BE2055
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TV JUSTIÇA
Regularização Fundiária
Para enriquecer o debate, a diretora de urbanismo e regularização fundiária do Irib, Patrícia Ferraz, entrevistou a secretária executiva do Ministério das Cidades, Ermínia Maricato no programa que foi ao ar no dia 28 de agosto de 2005.
Apresentação
O programa Cartório, o parceiro amigo está promovendo, em conjunto com o Irib, uma série de entrevistas sobre regularização fundiária. A idéia é difundir ao máximo o tema, tendo em vista que, em novembro, em Fortaleza-CE, acontecerá o Congresso Internacional de Direito Registral, que vai debater questões relacionadas à regularização fundiária e ao crédito imobiliário.
Para enriquecer o debate, a diretora de urbanismo e regularização fundiária do Irib, Patrícia Ferraz, entrevistou a secretária executiva do Ministério das Cidades, Ermínia Maricato no programa que foi ao ar no dia 28 de agosto de 2005.
Ermínia Maricato é mestra e doutora pela USP, foi secretária de habitação e desenvolvimento urbano da prefeitura de São Paulo e ocupou diversos cargos da administração municipal, Cohab e Emurb, empresa municipal de urbanização. É consultora para assuntos de políticas urbana e habitacional de prefeituras municipais e governos do México, Belo Horizonte, Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, Florianópolis, Goiânia e Santo André.
Ermínia Maricato tem 6 livros publicados e 50 artigos em publicações especializadas no Brasil. e no exterior.
Entrevista
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“Se considerarmos os municípios de regiões metropolitanas, regiões periféricas principalmente, a irregularidade chega tranqüilamente a 80%.”
Patrícia Ferraz: – Todas as vezes que assisto a suas palestras fico impressionada com os números da irregularidade fundiária no Brasil. Você poderia falar um pouco sobre isso?
Ermínia Maricato: – Existe certa invisibilidade em torno da realidade urbana brasileira e também da realidade fundiária. A propriedade da terra é uma questão de conflito há centenas de anos. É uma questão nodal da formação da sociedade brasileira e, por mais que trabalhemos, a impressão que se tem é de que permanece invisível, apesar da dimensão apresentada. Dados de pesquisas, mestrados e doutorados comprovam que 50% dos imóveis no Rio de Janeiro são ilegais. Existe um trabalho realizado pela professora doutora Helena Mena Barreto que mostra que em São Paulo a situação é praticamente a mesma. Isso quer dizer que os imóveis estão numa condição de irregularidade em relação à propriedade da terra e a posturas urbanísticas, como o parcelamento do solo, Lei de Zoneamento ou em relação ao Código de Edificações, o que torna a situação muito mais grave, uma vez que atinge bairros de alta renda em todas as cidades brasileiras. Por exemplo, em áreas de proteção de mananciais em São Paulo, como as duas bacias, Billings e Guarapiranga, a estimativa é a de que 1,7 milhão de pessoas vivem nessa condição irregular. Não se trata de mera questão marginal, uma parte da sociedade brasileira não tem acesso ao direito de morar legalmente.
Patrícia Ferraz: – Considerando o Brasil como um todo, qual a estimativa do Ministério das Cidades em termos de panorama de irregularidade fundiária urbana?
Ermínia Maricato: – Esse é um problema seríssimo porque não temos um número fidedigno. Se considerarmos os municípios de regiões metropolitanas, regiões periféricas principalmente, a irregularidade chega tranqüilamente a 80%. Num dos encontros promovidos pelo Irib, encontrei um registrador do Rio Grande do Norte que me disse que conheceu uma cidade que não tinha, sequer, um edifício registrado. Eu não sabia que isso existia. Vivemos numa sociedade que tem aspectos de pré-modernidade, onde pessoas ainda não são registradas. O Ministério das Cidades tem, atualmente, um curso de cadastro multifinalitário como instrumento de política fiscal e planejamento urbano, uma vez que mais de 80% das prefeituras municipais não têm mapeamento e cadastramento dos imóveis. Como é possível trabalhar o futuro de um município sem saber o número de favelas existentes, loteamentos irregulares, imóveis bem situados em que a prefeitura poderia cobrar o IPTU para fazer justiça fiscal? Com o apoio de vocês, estamos entrando numa nova fase. Primeiro, a idéia é trazer para a legalidade uma parte da população que está fora e, segundo, é necessário conhecer melhor o Brasil. É bom lembrar que nessas áreas, localizadas em todas as regiões brasileiras, existe uma ilegalidade no uso e ocupação do solo, mas também, uma irregularidade que pode servir de base para uma ilegalidade generalizada nas relações sociais.
