídicas que revestem o mesmo feixe de poderes. A diferença está em que a posse é proporcionada à possibilidade individual de uso da coisa, enquanto que a propriedade vai além dessa possibilidade, prestando-se à especulação. A propriedade social é, no fundo, a posse jurídica (posse fundada em direito de possuir), adequada à utilização social da coisa. volta
A partir da concessão e da outorga do título registrado, nós não teremos mais cidade formal e cidade informal” – entrevista com a coordenadora municipal do Programa de regularização fundiária da Prefeitura de Recife, Paula Mendonça
Sérgio Jacomino – Na verdade, esse tema da regularização é um tema antigo, já povoava as constituições anteriores, os tratados e convenções internacionais. Qual a novidade do assunto?
Paula Mendonça - A novidade é que, a partir da participação popular, com as reivindicações da demanda por regularização, por exercício do direito de moradia e efetivação de direitos sociais, o Município hoje responde qualitativamente a partir do Registro do título, que confere domínio e segurança jurídica às populações beneficiadas.
SJ – A Prefeitura do Recife considera que este é um instrumento de inclusão social: a concessão de um título de domínio, diferentemente de títulos precários, de ocupação precária, como as concessões?
Paula Mendonça – Sim, a partir da concessão e da outorga do título registrado, nós não teremos mais cidade formal e cidade informal, cidadão de primeira ou de segunda categoria. Nós teremos todos exercendo o direito à propriedade, devidamente registrada, conforme a regra do ordenamento jurídico. Isso confere valor econômico, status social, circulação no mercado e, sobretudo, o exercício do direito à propriedade.
SJ - Para a Prefeitura, qual a diferença entre a concessão especial para fins de moradia e a concessão de um título de propriedade?
Paula Mendonça – A Lei Orgânica do Município, o Planos Diretores, proíbem, por força de lei, a transferência de domínio pleno através de doação ou de compra e venda; prioriza, enquanto instrumento de regularização, as concessões de direito real de uso para fins de habitação, ou seja, de áreas dominiais. E agora, com o advento da Medida Provisória 2220, a concessão especial para fins de moradia, que visa beneficiar famílias que até a data do advento da lei ocupavam imóveis de domínio público – áreas de logradouro ou bens dominiais -, com posse pacífica, quer dizer, especificamente para fins de moradia e conforme o lote padrão.
SJ – A sra. considera que esse diálogo multidisciplinar, multiprofissional, pode contribuir para a superação dos problemas que historicamente se vem enfrentando?
Paula Mendonça – Sim, porque a partir do diálogo com os profissionais de outros setores, nós entendemos que a regularização fundiária só se faz possível através dessa conjugação de esforços de urbanistas, advogados, arquitetos, notários, tabeliães, registradores, órgãos como Ministério Público, poder judiciário, porque viabiliza assim a solução dos entraves, o que eu denomino de paradigmas da necessidade de solução. volta
O Irib tem sido um parceiro fundamental para realizar essa prioridade de política de desenvolvimento urbano no Recife” – entrevista com o secretário de Planejamento Participativo, Obras, Desenvolvimento Urbano e Ambiental de Recife, João da Costa
Sérgio Jacomino – Fale da iniciativa do evento e das parcerias entre a OAB e a prefeitura, com a participação de diversos atores envolvidos.
João da Costa - Nós temos trabalhado o programa de regularização fundiária como prioridade da política de desenvolvimento urbano de Recife, e a realização dessa política envolve uma complexidade grande de vários atores, desde a propriedade que tem uma parcela expressiva das terras aqui da cidade pertencentes à União, até o processo técnico de operar a regularização, onde entra toda a capacitação e toda a assessoria que a OAB pode nos proporcionar. E no processo de conclusão desse trabalho, que é o processo de registro, o IRIB tem dado uma grande contribuição e tem sido um parceiro fundamental para realizar essa prioridade de política de desenvolvimento urbano no Recife.
