BE1998

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Georreferenciamento de imóveis rurais


São Luiz do Paraitinga, 9 de setembro de 2005

Dr. Sérgio Jacomino, Presidente do Irib.

Tomo a liberdade de escrever-lhe esta carta com a esperança de compartilhar com o Senhor dúvidas e incertezas que nos foram brindadas, a nós, que trabalhamos em cartórios extrajudiciais de pequeno porte, pela Lei 10.267/01 e Decreto 4.449/02.

Não tomarei seu tempo mais que cinco minutos.

Trabalho no Serviço de Registro de Imóveis de S. Luiz do Paraitinga, interior de São Paulo, há 11 anos. Esclareço, de plano, que a delegação está sob a responsabilidade interina de minha irmã Rosa Maria, escrevente à época em que se aposentou meu pai, depois de estar à frente do "Cartório" por 40 anos.

Num mundo de livros antigos, papéis, remédios para traças, máquinas de escrever repicando todo o tempo e leituras intermináveis de documentos alheios, crescemos, eu e minhas irmãs, vivendo de perto os altos e baixos inerentes à profissão escolhida por meu pai, a de registrador. A delegação sempre foi pequena; para se ter uma idéia, hoje somamos 2.935 matrículas, os rendimentos não são exagerados, porém, vivemos sempre com dignidade.

Nem me lembro quando comecei a aprender o ofício e a prática diária de um "Cartório". Costumo dizer que antes de escrever com o lápis, eu e minhas irmãs já sabíamos utilizar a máquina de datilografia com desenvoltura, pois, ajudávamos meu pai em seu ofício. Era inviável, então, a contratação de funcionários, pelo exíguo rendimento do serviço, que ademais, variava a cada mês.

Quando da aposentadoria de meu pai, em 1995, minha irmã Rosa Maria, como dito acima, foi designada, pelo Juiz da Comarca, oficiala interina. Nesta ocasião eu acabava de retornar ao Brasil, depois de uma longa temporada na Espanha. Meu propósito inicial era lecionar, objetivo este que abandonei, temporariamente, para ajudar minha irmã no "Cartório".

Mas o destino tem das suas e ouso mesmo dizer que, inexplicavelmente, nos maneja. O que era apenas uma ajuda temporária se tornou uma grande empreitada. A atividade me era familiar, fluía quase naturalmente. Na falta de conhecimentos técnicos mais aprofundados, ingressei na Faculdade de Direito mais próxima, pois sabia ser fundamental ter acesso a eles para aprimorar meu desempenho.

Nem preciso dizer que hoje me dedico especialmente a estudar tudo o que diz respeito aos registros públicos; minha ambição agora é prestar concurso para poder ficar aqui, na cidade em que nasci, dando continuidade ao trabalho iniciado por meu pai e que se transformou, à minha revelia, numa grande paixão.

Sei que tive o privilégio de nascer neste contexto, de encontrar o bolo pronto, como dizem os caipiras (não utilizo a terminologia com o sentido pejorativo dado por alguns e sim como máxima tirada da sabedoria popular). Porém, esta circunstância não me subtrai o orgulho de fazer parte desta história.

Para nós, Dr. Jacomino, eu e minha irmã, o "Cartório" não é um serviço automático que fazemos apenas para garantir nosso dia a dia e que se dane o mundo. É um trabalho que exige talento, abnegação e muitas horas de estudo. Em todos estes anos, nunca, em nenhuma correição, em nenhum momento, se ouviu falar, que no "cartório" de registro de imóveis dessa comarca, houvesse indícios de irregularidades, falcatruas, fraudes...

Vou confiar um fato, para que o Senhor possa mensurar o significado para nós deste ofício. São Luiz do Paraitinga é uma cidade histórica e devido ao seu acervo arquitetônico é considerada o maior patrimônio do período imperial do estado de S. Paulo. Nossos livros de Transcrições Imobiliárias são tão antigos quanto nossos centenários casarões. Um desses casarões, por sinal, abriga, no térreo, o Cartório de Registro de Imóveis. No andar de cima, reside a família de minha irmã Rosa Maria.

Há alguns anos atrás, uma chuva impressionante assolou a cidade, causando inundações e enchentes. O vento golpeou com força as velhas paredes e a água da chuva entrava nas casas pelos telhados, vãos, portas, enfim... uma tragédia!

Eram 6 da tarde quando meu telefone tocou. Do outro lado da linha estava meu pai, aflito. Na época, já aposentado, do alto de seus 66 anos, me ligava para que fosse imediatamente ao "Cartório". Saí debaixo de um aguaceiro infernal. A força impiedosa da chuva ameaça molhar os documentos e os livros, que estavam sob nossa responsabilidade e proteção.

Tínhamos que tirá-los imediatamente dali e colocá-los num local seguro. Assim o fizemos. Num vai e vem incansável, ficamos horas a fio neste trabalho hercúleo, pois os livros são grandes e pesados. Ainda hoje a lembrança desta cena familiar, de união e respeito ao trabalho de toda uma vida, me comove.

