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TV JUSTIÇA
O Irib gravou uma série de programas sobre o tema da regularização fundiária urbana, no último dia 3 de junho, em São Paulo.
No programa que foi ao ar no dia 14 de agosto de 2005 a diretora de urbanismo e regularização fundiária do Irib, Patrícia Ferraz, entrevistou o juiz Venicio de Paula Salles.
Apresentação
Cartório, o parceiro amigo é o programa da TV Justiça que vai ao ar aos domingos, às 7h, com reapresentação na terça-feira, às 10h e sexta-feira, às 18h30. Uma iniciativa da Anoreg-BR, o programa é coordenado por seu diretor, José Maria Siviero, e realizado pelas entidades dos notários e registradores.
O Irib gravou uma série de programas sobre o tema da regularização fundiária urbana, no último dia 3 de junho, em São Paulo.
No programa que foi ao ar no dia 14 de agosto de 2005 a diretora de urbanismo e regularização fundiária do Irib, Patrícia Ferraz, entrevistou o juiz Venicio de Paula Salles.
O doutor Venicio de Paula Salles é juiz corregedor dos cartórios de registro de imóveis da capital de São Paulo, titular da Primeira Vara de Registros Públicos, e tem desempenhado importante papel na regularização fundiária da cidade.
Entrevista
“Eu acho que a regularização tem um movimento econômico muito importante, uma vez que a própria titulação da propriedade de uma família gera um micro movimento de investimento.”
Patrícia Ferraz: – Para a Primeira Vara de Registros Públicos da capital de São Paulo, o que é a questão da regularização fundiária?
Doutor Venicio Salles: – A regularização fundiária é um processo altamente complexo. Essa complexidade, obviamente, também chega ao Judiciário e ao procedimento judicial. Na verdade, entendemos que a regularização fundiária tem dois grandes focos: um da urbanização e outro da titulação dominial. Evidentemente que a vara de registros públicos não tem ligação com a questão da urbanização, mas com a leitura da legislação e com a leitura das prioridades. Temos que acompanhar as coisas como acontecem. O que vai determinar a prioridade de se iniciar a regularização fundiária pela urbanização, ou se iniciar a regularização fundiária pela titulação dominial, é justamente a função social. Se o vetor da função social determinar que a prioridade agora é a titulação e, depois, a urbanização, é assim que deve ser feita. Se houver uma inversão, ou seja, se a função social exigir uma urbanização prévia, a titulação, é assim que deve ser feita. Mas em geral essas coisas acontecem concomitantemente. Você sabe que a cidade de São Paulo é extremamente problemática e que vivemos nessa metrópole caótica. É caótica, do ponto de vista urbanístico, justamente porque cresceu de foram desorganizada, são massas e massas de pessoas que afluíram a São Paulo em busca de emprego, de colocações, e foram se assentando, ocupando os espaços urbanos como podiam. Todos os anéis periféricos da cidade foram formados por esses movimentos desorganizados.
Patrícia Ferraz: – Ocupações e parcelamentos irregulares?
Doutor Venicio Salles: – Exatamente. Chamamos de invasões, se a ocupação se deu sobre áreas que estavam fora do mercado formal. São áreas de proteção ambiental, áreas de risco, áreas sem vigilância que chamamos, também, de ocupações. As ocupações têm um sentido mais preocupante, uma vez que decorrem de parcelamentos irregulares. Em geral, esses ocupantes compraram seu quinhão de terra, pagaram por ele e se vêem desestimulados porque não conseguem registrar seus títulos, ficam à mercê do mercado formal.
Patrícia Ferraz: – Compraram do proprietário e, às vezes, de quem nem proprietário era, não é verdade?
Doutor Venicio Salles: – Os tipos de irregularidades são os mais variados possíveis.
Patrícia Ferraz: – Segundo um levantamento do Resolo, até o ano de 2000, cerca de 3 mil áreas da cidade de São Paulo poderiam ser classificadas como irregularmente ocupadas. Esse número diminuiu muito?