SJ – Sobre esse contraste entre a cidade legal e a cidade opaca, a cidade sem nome, “sem lenço nem documento”; dessa relação dialética é possível fazer uma mudança desse panorama no Brasil?
João da Costa - É possível trabalhar essa dicotomia a partir de uma nova política de desenvolvimento urbano. As políticas de desenvolvimento urbano no Brasil nas últimas décadas têm sido geradoras de exclusão e da cidade ilegal. É possível reverter esse quadro trabalhando políticas públicas, de inclusão econômica, social e também territorial. A população vive num processo de exclusão cultural, econômico-social e perspectivas de urbanismo também diferentes; nós temos que incorporar no planejamento urbano, essas visões diferentes de cidades e o processo de urbanização também diferenciado, gerado pelo processo da ocupação irregular, que gera uma cultura de urbanização diferente. Então, nós não podemos continuar a pensar “cidades” a partir de uma concepção européia de cidades ou americanas de cidades. Nós temos que pensar as cidades brasileiras a partir da sua existência real, da sua realidade territorial, que é diferenciada e ela precisa ser incorporada no processo de planejamento. E a regularização pode ser um passo importante para incluir essas populações na formulação das políticas públicas das cidades.
SJ – Mas o senhor não considera que a lógica da informalidade atende a uma lógica econômica perfeitamente identificável, ou seja, em outras palavras, que é possível considerar que a informalidade é um bom negócio?
João da Costa - A informalidade termina gerando uma dinâmica econômica própria dotada da exclusão, a gente termina trabalhando relações econômicas diferenciadas, você tem nas cidades a expressão do que é o país: uma parte economicamente integrada à economia globalizada tecnologicamente avançada e uma parte que a própria exclusão gerou a necessidade de sobrevivência, que desenvolve um próprio mercado, inclusive o mercado imobiliário, o mercado de registro, que é fruto dessa exclusão, que busca nessas alternativas a sua própria sobrevivência; mas é uma sobrevivência que tem limites, do ponto de vista de gerar qualidade de vida e integração, do ponto de vista cultural e urbanístico. Então, temos que pensar em políticas publicas que rompam essa dimensão e incorporem essas diferentes estratégias econômicas que a informalidade gerou, a nível de uma perspectiva que possa realizar a integração da sociedade brasileira.
SJ – Ou seja, a população de baixa renda vista de uma certa perspectiva, não é um problema, mas uma solução para se forjar identidade cultural e, portanto, a pujança econômica de um país.
João da Costa - Evidente. Eu acho que as elites brasileiras têm ficado de costas para o processo de geração de cultura e de identidade cultural forjada pelos excluídos no Brasil, que gera ao longo da sua história um conjunto de riquezas culturais, econômicas, e também políticas, formas de organização social, formas de resistência , que foram criando-se ao longo do tempo e de identidade cultural que são muito importantes, seja na religiosidade, seja na manifestação das músicas ou da própria arte que faz com que o Brasil - e Pernambuco em particular -, tenha uma riqueza muito grande, fruto dessa organização que a exclusão obrigou a população a gerar. Acho que a gente tem de buscar formas de trazer essa riqueza como instrumento de inclusão social no Brasil e ainda, uma sociedade que tenha menos diferenças, mas essas diferenças também não geram apenas pobreza, geram muita riqueza cultural, política e econômica. volta
Eu gostaria de reafirmar a importância do diálogo que está sendo estabelecido, que ele permaneça, continue e que possa render frutos positivos, para o que realmente interessa, que é o interesse social, a regularização fundiária em prol do interesse maior da sociedade” – entrevista com a promotora do MP-PE Bettina Guedes, membro da Promotoria de Habitação, Urbanismo e Meio Ambiente
Sérgio Jacomino – A senhora falou sobre a importância do Ministério Público no processo de regularização, a senhora notou que a reforma da lei 6 015, que alterou o procedimento de retificação, dispensou a presença do representante do MP; o que a senhora tem a dizer a respeito disso?