Patrícia Ferraz: – Existe correlação entre a irregularidade fundiária e a violência urbana?
Ermínia Maricato: – É possível notar uma correlação entre a ilegalidade urbanística generalizada e a violência porque, nessas áreas, não existem leis para a resolução de conflitos sociais. Se você tem uma briga com um vizinho ou seu filho é agredido, a coisa se resolve ali mesmo, na base da força, ou seja, é uma cidade que não tem lei, não tem governo. Nas metrópoles existem regiões inteiras que estão nessas condições. Não existem regras para as relações. A ocupação do solo talvez se torne uma questão menor, se considerarmos que as relações sociais acabam sendo regidas por regras e leis que não são aquelas do Estado de Direito.
Patrícia Ferraz: – Poderíamos dizer que a regularização fundiária é o grande instrumento ou o início de um grande processo de difusão da cidadania no país?
Ermínia Maricato: – Perfeito. É notável como a violência diminui depois de um processo de regularização e urbanização em áreas extremamente degradadas e violentas. Isso ocorre porque chega o sistema viário, com aberturas de ruas, etc. No Brasil, temos tido inúmeras experiências interessantes e bem sucedidas de urbanização de favelas, como é o caso da favela-bairro no Rio de Janeiro. Mas é muito difícil chegar ao final do processo, que seria a regularização fundiária, porque existe muita resistência na sociedade brasileira.
Patrícia Ferraz: – Mas essa resistência parte da sociedade como um todo ou daqueles que se beneficiam largamente do panorama de irregularidade?
Ermínia Maricato: – Essa resistência existe, mas não é o fundamental. Há espaços institucionais que têm preconceito contra a regularização fundiária. Ainda existem autoridades que dizem que o correto é remover a favela, como se a favela fosse um caso de polícia e não um local onde o trabalhador brasileiro é obrigado a viver. Para se ter uma idéia, há funcionários da USP que habitam em favelas ao redor da universidade. O trabalhador de classe média, o policial militar mora em favelas.
Patrícia Ferraz: – E enfrenta uma grande dificuldade na sua atividade porque não pode sequer sair fardado da sua própria casa.
Ermínia Maricato: – Essa situação é fato comprovado.
“Precisamos avançar na regularização da propriedade, dar títulos às pessoas.”
Patrícia Ferraz: – Sobre a remoção de determinadas famílias de áreas irregularmente ocupadas em determinados casos-limite, é absolutamente necessária.
Ermínia Maricato: – Sim, é necessária. Nas ocupações irregulares que prejudicam o meio ambiente, o interesse difuso, enfim, situações insustentáveis, a remoção é necessária. Quando fazemos uma urbanização que vai transformar uma favela em um bairro, sempre é preciso retirar uma parte da população para a abertura de ruas, praças, para instalação de equipamentos públicos, etc. O Brasil já tem know how de urbanização de favelas, somos procurados por outros países em desenvolvimento. Mas precisamos avançar na regularização da propriedade, dar títulos às pessoas. Se regularizarmos uma favela, transformando-a num bairro, a prefeitura terá condições de exercer o poder de polícia urbanística. Se a pessoa quiser construir sobre a casa do vizinho ou sobre a rua, não vai poder. E na favela é isso que acontece, não temos nem referência legal para exercer esse poder de polícia. Regularizando, teremos essa condição. Portanto, é preciso trazer essa população para a legalidade.
Patrícia Ferraz: – Tenho visitado algumas comunidades beneficiadas pelo processo de regularização fundiária e a sensação é que quanto mais avançado o processo de regularização mais segurança existe na comunidade e maior é a satisfação de todos os envolvidos, porque se estabelece um vínculo afetivo da população com o território. Isso ocorre porque se verifica uma mudança no visual, um incremento do comércio local etc. Pelas pesquisas já realizadas, isso é fato em todos os lugares?
Ermínia Maricato: – Todos. Esse fato não é observado apenas no Brasil, mas também internacionalmente. No momento em que se realiza a regularização, a pessoa sabe que tem direitos garantidos constitucionalmente. A partir daí, ela passa a investir na propriedade e se estabelece uma relação de vizinhança completamente diferente.
