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A diretora de urbanismo e regularização fundiária do Irib, Patrícia Ferraz, entrevistou o deputado federal Júlio Lopes (PP/RJ)

Associações de moradores têm seus próprios cartórios


Apresentação

Cartório, o parceiro amigo é o programa da TV Justiça que vai ao ar aos domingos, às 7h, com reapresentação na terça-feira, às 10h e sexta-feira, às 18h30. Uma iniciativa da Anoreg-BR, o programa é coordenado por seu diretor, José Maria Siviero, e realizado pelas entidades dos notários e registradores.

No programa que foi ao ar no dia 31 de julho de 2005, a diretora de urbanismo e regularização fundiária do Irib, Patrícia Ferraz, entrevistou o deputado federal Júlio Lopes (PP/RJ). Formado em administração de empresas, ele exerce a presidência da comissão de Desenvolvimento Urbano da Câmara dos Deputados.

Entrevista

Associações de moradores têm seus próprios cartórios

Patrícia Ferraz:
– Como a questão da regularização fundiária está sendo tratada na Comissão de Desenvolvimento Urbano?

Júlio Lopes:– Hoje essa questão é prioritária para nós. Achamos que o Brasil precisa partir para uma grande campanha de regularização imobiliária e fundiária no país inteiro, o mais rápido possível, uma vez que essa é uma demanda da sociedade.

Patrícia Ferraz:– Qual é o panorama da irregularidade fundiária no Brasil, segundo os dados de que a Comissão dispõe?

Júlio Lopes:– O que nós sabemos é que o Brasil virou uma enorme fabrica de favelas. Todo ano surge um milhão de novas moradias irregulares, o que gera um crescimento geométrico da pobreza e da falta de controle. Precisamos incorporar à legalidade toda essa massa de gente que precisa ter sua residência, sua casa. E só vamos tornar isso possível, na medida em que fizermos a regularização. Sabemos que a regularização fundiária é a certidão de nascimento da cidadania.

Patrícia Ferraz:– Um milhão de moradias irregulares produzidas por ano é muita coisa. Vocês têm idéia de qual é o porcentual de moradias regulares produzidas no país?

Júlio Lopes:– É infinitamente menor, eu não posso precisar, mas temos um contexto desproporcional de crescimento da informalidade no Brasil em todas as áreas. Isso se reflete também no setor imobiliário. Temos uma carência enorme de habitação e como não temos programas habitacionais, financiamentos de longo prazo ou qualquer tipo de incentivo, evidentemente, o povo se socorre de suas próprias possibilidades. É nessa área que precisamos intervir.

Patrícia Ferraz:– Além dessa questão de falta de incentivo em determinadas áreas, o senhor acha que a lei dificulta a produção de moradias regulares? A falta de fiscalização do poder público também contribui para a irregularidade?

Júlio Lopes:– Acho que para chegarmos a essa confusão que existe no sistema habitacional brasileiro, muitos aspectos precisam se combinar. Temos uma legislação que não ajuda, mas também temos uma carga fiscal que, aí sim, é absolutamente exclusiva. Precisamos pensar num projeto nacional de inclusão. Criar um sistema tributário que seja inclusivo, criar um sistema em que possamos, efetivamente, fazer a casa popular de forma a atender a necessidade de moradia do povo brasileiro. Temos visto, principalmente no Rio de Janeiro, onde já existem 700 favelas, que essas soluções vão se traduzindo em novas soluções continuamente. No caso da questão notarial, por exemplo, as associações de moradores assumiram o papel do notarial nas favelas.

Patrícia Ferraz:– Como assim? Eles é que tratam de registrar as operações imobiliárias que são feitas?

Júlio Lopes:– Exatamente. São pessoas como nós, trabalhadoras empreendedoras, que como nós precisam morar, residir, ter sua família, e precisam controlar isso de alguma forma. Como eles não têm a sociedade formal para auxiliá-los, como eles não têm leis, eles criam suas próprias leis, seus próprios sistemas. Exatamente como você está dizendo. Eles têm lá seus próprios cartórios.

O custo da informalidade: 1% a 3% sobre imóveis locados, transmitidos ou vendidos nas favelas

Patrícia Ferraz:
– Ou seja, se a administração pública não entra nesses locais, não tem acesso pelas vias regulares, a própria comunidade monta sua estrutura de poder, sua estrutura administrativa para tentar se garantir de alguma forma?

Júlio Lopes:– É a tal coisa: não há vazio de poder. Em não havendo uma força que garanta o direito do cidadão, há sempre uma forma de improvisação, contrariadamente ao interesse da cidadania.