Com este relato espero ter alcançado sua sensibilidade. Sei que uma delegação não é propriedade particular de ninguém; porém, não poderia deixar de lhe dirigir estas palavras, pois intuo que o Senhor devota ao ofício de registrador, e a todos aqueles que o praticam, o mesmo respeito que temos pela sua atuação frente ao Irib.

A publicação da Lei que criou o Cadastro Nacional de Imóveis Rurais e seu desdobramento agora iminente, trouxeram incertezas e uma situação dificílima para os pequenos "cartórios" que têm em seu fólio grande parte de inscrições na zona rural. Temo que, com os prazos estabelecidos, não consigamos, por muito tempo, ficar à frente da delegação, e o que é pior, não sairemos com a certeza de a estar entregando a alguém competente, escolhido através de concurso público, o que seria para nós triste, ainda que o fizéssemos com a tranqüilidade e certeza do dever cumprido. O que acontecerá é a desistência, o abandono, sem mais. Um labor de anos será entregue a algum escrevente que se interesse e que talvez não sinta nenhum amor ao seu ofício e o que é pior, não tenha noção da grande responsabilidade que é a função de registrador.

Na minha comarca, 90% dos imóveis estão situados na zona rural e com certeza mais da metade tem origem em documentos antigos, sendo as partes ideais encontradas por aqui em profusão.

Num encontro promovido pelo Irib em São Paulo, em 2002, no Hotel Macksoud Plaza, indaguei (por escrito) ao respeitadíssimo Dr. Gilberto Valente da Silva a respeito de como nós, registradores desses municípios, deveríamos fazer com relação ao problema que se instalava sobre o registro das partes ideais, já que muitos cartórios não estavam registrando imóveis em condomínio horizontal e documentos onde existia a famigerada parte ideal eram, por eles, sistematicamente devolvidos. Grande conhecedor que era da máquina cartorária, o eminente mestre foi claro: nós não podemos ser mais realistas que o rei. Os grandes condomínios, com origem antiga, devem ser respeitados e seus títulos aceitos no Cartório. Sua posição me aliviou. Como iríamos informar aos cidadãos que seus documentos viraram letra morta? Como explicar a eles mudanças jurisprudenciais que retiravam a regularidade documental de suas terras?

Porém hoje acontece algo muito pior. Dr. Jacomino, como dizer a um trabalhador cuidadoso, aquele que ao revés das dificuldades, sempre cumpriu as regras estabelecidas pela legislação e sobrevive de pequenas culturas e pastos, que ele não vai poder vender, desmembrar, parcelar, etc? Ou seja, seu imóvel estará indisponível para estes atos enquanto ele não apurar suas terras pelo custoso sistema exigido pelo Incra, que ademais é um organismo conhecido dos proprietários rurais por criar barreiras intransponíveis.

Os créditos bancários poderão ser registrados. Claro, ao vencedor as batatas, não? Quem vai pagar esta conta imoral, Dr. Jacomino?

Nós, trabalhadores dos Serviços de Registros de Imóveis, conquistamos a confiança dos habitantes de nossas cidades e somos, para eles, os baluartes da segurança jurídica – pois em nós depositam grande confiança; muitas vezes nos tornamos um pouco psicólogos, um pouco padres e muito advogados destes cidadãos. Perderemos tudo? Sim, porque perder a credibilidade é perder tudo!

Busco incansavelmente pelo princípio da moralidade neste país, mas está difícil encontrar vestígios dele.

Sei da importância do georreferenciamento pelo sistema geodésico. Reconheço a necessidade urgente que se tem de regularização fundiária no Brasil. Mais, admiro o desempenho do Irib nas questões que versam sobre o assunto, porém, cautela é de bom tamanho quando mexemos com o que não é nosso, sobretudo quando se trata de patrimônio. Estamos falando de um exército de brasileiros sem condições de regularizar seus imóveis por razões óbvias: dinheiro.

O que está sendo gestado, nas entranhas burocráticas e insensíveis do Incra e do Governo, é a insegurança jurídica, e quando sabemos que a segurança jurídica é um dos pilares do sistema registrário, temos, no mínimo, que buscar uma saída razoável para o tema, sob pena de sermos acusados de cúmplices desta irresponsabilidade.

Estou certa que vamos assistir, indubitavelmente, a uma total informalização dos negócios jurídicos. A lei em questão fará com que todos, de forma indiscriminada, se utilizem dos instrumentos particulares e recibos privados nas transações imobiliárias. Será a vitória do corporativismo atávico, que corrói o melhor do Brasil.

Agradeço a atenção dispensada a mim e não quero terminar esta carta sem antes elogiar seu trabalho à frente do Irib, sobretudo porque, com seu desempenho, os brasileiros puderam descobrir que nós, registradores, não somos aqueles seres que a literatura sacramentou como sisudos, casmurros, de óculos de lentes grossas, sumidos atrás de livros, alheios à realidade factual do país; somos, sim, operadores do direito, cientes de nossa responsabilidade social e preocupados em atender à população com todo o respeito que ela é merecedora.

* Haydée Maria Corrêa Ivo é Escrevente do Serviço de Registro de Imóveis e Anexos de São Luiz do Paraitinga, Estado de S.Paulo.



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