BE1931
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Bolo no Cartório de Registro de imóveis
O registro na vida das pessoas
O título da crônica de Loyola Brandão, publicada na edição de sexta-feira (12/08/2005) do Estadão, poderia causar algum sobressalto no leitor cartorário desavisado. “Bolo em cartório”?
Corri os olhos pelo texto procurando divisar qualquer nota dissonante. Faço-o até por dever de ofício, já que na condição de Presidente do Irib cabe-me a defesa da instituição.
Qual o quê! O texto traz uma linda história ocorrida num Cartório de Araraquara, cidade natal do articulista. Brandão situa a cena no Cartório do João Galhardo, nosso grande amigo e mestre na profissão e na vida.
Flaviano e João Baptista Galhardo (lançamento do livro Ata Notarial, em 19/2/2004, São Paulo)
João Baptista Galhardo é um registrador ímpar. Amigo certo nas horas incertas é um colega sempre disposto a compartilhar seus conhecimentos e sua larga experiência no mister registral com todos aqueles que têm a graça de cruzar os seus caminhos. Foi assim comigo e com muitos outros registradores – além de notários, juízes, advogados, promotores e outros juristas.
Vocês perceberão o carinho com que os araraquarenses brindam os cartórios locais pelo texto simpático e deliciosamente bem escrito do grande escritor. Nele o Cartório de Registro de Imóveis se humaniza, flagrado pelo olhar atento do cronista que o vê onde sempre esteve: no coração da cidade. Certamente os cartórios representam o fruto bem-acabado da pólis! Vale a pena a leitura! (SJ)
O Bolo do Cartório
Ignácio de Loyola Brandão
Foi um dia que ficou na história dos cartórios da cidade. Faz meses que aconteceu, a mãe de Denis ainda estava viva; ela morreu há um mês. Certa manhã, ele saiu apressado para o cartório, passou pela casa da mãe e pediu: "À noite vem um amigo em casa e ele é louco por bolo. Você me faz aquele?" Ela sabia ao que ele se referia. A cada semana, ainda que o filho tivesse 50 anos, fosse casado, com filhos crescidos, ela mandava um bolo para a casa dele.
Uma dessas tradições boas que persistem neste mundo de comidas produzidas em série. Mãe é assim! Ainda bem, dizem os amigos de Denis que, apesar de serem chegados a uma cervejinha gelada, sabem reconhecer uma boleira que excede.
Feito o pedido, ele foi para o cartório, superlotado àquela altura da manhã. Parece que toda a cidade tinha decidido fazer registros, pedir certificados, pagar emolumentos, buscar declarações e tudo o que se faz num cartório. Denis estava ao balcão, a serventuária a atendê-lo, ele ia assinar um papel quando o celular tocou. Olhou o número, para saber se atendia. Atendeu.
- Mãe! O que aconteceu? Nunca me liga quando estou trabalhando!
- Nada, meu filho. Preciso de um favor, se não, não tem o bolo.
- O que foi? Algum problema?
Sabem como é? Falar ao celular é um diálogo de surdos. Um grita de lá, o outro de cá, todos ouvem. E a turma no cartório ficou ligada na conversa, quase todos conheciam Denis, homem popular e super-relacionado pelo seu cargo de diretor de uma autarquia. Bolo? Que história era essa?
- Sabe, filho! Fui olhar, hoje não é o dia do seu bolo, percebi que estou sem alguns ingredientes.
- Nenhum problema, mãe! Diz o que precisa, levo.
A serventuária estendia papéis que ele devia ler, conferir os dados e assinar. Ele ficou confuso, vendo que mais gente havia chegado, rodeava.
- Diz o que precisa!
- Ovos, fermento em pó...
- Tudo bem... ovos e fermento em pó... vou levar. Ciau, mãe!
- Espera aí, tem mais coisa! Açúcar, creme de leite... Está anotando?
- Mais coisa? Preciso de um papel... Por favor, moça (ele estava careca de saber o nome da serventuária, tanto vinha ali, mas, afobado, tinha se esquecido), me arranja uma folha de papel?
Ela estendeu uma folha timbrada: Registro de Imóveis de Araraquara, havia umas anotações, era um rascunho.
- Pode usar essa.
- Diz mãe... ovos. Quantos ovos? Meia dúzia? Bem, levo uma. Açúcar, creme de leite... O quê? Raspa de coco? Não é coco ralado? Coco ralado eu sei o que é, mas raspa de coco? Fresca, ainda por cima.
Virou-se, o cartório tinha parado em função da receita. Gozadores estavam de papel na mão, dizendo: ovos, açúcar, creme de leite, raspas de coco.
- Alguém conhece raspa de coco? Coco fresco, minha mãe está dizendo! Não, não é esse coco ralado de saquinho, ela diz que se for usar esse é melhor usar sabão em pó.
Os homens se entreolharam. Homens de negócio, de empresa, do mundo imobiliário, de construtoras, lá estava até o Massafera que tinha sido até prefeito, ao lado de pessoas simples que tinham ido apenas registrar uma casinha daquelas feitas pelo Gullão, outro tipo popular, que começava seus empreendimentos modestamente, mas muito bem-feitos. Não, ninguém ali conhecia raspa de coco. Um pediu tempo para ligar para a mulher.
- Podemos falar depois, mãe?
- Quer o bolo para hoje?
- Quero, mas estou no cartório agora.
- Que cartório, que nada! Traz os ingredientes se quiser o bolo. Anota. Canela, leite condensado, ameixa, uva passa, uma barra de chocolate amargo... Espera! Não esqueceu as lascas de coco, esqueceu?
Os assistentes, lápis e papel na mão, repetiam, como se fosse um coral: canela, leite condensado, ameixa, uva passa...
- Não, não esqueci, mãe! Só não sei o que é? Como? O mercado central? Tem uma banca que vende lascas de coco fresco? Vou lá. Não, mãe! Não precisa repetir, o cartório está cheio.
Encontro as lascas de coco.
O sujeito que tinha ligado para a mulher acenava para Denis, fazendo sinal de ok. Tinha descoberto o segredo das lascas de coco fresco. Denis acenou agradecendo.
- O quê, mãe? Açúcar cristal e banana? Mas que bolo vai fazer? Não, não! Esse é complicado, quero aquele simples, que você me faz toda semana... Está bem, faz, quer impressionar meu amigo! Valeu!
Do meio da turba que tinha se juntado, veio uma voz: "Vai ficar doce demais." Outro entrou na conversa:
- Depois me dá a receita!
E mais um:
- Esse é o melhor cartório da cidade. Fornece receita de bolo.
- Não é mais fácil comprar no Zoega?
O Zoega, há décadas falecido, foi sinônimo de doce, sabor. Homem de uma época em que não existiam obsessões pelo diet ou light que hoje amedrontam. Denis desligou, o cartório aplaudiu.
A serventuária pediu: Ou me dá a receita ou me traz um pedaço. O cartorário se aproximou: Tenho um nome para essa receita.
- Diga!
- Bolo do Cartório de Imóveis. Vai sair daqui com registro.
Ele apanhou a lista de ingredientes, colocou todos os carimbos existentes, selou, assinou, entregou.
- Lista reconhecida. Oficial. Mas paga o selo!
Denis estava desajeitado. De repente gargalhou. Tinha sido divertido. O clima estava descontraído. Foi o assunto da semana. Nos outros dias, gente passou pela autarquia pedindo a receita de gozação. Se você quiser o Bolo do Cartório, ligue, Denis dará a receita. Mas saiba, antes, onde encontrar lascas de coco fresco.
(Jornal: O Estado de São Paulo, Caderno 2, 12/8/2005)
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