O que se dá no Rio de Janeiro? As associações de moradores deveriam ter interesse de desadensar as favelas, de promover a recuperação das áreas verdes, dos mananciais, das encostas. Mas como ganham uma remuneração de 1% a 3% sobre os imóveis locados, transmitidos ou vendidos nas favelas, elas fazem o papel do cartório.

Patrícia Ferraz:– A Associação cobra de 1% a 3%?

Júlio Lopes:– É. Ela faz esse papel.

Patrícia Ferraz:– Depois, tem gente que fala que o serviço de cartório oficializado é caro. É muito mais caro esse percentual do que é cobrado pelos serviços oficiais.

Júlio Lopes:– Agora você falou uma coisa muito interessante que o telespectador tem que saber. A informalidade é muito cara. O preço da informalidade no Brasil é o atraso, é a improdutividade, e a falta de cidadania.

Além de ser caro fazer o registro numa associação de moradores, trata-se de um registro irregular, uma vez que contribui para o adensamento, contribui com a degradação, contribui com a dificuldade de gestão urbana. É claro que em face da informalidade temos sistemas que não se traduzem nitidamente para a população, então, convive melhor com esses sistemas quem é amigo da autoridade, quem é amigo do guarda, quem é amigo do inspetor, quem é amigo do fiscal. Temos de acabar com esse sistema no Brasil. Precisamos criar um grande programa de inclusão, sobretudo na área de reforma fundiária urbana, para que possamos ter um sistema que o cidadão possa identificar como sendo bom.

Importância do imóvel regularmente registrado para o desenvolvimento econômico e para a segurança jurídica

Patrícia Ferraz:
– Mesmo que a pessoa utilize os sistemas informais de registro existentes nessas ocupações, há uma grande diferença em relação ao proprietário que tem seu título formalmente registrado no cartório de registro de imóveis. A situação é de insegurança, até mesmo na comunidade.

Júlio Lopes:– Não tem dúvida. Segundo Hernando de Sotto o imóvel não registrado é um capital morto, não serve para nada. Se o imóvel é registrado, aquele ativo morto é transformado em ativo vivo; recupera-se a cidadania, uma vez que se dá ao cidadão o sentido da legalidade; termina-se com a informalidade da propina e com todo o tipo de irregularidade praticada na informalidade.

Patrícia Ferraz:– Como a regularização fundiária pode auxiliar no desenvolvimento do país?

Júlio Lopes:– Eu acho que a regularização fundiária pode e deve auxiliar no desenvolvimento do país, fundamentalmente, porque ela é estruturante do ponto de vista da cidadania. Se o imóvel não está registrado surgirão todas as formas de irregularidade para a cobrança informal da segurança. Por exemplo, o cidadão que não tem seu imóvel registrado e vai à associação de moradores para registrar lá uma locação, ou mesmo uma transmissão, uma venda, um usufruto, está sujeito a um processo informal para garantir isso. Ele precisa de que alguém que exerça a força do Estado possa intervir em caso de discórdia, uma vez que ele não conta com um sistema legal, com os tribunais de Justiça. Ele precisa de todo um sistema informal para se apoiar na sua “segurança”. A segurança jurídica é também a segurança de cidadania. O cidadão que tem seu lote registrado, que tem sua casa registrada, terá muito mais segurança de dormir proprietário, locador, ou enfim, usufrutuário daquela situação.

Patrícia Ferraz:– Vai poder utilizar esse título de propriedade formalmente registrado como garantia para obtenção de crédito, porque nenhum banco vai aceitar qualquer declaração dessas associações como garantia de empréstimo a juros reduzidos.

Júlio Lopes:– Esse é um aspecto que o Hernando de Sotto discute bem muito no seu livro. No Brasil, temos uma questão complicadora da formalização desse imóvel, que é a impenhorabilidade do bem de família, decidido recentemente no Supremo Tribunal Federal, que criou um novo problema para o setor imobiliário brasileiro ao deixar 5,5 milhões de contratos de aluguel sem fiador no Brasil. A média de imóveis por proprietário no Brasil é de 1,4 a 1,5 imóveis por proprietário. Ao tornar impenhorável o bem de família aniquila-se com a garantia de fiança de 5,5 milhões de contratos de locação no Brasil, mas isso é outra questão. Acho que estamos falando agora de regularização fundiária.

Eu acho que a regularização se impõe, é absolutamente necessária também pela questão da segurança. Recentemente, estive com o doutor Luiz Fernando Corrêa, secretário nacional de Segurança Pública. Imagine como é importante saber, ter a segurança de ter a informação disponível para o Estado, e para os cidadãos, de quem mora em cada área, de como aqueles imóveis estão sendo transmitidos e locados, enfim, de como é feito o desenvolvimento daquela região. Se isso não for controlado pelo Estado, alguém estará controlando de forma absolutamente informal e muitas vezes violenta. Esse é um caso grave.