Patrícia Ferraz: – Qual o efeito disso que o Ministério das Cidades imagina no panorama nacional? Falo isso porque milhões de micro-movimentações devem ter um efeito retumbante na economia brasileira.
Ermínia Maricato: – Sim. Neste momento estamos com 350 mil processos de regularização fundiária abertos, só no âmbito do governo federal, fora todos os esforços feitos por meio de convênios com os governos estaduais e municipais. Estamos entrando em uma nova era e acho que vai demorar cerca de 3 a 4 anos para que se perceba o impacto disso na vida do país.
“A questão fundiária está na base da maior parte dos conflitos rurais e urbanos no Brasil.”
Patrícia Ferraz: – Vamos falar agora sobre a experiência do Peru. Quem combate os argumentos da regularização fundiária sempre usa o exemplo do Peru, que tem seus problemas, como modelo de que a regularização não é o que todos pintam. Mas a regularização do Peru foi feita com base no cadastro e não no registro imobiliário. Você me disse que o Ministério das Cidades está promovendo uma cultura de criação de cadastros multifinalitários nas prefeituras municipais para o ordenamento urbanístico e finalidades tributárias. Essa é a finalidade do cadastro. Segurança jurídica quem dá é o registro de imóveis. Então, para que não se repita no Brasil o exemplo do Peru, gostaria que contasse o que o Ministério das Cidades tem pregado em suas políticas de urbanização no Brasil.
Ermínia Maricato: – Foi muito bom você tocar neste assunto. Primeiro, precisamos reconhecer que o Hernando de Sotto foi muito eficiente em criar um grande mito. Recentemente, estive num plenário da ONU, da comissão de desenvolvimento sustentável, e uma ministra de um país europeu comentou que no Peru todo o programa de inserção na economia criado pela regularização fundiária era um sucesso imenso. Não é verdade. Há pesquisas mostrando que a regularização fundiária não foi essa alavanca toda de progresso econômico. De fato, foi uma alavanca de progresso social, econômico, mas, acima de tudo, de segurança e sustentabilidade ambiental. Apesar das dificuldades, no Brasil, trabalhamos muito com a idéia de que a cidadania tem de ser igual. O cadastro é um e o registro é outro e fundamental. É a idéia dos direitos universais para todos. Temos tido na Anoreg-BR um parceiro importante nesse sentido e também estamos fazendo outras parcerias fundamentais. Teremos um seminário com a Associação dos magistrados brasileiros, com a Confederação nacional do Ministério Público e com o Irib para discutir as questões de regularização fundiária e de despejo, outro tema muito importante. Esse esforço de avançarmos institucionalmente, um país inteiro avançando num processo de inclusão social, é fundamental. Não é só no campo que a violência está ligada a essa confusão registrária de terras que estamos sempre ouvindo falar. Todo o problema sobre o meio ambiente está ligado à questão de disputas de terras. A questão fundiária está na base da maior parte dos conflitos rurais e urbanos no Brasil. É muito importante que avancemos no que diz respeito à função social da propriedade prevista no Estatuto da Cidade. A propriedade tem que estar a serviço do bem coletivo, do interesse público, e não mais aquela propriedade do Código Civil de 1916, ou seja, exclusivista e excludente.
Patrícia Ferraz: – O Estatuto da Cidade diz que a propriedade desempenha sua função social também quando promove o desenvolvimento econômico da cidade.
Ermínia Maricato: – Atualmente, no Brasil, vemos latifúndios na beira do asfalto, uma grande parte da população vivendo em beira de rios, em palafitas. Realmente, essas propriedades não estão cumprindo sua função social. Também estamos trabalhando na campanha dos planos diretores.
Patrícia Ferraz: – Com esse panorama da regularidade fundiária, como você vê a discussão do projeto de lei 3.057, que trata da regulamentação da regularização fundiária e da mudança da Lei do Parcelamento do Solo?
Ermínia Maricato: – Esse projeto ainda está carecendo de muita discussão. Não é uma discussão simples, uma vez que envolve muitos interesses divergentes. O Brasil é um país que sempre sufocou os conflitos. Precisamos aprender a trabalhar com a democracia, trazendo os conflitos a mesa de discussões. Esse projeto de lei está servindo para isso e é fundamental para o país, porque dá normas para a regularização fundiária e também para a modernização do parcelamento do solo.
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