Doutor Venicio Salles: – Esses números são sempre estimados. Na gestão passada, estimavam cerca de quase 4 mil áreas irregularmente ocupadas. Nesta gestão estão estimando que existam 2.100 parcelamentos de solo irregulares, ou seja, os números são muito imprecisos. Mas mesmo esse número mais baixo é bastante expressivo, uma vez que temos um universo de 400 a 600 mil famílias em estado de informalidade só na capital, não estou falando na Grande São Paulo. Na capital, temos esse grande contingente de pessoas que sofrem por não ter os títulos.
Patrícia Ferraz: – Qual a avaliação que o senhor faz do impacto dessa situação de irregularidade na economia da cidade?
Doutor Venicio Salles: – Eu acho que a regularização tem um movimento econômico muito importante, uma vez que a própria titulação da propriedade de uma família gera um micro movimento de investimento, de conservação do próprio imóvel. Coisas que não se faz enquanto não se tem o título, mas sim depois que se recebe o título. Costumo dizer que essa pessoa deixa de ser um opositor da cidade, e passa a ser um aliado. Esses micro-movimentos geram macro resultados, que eu chamo de urbanização. A própria titulação por si só é alavanca de movimento muito importante. Nós aspiramos realmente a um trabalho que vá nesse sentido, mas temos poucos mecanismos para isso.
Patrícia Ferraz: – Um dos instrumentos que as prefeituras utilizam é a desafetação de áreas públicas para poder legalizar as ocupações nessas áreas. Isso foi feito em grande escala em São Paulo, capital. Os títulos emitidos para essas áreas desafetadas, que foram objeto de regularização, foram registrados no cartório de registro de imóveis?
Doutor Venicio Salles: – A estimativa é de que foram conferidos cerca de 45 mil títulos de concessão especial de uso, ou concessão especial de uso para efeito de moradia, com base na medida provisória 2.220. Mas a resposta foi desanimadora. Nenhum título foi registrado, em que pese todo um esforço dos próprios titulares dos registros de imóveis no sentido de reduzir o valor desse registro a um custo social. Ao que parece, a população não foi convenientemente alertada sobre o direito individual de acesso ao registro que eles conquistaram.
Patrícia Ferraz: – Isso não é uma característica só da capital de São Paulo. Em Diadema, cerca de dez anos atrás, foram emitidos 25 mil títulos de concessão, desses só 239 foram registrados e nenhum teve movimentação no registro de imóveis desde então.
O senhor levou um grande número de inovações para a Primeira Vara de Registros Públicos da capital, o que tem propiciado uma intensa dinamização dos processos de regularização fundiária. Fale sobre essas inovações.
Doutor Venicio Salles: – O procedimento de regularização fundiária é emperrado, tínhamos muitas dificuldades. Temos três grandes instrumentos para alcançar a regularização fundiária. Um é a retificação do registro, o segundo é a ação de usucapião e o terceiro é a ação da concessão do direito real de uso. O que acontece é que temos uma legislação muito avançada: Estatuto da Cidade, planos diretores e a própria Constituição de 1988, que também foi inovadora. Na parte urbanística, nenhuma constituição passada tinha o capítulo urbanização. Todos esses avanços, com a inauguração de novos institutos e mecanismos, foram muito pródigos em termos de direito material e foram muito problemáticos em termos de direito processual. O procedimento para se atingir a regularização é extremamente complexo e lento. Agora tivemos a grata satisfação de contar com a lei 10.931, de agosto de 2.004, que veio gerar uma série de inovações positivas para a retificação de registro, deslocando parte dessa questão para os cartórios de registro de imóveis...
Patrícia Ferraz: – ... e deixando para o Judiciário a solução daquelas hipóteses em que há conflito.