Patrícia Ferraz:– Está em tramitação na Câmara dos deputados – e agora está na comissão de desenvolvimento urbano – o projeto de lei 3.057, de 2000, que trata da alteração na Lei de Parcelamento do Solo e normatiza a regularização fundiária. Uma das novidades desse projeto é a concentração de todos os dados relativos aos imóveis no cartório de registro de imóveis. Como o senhor vê essa alteração sistêmica das informações relativas aos imóveis?

Júlio Lopes:– A informação é muito importante hoje na sociedade, talvez seja um dos bens mais importantes da atualidade. Por isso, é absolutamente relevante fazer uma junção de todas as informações disponíveis sobre o imóvel. A informação é a essência da democracia e do conhecimento, enfim é um dos aspectos relevantes.

O que estamos pretendendo fazer é uma lei geral que permita às áreas metropolitanas e às cidades estabelecerem as questões mais específicas. Mas sempre há interesses contrariados que precisam ser atendidos, portanto, tenta-se alargar o aspecto da lei. Já conversei com o relator, o deputado Barbosa Neto, meu colega, e, se Deus quiser, vamos fechar isso.

Patrícia Ferraz:– O que o senhor acha que é o grande avanço desse projeto na questão da regularização fundiária?

Júlio Lopes:– Em primeiro lugar, existe um vazio legislativo. Não há lei e onde não há lei, ou nada pode, ou tudo pode. Assim tem sido no Brasil.

O que mais me estimula é que precisamos regularizar isso tudo. Quando alguém vê uma favela, em geral pensa no problema social, mas esquece que ali não está se passando tão-somente um problema social. Ali também está uma grande solução econômica.

Na realidade, as favelas, as grandes concentrações urbanas, são áreas de capitalismo livre, onde o capital exerce a sua força na sua forma mais violenta. Aqueles que têm algum recurso se sobrepõem aos outros de forma violenta, massacrando os interesses daqueles que menos podem. Hoje, nas áreas faveladas do Rio de Janeiro, por exemplo, na favela da Rocinha, na favela do Vidigal, na favela do Rio das Pedras, os verdadeiramente pobres já nem lá podem morar.

Essas favelas, que se tornaram pequenas comunidades, hoje são como bairros com áreas mais e menos nobres, que têm classe alta, classe média e pobreza. As populações verdadeiramente pobres estão sendo expulsas das favelas para os guetos. No Rio de Janeiro, temos um caso gravíssimo, que é a favela do Arará, feita sobre a linha do trem. Lá, sim, moram os miseráveis dos miseráveis, quem não tem mais nenhuma condição de atendimento social. É essa gente que temos de recuperar.

Patrícia Ferraz:– No Rio de Janeiro qual é o custo para se morar numa favela ou numa área regularizada? Existe um parâmetro de comparação?

Júlio Lopes:– A questão é fácil de entender. Para locar, comprar ou financiar um imóvel, a pessoa precisa de um aval, uma fiança; precisa de alguém que garanta a sua adimplência ao pagamento de uma prestação, seja de compra, seja de locação. Como o mercado formal não respalda a população mais pobre no atendimento dessa necessidade de fiança, existem pessoas que detêm algum tipo de capital e vendem essa oportunidade, ou “financiam”, elevando o custo da prestação ou da locação do imóvel. Hoje, nas áreas favelizadas no Rio de Janeiro, por exemplo, a locação de um imóvel pode custar uma vez e meia mais caro do que no setor formal, uma vez que no custo daquele imóvel está embutida a remuneração da fiança que ele não consegue no sistema formal.

Patrícia Ferraz:– Ninguém imaginaria que morar numa favela custa uma vez e meia mais bem caro do que morar numa área regularizada.

Júlio Lopes:– Por que isso acontece? Porque a pessoa não consegue fiança para alugar uma pequena moradia fora daquele contexto, portanto, ela é obrigada a pagar mais. É uma realidade dramática que precisamos e vamos reverter, se Deus quiser.

Patrícia Ferraz:– Nas favelas do Rio de Janeiro, quanto custa para alugar um imóvel?

Júlio Lopes:– O preço varia muito, evidentemente, dependendo da área de localização e do tamanho do imóvel. Em geral, morar na favela é muito caro. Morar na favela é, sobretudo, caro para a cidadania, mas é absurdo o fato de que as favelas crescem nessa proporção. Na favela da Rocinha, que é a favela mais famosa do Brasil, 30% dos imóveis são alugados.

