BE1836

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Notários e registradores. Responsabilidade civil. Competência - Fazenda Pública.


TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
 
11ª Câmara de Direito Público –Apelação Cível 170.183-5-9
 
Procedência: Santos
 
Relator: Desembargador Ricardo Dip (Voto RHMD 11.919)
 
Apelante: Fazenda do Estado de São Paulo
 
Apelado: CPAJ
 
RELATÓRIO:
 
O Juízo de origem, da 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Santos, julgou procedente, em parte (fls. 112-21), a ação indenizatória objeto destes autos, pela qual CPAJ busca o ressarcimento de prejuízos resultantes de negócios imobiliários, assentados em Santos e que se apoiaram em ato notarial ideologicamente falso que se lavrara no 1º Cartório de Notas e Registro de Imóveis da Comarca de Guarujá.
 
Condenou-se, então, a Fazenda do Estado de São Paulo no pagamento da indenização —com o valor correspondente a Cr$75.419.034,40, sujeitado a correção monetária e juros de mora, estes a contar da citação.
 
De par com remessa oficial (fl. 121), apelou a Fazenda paulista, a pleitear o conhecimento de agravo retido alusivo a questão competencial (cfr. autos em apenso) e sustentar sua ilegitimidade ad causam passiva e a pertinência da denúncia da lide ao Tabelião do 1° Cartório da Comarca de Guarujá (fls. 124-34).
 
Respondeu-se ao recurso.
 
É o relatório em acréscimo ao da sentença.
 
Ricardo Dip – relator
 
TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO
 
11ª Câmara de Direito Público –Apelação Cível 170.183-5-9
 
RESPONSABILIDADE CIVIL. DANO RESULTANTE DE ATIVIDADE NOTARIAL OBJETO DE DELEGAÇÃO. COMPETÊNCIA. LEGITIMIDADE AD CAUSAM PASSIVA DA FAZENDA PÚBLICA. DENUNCIAÇÃO DA LIDE.
 
1. Na hipótese de concorrência competencial que se encontra nas regras do art. 100, inc. IV, a, e inc. V, a, CPC, é viável a eleição do foro comissi delicti. Doutrina de ARRUDA ALVIM e julgados cônsonos do STJ.
 
2. Assentada na responsabilidade objetiva do Poder Público (arg. art. 37, § 6º, CF/88), pode a ação de reparação de danos causados pela atividade notarial delegada ser dirigida contra o Estado, o que não significa a impossibilidade jurídica de, calçada na responsabilização subjetiva, houvesse escolhido o autor a via da ação destinada contra o notário (arg. art. 22, Lei 8.935/1994).
 
3. Nos casos em que a falta de denunciação da lide não acarreta a perda do direito de regresso (art. 70, inc. III, CPC), cabe ao juiz aferir se a chamada do terceiro atentará contra a economia do processo. Tem-se, ordinariamente, um quadro de vulneração desse indicativo econômico na denunciação que inova a base fundacional da demanda. Jurisprudência conforme do STJ.
 
Não-provimento da remessa oficial, do agravo retido e da apelação da Fazenda do Estado de São Paulo.
 
VOTO:
 
1. Satisfeitos os pressupostos formais para a cognoscibilidade do agravo retido, incluso o previsto no art. 523, caput, Código de Processo Civil (fl. 126, in medio), tem-se que, excepcionada a competência (cfr. apenso), pretende a Fazenda do Estado de São Paulo a remessa do feito a uma das Varas especializadas da Comarca da Capital, acenando ao disposto no art. 100, inc. IV, a, CPC:
 
“É competente o foro:
 
(………)
 
IV-do lugar:
 
a) onde está a sede, para a ação em que for ré a pessoa jurídica”.
 
Esta ação ajuizou-se em Santos, Comarca na qual se assentaram duas escrituras notariais de venda e compra de imóveis elaboradas com expresso uso, em nome do vendedor, Espólio de Márcia Patrícia Duarte, da procuração outorgada, com falsidade, a Antonio Soares Vasconcelos Neto e que se lançou nas notas do 1º Cartório de Guarujá (cfr. fls. 89-9, 90-1 e 21-3).
 