Doutor Venicio Salles: – Exatamente. O que acontece é que o Judiciário ainda é o destinatário das grandes discussões. Nessas ocupações de que estamos falando, em geral o empreendedor já desapareceu e deixou à mingua a população que comprou os lotes. Quem fica com a obrigação de fazer a regularização é a própria municipalidade, segundo o artigo 40 da lei 6.766, uma incumbência que por vezes é inglória, porque as dificuldades de regularização são muitas.
“Quem tem que dar a última palavra sobre urbanização é justamente o município. A União sempre dá a palavra geral.”
Patrícia Ferraz: – Um das dificuldades no estado de São Paulo é exatamente o fato de que em determinadas hipóteses, além da participação da prefeitura se exige licenciamento no âmbito estadual, especialmente para áreas metropolitanas. Como o senhor tem resolvido as questões que chegam até a Primeira Vara de Registros Públicos e que tratam da regularização das áreas da cidade de São Paulo?
Doutor Venicio Salles: – Esse já é um problema de interpretação normativa que acho extremamente complexo. O Brasil é um país federativo, mas a origem dessa federação partiu de um centralismo. A mentalidade no Brasil sempre foi centralizadora. Disso decorre sempre o entendimento equivocado de que a lei federal é mais forte, hierarquicamente superior à lei estadual, que por sua vez é hierarquicamente superior à lei Municipal. Retira-se do município grande parte da sua competência. Na verdade, a leitura isenta da Constituição vai revelar que as normas federais sobre urbanização têm o sentido de normas gerais, valem justamente para uma padronização nacional e prevalece a norma específica municipal sobre isso. Quem tem que dar a última palavra sobre urbanização é justamente o município. A União sempre dá a palavra geral. Inadvertidamente, as interpretações normativas têm andado ao contrário, sempre deixando prevalecer o interesse federal. Recolocando as coisas no seu devido lugar e as competências como elas devem ser, fica muito claro que no âmbito municipal quem tem que resolver as questões urbanísticas, legislativa e administrativamente, é o município. Nem o estado, nem a União devem se imiscuir nesses assuntos. Obviamente, quando se fala em região metropolitana, se lança para o estado a tarefa de fazer a regulamentação. São questões de caráter metropolitano. Por exemplo, o transporte público passa de um município para o outro, por isso tem caráter metropolitano.
Patrícia Ferraz: – Questões como infra-estrutura, água, esgoto, luz, etc., vão ter impacto na região é deveriam ensejar a participação do estado.
Doutor Venicio Salles: – Exatamente, mas no caso de uma regularização de área estritamente municipal, que não tem nenhum reflexo em outro município, não há porque se trazer para essa discussão o interesse do estado.
Patrícia Ferraz: – É isso que tem sido feito na capital.
Doutor Venicio Salles: – Sempre. Era costume na capital se trazer o estado para falar sobre essas questões. Agora, estamos dando prioridade à prevalência do interesse municipal nessa parte.
Patrícia Ferraz: – Em termos de celeridade na aprovação desses projetos de regularização, qual o efeito da manutenção da competência municipal para a aprovação dos empreendimentos?
Doutor Venicio Salles: – É muito mais rápido. O município consegue a aprovação de maneira muito mais eficiente, até porque existe interesse direto na área.
“O grande problema da usucapião singular é a citação, gasto 50% do meu tempo tentando localizar as pessoas.”
Patrícia Ferraz: – Vamos falar sobre a usucapião, um dos grandes instrumentos utilizados para regularização fundiária em todo o Brasil. Queria começar com a utilização da usucapião coletiva em São Paulo.
Doutor Venicio Salles: – O processo de usucapião foi desenhado e montado há muito tempo e ainda traz essas marcas. Toda a legislação nova abreviou muito o prazo da conquista da usucapião.
Patrícia Ferraz: – Quanto tempo demora hoje uma ação de usucapião na capital?