Patrícia Ferraz:– Quando a gente fala de regularização fundiária, em princípio o que se imagina é que as pessoas que ocupam aquelas áreas detêm a posse, em contraposição ao direito de propriedade do dono da terra, seja ele particular ou público. O que o senhor está dizendo é que não é assim, que 30% dos imóveis são alugados.

Júlio Lopes:– Isso é realmente surpreendente. Por quê? Não existe registro de propriedade, trata-se de uma área invadida. Teoricamente, alguém teria direito sobre a área, em função do tempo de permanência ali, e poderia solicitar a posse, a transformação daquele lote em propriedade. Acontece que em razão da necessidade de moradia das pessoas, em razão da própria dinâmica da economia, as pessoas foram percebendo que aquilo era muito bom negócio. A verdade é que, hoje, 30% de quase tudo aquilo está em sistema de locação sem ter um registro, sem ter uma anotação notarial. Tudo feito informalmente nas associações de moradores, nos controles informais de caderninhos de entidades, sabe lá Deus onde. Essa é a questão essencial. Esses imóveis são muito caros justamente porque possibilitam a moradia sem fiança, sem aval, até porque a pessoa que não pagar é obrigada a se mudar do dia para a noite. A execução é literal. O sujeito é executado, literalmente. São absurdos que temos de corrigir imediatamente. A cada dia ficamos mais revoltados ao sentir a nossa imobilidade enquanto poder Legislativo e Executivo para resolver um problema tão grave quanto esse no Brasil.

A regularização não é só uma questão de habitação, não é só uma questão de desenvolvimento econômico, é também uma questão de segurança.”

Patrícia Ferraz:
– Quando falamos de regularização fundiária, em geral pensamos na garantia de acesso à moradia. Mas hoje, aqui, entendemos que a regularização fundiária pode ser vista sob um aspecto muito mais abrangente, de promoção do desenvolvimento econômico do país.

Júlio Lopes:– Não só de promoção do desenvolvimento econômico e de moradia, mas, sobretudo, de segurança. Tenho insistido muito nisso, tive várias reuniões com o ministro da Justiça. O programa de regularização fundiária no Brasil é de extrema relevância para a segurança pública. No entorno do Distrito Federal gravitam onze cidades, de mais ou menos 2 milhões de habitantes, em que não há registro de propriedade, a propriedade é locada e transmitida informalmente. Existem milícias, existem “sistemas jurídicos” informais. Existe todo um sistema social à parte que faz com que aquela economia gire. São centenas de milhões de reais que circulam à margem da economia formal, fazendo leis, fazendo polícia, fazendo atendimento social, tudo de forma absolutamente irregular. Temos que trazer essa população para a legalidade e só vamos conseguir isso com um sistema tributário mais adequado, leis mais adequadas, e também repressão. É preciso combinar o estímulo à legalização com a repressão forte à irregularidade e a esse sistema informal.

Patrícia Ferraz:– Ao promover a regularização fundiária, o poder público deve optar pela venda da área, transformando o beneficiado da regularização em proprietário da terra, ou deve fornecer, gratuitamente, títulos de concessão de direito real de uso?

Júlio Lopes:–Acho que isso depende da área que se está regularizando, bem como da comunidade. Existem diferentes graus de cultura, de conhecimento e, também, de tempo de invasão. A melhor maneira é dar à questão um tratamento específico caso a caso. Mas, no nosso entendimento de direito progressivo, primeiro reconhecemos a posse. A partir daí, vamos transitando com ela até a regularização definitiva da propriedade, utilizando os instrumentos do Estatuto da Cidade, que talvez seja uma das legislações mais modernas e mais aperfeiçoadas de que o mundo dispõe. O Brasil foi muito competente ao elaborar o seu Estatuto da Cidade e ali prever inúmeras formas de regularização. Quero insistir muito no fato de que a regularização não é só uma questão de habitação, não é só uma questão de desenvolvimento econômico, é também uma questão de segurança. A conjunção desses três fatores dá uma relevância muito maior a esse programa.

Patrícia Ferraz:– Como o senhor vê a participação dos cartórios nesse processo de regularização fundiária?

Júlio Lopes:– Eu acho que os cartórios têm sido parceiros. Estamos fechando um acordo para que os cartórios possam fornecer serviço gratuito nas áreas faveladas. No Rio de Janeiro, já conversamos com os cartórios no sentido de fazer um acordo para que eles passem a assumir o papel dessas associações de moradores de forma a dar uma assistência a essas comunidades. A idéia é que, progressivamente, elas possam fazer disso um negócio, mas um negócio cidadão, que seja bom para os cartórios, mas sobretudo bom para a população. Precisamos caminhar na regularização e na construção dessa cidadania legal. Acho que os cartórios, certamente vão ser nossos parceiros.



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