BE1957
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Instrumentos particulares com força de escritura pública
Mauro Antônio Rocha *
“O uso incorreto de um antibiótico pode torná-lo insuficiente para tratar outra ocorrência de infecção no futuro” [1]
1. Em entrevista publicada no Boletim Eletrônico IRIB nº 1909 , de 08 de agosto de 2005, o I. Presidente do Conselho Notarial Brasil do Brasil, Dr. José Flávio Bueno Fischer, respondeu à questão sobre a importância da atividade notarial para a certeza jurídica dos negócios e sobre a proliferação de instrumentos particulares no mercado imobiliário em geral, expondo e defendendo com firmeza as vantagens da escritura pública em confronto com a contratação privada.
Ao comentário do entrevistador de que este advogado registrou no Boletim Eletrônico IRIB nº 1620 , entre as diversas razões que impedem o financiamento pelo SFH da construção de imóvel residencial em condomínios constituídos em fraude à lei do parcelamento do solo, que as instituições financeiras “exercem atividade de caráter notarial, devendo, por zelo e para prevenir responsabilidades pautar-se pelas normas legais e administrativas aplicáveis aos notários públicos'” o entrevistado criticou o sistema legal que permite o chamado escrito particular com força de escritura pública, comparando sua utilização, em detrimento do instrumento público, à prescrição de aspirinas ao paciente necessitado de antibióticos, afirmando, também, com evidente exagero, que o argumento do advogado equivaleria ao reconhecimento do exercício ilegal de atividade notarial pelas instituições financeiras.
2. Os serviços notariais são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público, por força do disposto no artigo 236 da Constituição Federal e regulamentados pela Lei nº 8.935, de 18 de novembro de 1994, que definiu, em seu artigo 1º, serviços notariais e de registro como os de organização técnica e administrativa destinados a garantir a publicidade, autenticidade, segurança e eficácia dos atos jurídicos e, no artigo 3º, como notário ou tabelião, o profissional do direito, dotado de fé pública, a quem foi delegado o exercício da atividade notarial.
Ao notário compete, nos termos do artigo 6º da Lei, formalizar juridicamente a vontade das partes, intervir nos atos e negócio jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal ou autenticidade, autorizando a redação ou redigindo os instrumentos adequados, conservando os originais e expedindo cópias fidedignas de seu conteúdo e autenticar fatos. A mesma Lei, no artigo 7º, outorga competência exclusiva aos tabeliães de notas para lavrar escrituras, procurações e testamentos, públicos e aprovar os testamentos cerrados; lavrar atas notariais; reconhecer firmas e autenticar cópias.
3. De outro lado, a legislação ordinária conferiu a determinados contratos celebrados através de instrumentos particulares o caráter e os efeitos de escritura pública.
Nesse sentido, dispõe a Lei nº 4.380, de 21 de agosto de 1964, que instituiu o Sistema Financeiro da Habitação, no § 5º acrescentado ao artigo 61 pelo artigo 1º da Lei nº 5.049, de 29 de junho de 1966, que:
§ 5º Os contratos de que forem parte o Banco Nacional de Habitação ou entidades que integrem o Sistema Financeiro da Habitação, bem como as operações efetuadas por determinação da presente Lei, poderão ser celebrados por instrumento particular, os quais poderão ser impressos, não se aplicando aos mesmos as disposições do art. 134, II, do Código Civil, atribuindo-se o caráter de escritura pública, para todos os fins de direito, aos contratos particulares firmados pelas entidades acima citados até a data da publicação desta Lei.
Dispõe, também, a Lei nº 9.514, de 20 de novembro de 1997, que trata do Sistema Financeiro Imobiliário e instituiu a alienação fiduciária de coisa imóvel, em seus artigos 22 e 38, ambos com a redação dada pela Lei nº 11.076, de 30 de dezembro de 2004, que:
Art. 22. A alienação fiduciária regulada por esta Lei é o negócio jurídico pelo qual o devedor, ou fiduciante, com o escopo de garantia, contrata a transferência ao credor, ou fiduciário, da propriedade resolúvel de coisa imóvel.