Anota-se que não se indicou nos autos onde o assento da falsa procuração, lavrado embora no livro de notas do 1º Tabelião de Guarujá, de fato elaborou-se, porque, entre as irregularidades anunciadas, uma houve que consistiu em ter o servidor Valdir da Silva, auxiliar desse Tabelionato, retirado de suas dependências livros para ilícitas escriturações (cfr., a propósito, fls. 21-3).
 
De toda a sorte, o fato próximo para a versada reparação de danos foi o das escrituras tabelioas que se lançaram em Santos, o que estaria a justificar a invocação da regra contida no art. 100, inc. V, a, CPC:
 
“É competente o foro:
 
(………)
 
V-do lugar do ato ou fato:
 
a) para a ação de reparação do dano”.
 
É doutrina de ARRUDA ALVIM a de a regra inscrita no art. 100, inc. IV, a, CPC —a prever a competência do lugar da sede da pessoa jurídica, nos casos em que ela é requerida na ação— não incidir necessariamente “quando se tratar de ação de reparação de dano, aplicando-se também o inc. V, a, do art. 100”. E remata esse processualista:
 
“A ação de reparação de dano, a ser proposta contra pessoa jurídica, pode ser movida no lugar do ato ou fato (art. 100, V, a), ao invés do local de sua sede (art. 100, IV, a)” (Manual de Direito Processual Civil, São Paulo, ed. Revista dos Tribunais, 1997, vol. 1, p. 279; a citação anterior acha-se na p. 275).
 
Segundo, pois, o magistério de ARRUDA ALVIM, trata-se aí de uma hipótese de concorrência competencial, viável a eleição do foro comissi delicti.
 
Esse entendimento é também assente no eg. Superior Tribunal de Justiça, como já se lê na rejeição dos EDv no REsp 49.457, da 1ª Seção, de que foi relator o Ministro ADHEMAR MACIEL (julgamento em 13 de novembro de 1996), e de cuja ementa se recruta: “Os Estados federados também podem ser demandados nas comarcas onde ocorreram os fatos”.
 
Trata-se de orientação que já se desfiara em anteriores julgados daquela eg. Corte de Justiça (v.g.: REsp 39.375 –1ª Turma –Ministro MILTON LUIZ PEREIRA; REsp 80.842 –1ª Turma –Ministro JOSÉ DE JESUS FILHO; REsp 67.345 –1ª Turma –Ministro DEMÓCRITO REINALDO; AgRg no AgInst 92.717 –2ª Turma –Ministro ANTONIO DE PÁDUA RIBEIRO), e vem de reiterar-se, nemine discrepante, em suas posteriores decisões: p.ex., REsp 101.753 –1ª Turma –Ministro DEMÓCRITO REINALDO; AgRg no AgInst 174.552 –1ª Turma –Ministro JOSÉ DELGADO; REsp 189.097 –2ª Turma –Ministro ALDIR PASSARINHO JÚNIOR; REsp 210.134 –5ª Turma –Ministro GILSON DIPP; REsp 159.345 –6ª Turma –Ministro FERNANDO GONÇALVES; REsp 155.319 –2ª Turma –Ministro HÉLIO MOSIMANN; REsp 192.896 –1ª Turma –Ministro MILTON LUIZ PEREIRA; REsp 186.576 –2ª Turma –Ministro FRANCIULLI NETTO.
 
Meu voto, portanto, nega provimento ao agravo retido menejado pela Fazenda do Estado de São Paulo.
 
2. Os registros públicos e as notas, com o advento da Constituição Federal de 1988, foram objeto de previsão que, em parte, para o caso dos ofícios então sob titularidade jurídica segundo as leis anteriores, importou em uma ficção constitucional. Consiste ela, nessa parte, em conjecturar a delegação das funções correspondentes aos registros públicos e as notas, já exercitadas —muita vez e de larga data— de modo extra-estatal. Não foi a primeira vez que nosso Direito Político positivo se valeu de ficções, nem, suspeita-se, será a última: a propósito, lembra aqui a impressiva sentença de RUI BARBOSA sobre a adoção do federalismo no Brasil: “Tivemos União antes de ter Estados, tivemos o todo antes das partes, a reunião das coisas reunidas…” (apud JOÃO CAMILO DE OLIVEIRA TÔRRES, A Formação do Federalismo no Brasil, São Paulo, Companhia Editora Nacional, 1961, p. 20).
 