Bettina Guedes – Realmente, analisando a legislação recentemente eu observei isso, mas como não atuo com registros públicos, tenho a impressão que essa questão deve estar sendo analisada e trabalhada pelos colegas que atuam na área especifica de registros públicos. Eu atuo na Promotoria de Habitação e Urbanismo, então os processos de regularização propriamente ditos, os procedimentos judiciais, não estão por conta da minha Promotoria, apesar de que é uma questão que também observei ao me debruçar sobre o tema e considero uma questão interessante para ser discutida pelo Ministério Público.
SJ – Em São Paulo o Irib, pela terceira vez consecutiva, portanto há quase seis anos, reitera um convênio de cooperação técnica e científica com o Ministério Público do estado, notadamente com o Centro de Apoio Operacional ao Urbanismo e Meio Ambiente. Gostaria que a senhora falasse um pouco do relacionamento institucional entre o Ministério Público e esses operadores jurídicos tão peculiares, como são os notários e registradores aqui desse estado.
Bettina Guedes - Na verdade, esse relacionamento se dá com os promotores que atuam nas varas junto às áreas de registros públicos, mas eu acho que é importante e fundamental que haja essa interlocução - eu acredito até que haja -, mas que ela seja aprofundada e que todos os operadores do direito possam trabalhar no sentido que, dentro da legalidade, a gente possa desburocratizar o máximo o processo, sem causar prejuízos maiores a nenhum dos envolvidos. Acho que esse relacionamento que está ocorrendo aqui neste seminário promovido pela OAB e a Prefeitura do Recife é fundamental, ou seja, que todo mundo possa contribuir de alguma forma para o andamento desse processo.
SJ – Queria uma opinião da contradição que a gente identifica muito corriqueiramente na questão da regularização, que é um interesse urbanístico versus o meio ambiente, você pode falar alguma coisa sobre isso?
Bettina Guedes - Essa questão realmente é delicada, do ponto de vista do Ministério Público, porque nós defendemos o meio ambiente, a ordem urbanística e defendemos também a função social da cidade, da propriedade. Então, o que eu acho que tem que existir é um equilíbrio, evidentemente que nós não vamos deixar de atender e sempre que possível, ir buscar a regularização de áreas onde é possível regularizar. Acredito que a própria legislação deve, em alguns pontos, ser mais flexibilizada nessas áreas de interesse social. Agora, acho que a questão ambiental é preponderante e aí vai ter que haver uma compatibilização dessas moradias em outro local, mas sempre garantido o direito dessas pessoas que já ocupam e que, por omissão do poder público, permaneceram lá e se consolidaram.
SJ – Uma curiosidade, como é que se supera no âmbito do Ministério Público, tendo em vista a liberdade funcional, autonomia, etc, as contradições que surgem em relação a meio ambiente e urbanismo; existe uma depuração interna administrativa ou isso acaba repercutindo no Judiciário com posições às vezes contraditórias?
Bettina Guedes – Veja, eu só posso falar da situação peculiar de Recife, hoje as pessoas que estão nas Promotorias de Meio Ambiente e de Urbanismo, como eu e a doutora Alda, nós temos um relacionamento muito parceiro, inclusive em várias ações temos tomado medidas conjuntas, então acredito que é possível. Acho que quem vai para uma área de cidadania, tem que ter uma visão muito voltada para esses aspectos, para a defesa do direito humano e todas as suas faces. Então, mesmo sem haver uma decisão superior - porque não há e nem é possível haver dentro do Ministério Público-, há uma tendência a que as pessoas que atuem nessa áreas tenham uma visão similar, parecida. E pelo menos aqui em Recife, posso garantir que não há um confronto com o Judiciário.
SJ – A senhora gostaria de deixar um recado para os meus colegas registradores aqui do estado do Pernambuco?
Bettina Guedes - Eu gostaria só de reafirmar a importância do diálogo que está sendo estabelecido, que ele permaneça, continue e que possa render frutos positivos, para o que realmente interessa, que é o interesse social, a regularização fundiária em prol do interesse maior da sociedade. volta
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