Parágrafo único. A alienação fiduciária poderá ser contratada por pessoa física ou jurídica, não sendo privativa das entidades que operam no SFI, podendo ter como objeto bens enfitêuticos, hipótese em que será exigível o pagamento do laudêmio, se houver a consolidação do domínio útil no fiduciário.
...
Art. 38. Os atos e contratos referidos nesta Lei ou resultantes da sua aplicação, mesmo aqueles que visem à constituição, transferência, modificação ou renúncia de direitos reais sobre imóveis, poderão ser celebrados por escritura pública ou por instrumento particular com efeitos de escritura pública.
4. Do acima descrito e transcrito decorre, naquilo que aqui nos interessa, que compete ao notário formalizar a vontade das partes e intervir nos atos e negócio jurídicos a que as partes devam ou queiram dar forma legal e que a lavratura de escrituras públicas é atividade notarial de competência exclusiva do tabelião de notas.
Decorre, também, que os instrumentos contratuais lavrados no âmbito do Sistema Financeiro da Habitação e do Sistema Financeiro Imobiliário têm caráter de escritura pública e produzem os mesmos efeitos de direito, quais sejam, a publicidade, a autenticidade, a segurança e a eficácia e executividade.
Assim, s.m.j., a escritura é instrumento público resultante da atividade notarial exercida pelo tabelião de notas e o instrumento particular, ao qual a lei conferiu efeitos de escritura pública, resulta de atividade notarial destacada da competência exclusiva dos notários e delegada pela lei ordinária às instituições que operam no âmbito do SFH e do SFI com a adoção da alienação fiduciária de coisa imóvel.
Portanto, o caráter de documento público atribuído aos instrumentos particulares tratados, assim como o aspecto ‘cartorial’ da atividade exercida pelas instituições na contratação dessas operações imobiliárias, decorrem dos dispositivos legais de regência, não importando em nenhuma espécie de invasão de competência exclusiva dos notários.
5. Reconhecendo a importância da participação do tabelião na formalização dos atos e negócios jurídicos, permitimo-nos afirmar inaplicáveis aos instrumentos privados elaborados para a interveniência das instituições financeiras nos negócios imobiliários as razões arroladas pelo I. Presidente do CNB como desvantajosas em relação aos instrumentos públicos, sendo certo que são produzidos por advogados qualificados, redigidos de forma clara e precisa de forma a afastar nulidades e falsidades e são, da mesma forma, conservados em segurança para consulta e reprodução.
Demais, afastados os preconceitos e sem adentrar o mérito das cláusulas referentes ao contrato adjeto de mútuo financeiro, as disposições relativas ao negócio imobiliário propriamente dito – que é na verdade o objeto do interesse notarial - são redigidas com o desejado apuro técnico, de forma absolutamente imparcial, sem qualquer tipo de favorecimento da instituição ou de terceiros.
Podemos concluir, neste ponto, que esses instrumentos representam a dose exata e suficiente do medicamento prescrito e dispensam a administração do antibiótico sugerido.
6. Finalmente, ao tempo em que nos posicionamos contra “a banalização do documento notarial, e a supervalorização dos instrumentos particulares” [2] , pelas razões expostas pedimos vênia para apartar esses instrumentos com força de escritura pública lavrados pelas instituições financeiras daqueles outros que, no dizer do I. Notário constituem “a porta escancarada para a fraude”.
Notas
* Mauro Antônio Rocha é advogado e Coordenador Jurídico de Contratos Habitacionais da Caixa Econômica Federal
[1] Boletim NOTÍCIAS DA ANVISA, Brasília, 7 de janeiro de 2005
[2] Sergio Jacomino, BE Irib nº 1345, 11/10/2004
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