Doutor Venicio Salles: – Varia de cinco a oito anos a estimativa para o processamento de uma ação de usucapião. O grande problema da usucapião singular é a citação. Somos obrigados a citar todos os vizinhos confrontantes do imóvel e a localizar e citar o antigo titular de domínio, o que ás vezes é extremamente difícil. O Judiciário não dispõe de um banco de dados que forneça o endereço das pessoas. Seria muito fácil se tivéssemos à disposição um banco de dados como tem a Justiça eleitoral, e se esse banco fosse atualizado. Para se ter uma idéia, trabalho no fórum João Mendes, que é o maior fórum da América Latina. Meu cartório é o maior desse fórum, eu gasto 50% do meu tempo tentando localizar as pessoas, para você perceber os transtornos que enfrentamos por falta de um banco de dados públicos que forneça um endereço confiável.
Patrícia Ferraz: – Como a sua experiência de advogado de empresas tem ajudado a dinamizar esses processos de usucapião?
Doutor Venicio Salles: – Estamos tentando sempre abreviar um pouquinho as coisas. Temos dois grandes problemas no processo. Além da citação, temos também a perícia. Você sabe que o processo de usucapião beneficia uma faixa da população desprotegida de bens econômicos, são pessoas hipossuficientes economicamente. Elas não têm como pagar a perícia, que fica a cargo do estado. Em geral, o estado não é um bom pagador, ele cria dificuldades. Resultado: eu fico com uma infinidade de processos parados, aguardando perícia. Para tentar diminuir esse sacrifício e também os custos, pedimos que a prefeitura nos fornecesse o mapeamento da cidade. Já comecei a receber as plantas de vários parcelamentos que não permitem, por uma série de motivos, retificação de registro, mas vou depositar essas plantas nos cartórios de registro de imóveis e, com base nelas, vou começar a assentar as posses de usucapião. Isso me proporciona, primeiro, um barateamento do processo, cumpro o princípio da economicidade; segundo, um ganho em qualidade. Hoje, as perícias não individualizam corretamente o imóvel. Tenho algumas perícias de usucapião na área de Paraisópolis, uma das maiores favelas de São Paulo, em que a indicação do imóvel é altamente imprecisa, o cartório registra e eu não sei onde é o imóvel.
Patrícia Ferraz: – Nas ações de usucapião promovidas em face dos proprietários, que já têm um imóvel perfeitamente descrito, caracterizado, com matricula registrada no registro de imóveis, qual o procedimento adotado pela Primeira Vara de Registros Públicos da capital?
Doutor Venicio Salles: – Chamamos essa usucapião de tabular. Quando a posse coincide com uma matrícula ou transcrição antiga, e o possuidor concorda com essa coincidência, dispensamos a perícia, o que já é muita coisa. Depois, citamos os confrontantes, uma vez a legislação ainda exige isso, mas sem adotar medidas extraordinárias, ou seja, estamos tentando localizá-los ordinariamente. É um processo muito mais rápido e dá resultados muito produtivos.
Quanto ao poder público, a citação é sempre mais fácil. No caso dos confrontantes, estamos fazendo mais citações de confrontante de fato e confrontante de direito, o que também abreviou bastante o processo. Só isso já está dando resultados muito alvissareiros.
Patrícia Ferraz: – A usucapião coletiva tem sido muito utilizada em São Paulo?
Doutor Venicio Salles: – Pouquíssimo. Temos até uma perspectiva de que a usucapião coletiva em partes ideais não vai ser um veiculo que vai trazer grande satisfação. Cito dois casos que temos em São Paulo: um na zona Leste, em que uma Igreja entrou com usucapião para 300 famílias; outro em Santo Amaro, em que outra associação ingressou em nome de 165 proprietários. Até hoje, eles comparecem na vara, diariamente. Eles querem seu título individual, não aceitam ser proprietários de uma fração de 1/300 ou 1/165. Eles nos procuram, querem saber qual a solução e não temos uma resposta muito boa para dar. Mesmo a usucapião individual é quase impossível, uma vez que não vou conseguir citar 300 famílias que são proprietárias.
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