Como quer que seja —e bem caberia invocar aqui o emblemático paralelismo com que o Ministro CARLOS AYRES BRITTO versou sobre “Deus no Céu e o Poder Constituinte na Terra” (nome do primeiro capítulo de sua Teoria da Constituição, Rio de Janeiro, ed. Forense, 2003)—, o fato é que, ficção só em parte, a delegação é o instituto fundacional de que se revestem, desde a CF/88, os registros públicos e as notas, conforme a previsão do caput de seu art. 236: “Os serviços notariais e de registro são exercidos em caráter privado, por delegação do Poder Público”.
 
O objeto de conceito da delegação, no Direito brasileiro, possui um núcleo duro que é o da transferência de poderes e atribuições de uma pessoa ou órgão (delegante) a outra pessoa ou órgão (delegado), e diferenças específicas que, à margem outros relevantes aspectos, indicam, entre os casos legalmente previstos de delegação, alguns que não apontam nexo hierárquico entre delegante e delegado (p.ex., a delegação legislativa, sem prejuízo da aferição dos limites de observância do que foi pontualmente delegado: arg. arts. 49, inc. V, e 68, CF/88; cfr. ainda seu art. 93, inc. XI), outros que o revelam própria e manifestamente (assim, as delegações inscritas no par. ún. do art. 84, e no inc. XIV do art. 93, CF/88, já aqui considerada a anexação da EC 45/2004, de 8-12).
 
Em uns tantos casos, além disso, poderia falar-se numa quase-hierarquia (v.g., art. 102, inc. I, m, CF/88) ou para-hierarquia —a esta espécie se remetendo a delegação em que, presente embora a transferência de funções e até mesmo a fiscalização de seu exercício pelo Poder Público, calha não se conferir, na lei, ao Poder delegante, a possibilidade de exercitar por si próprio as funções objeto da delegação (salva, controversamente, no limite e exatamente quanto aos registros públicos a requalificação judiciária no procedimento de dúvida). Aqui se situam os serviços públicos delegados de registros e notas, porque a norma constitucional de regência prevê, de maneira expressa, o exercício dessas funções em caráter privado —vale dizer, mediante gestão privada, suscetível de fiscalização estatal e de submetimento ao direito penal-disciplinar (cfr. arts. 236, § 1°, parte final, e 103-B, § 4°, inc. III, este, incorporado pela EC 45/2004).
 
O binômio serviço público-gestão privada, de cariz tensivo, propicia a lógica de uma dúplice vertente para o tema da responsabilidade civil dos registradores públicos e dos notários, matéria, de resto, não só referível à CF/88 (art. 236, § 1°), senão que expressa já em lei ordinária, a Lei 8.935/1994, de 18-11, cujo art. 22 dispõe:
 
“Os notários e oficiais de registro responderão pelos danos que eles e seus prepostos causem a terceiros, na prática de atos próprios da serventia, assegurado aos primeiros direito de regresso no caso de dolo ou culpa dos prepostos”.
 
Esse preceito deve interpretar-se em conformidade com a normativa constitucional, cujo art. 37, § 6º, enuncia:
 
“As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
 
A compaginação desses preceitos —constitucional, um, o outro, subconstitucional— remonta à possibilidade de uma dupla ordem de responsabilização: 1/ objetiva, a constitucional, e voltada contra o Poder Público, na forma do art. 37, § 6°, CF/88 —ou acaso alguma vez subjetiva para atender à discutível coexistência dessa forma de responsabilização do Estado por atos omissivos (cfr., a propósito, brevitatis causa: REsp 210.607 –STJ –4ª Turma –Ministro SÁLVIO DE FIGUEIREDO TEIXEIRA); 2/ subjetiva, a proveniente da norma infraconstitucional inscrita no art. 22 da Lei 8.935/1994 (assinalável, a propósito, é que a previsão aí existente de regresso direcionado ao “responsável nos casos de dolo ou culpa” não faz inferir, a contrario sensu, ser objetiva a responsabilidade dos notários e oficiais de registro a que se refere o mesmo dispositivo do art. 22).
 
Dessa maneira, os prejudicados por danos originários de atos dos notários, registradores ou seus prepostos podem eleger a via da reparação contra o Poder Público ou a trilha da responsabilização subjetiva, provando culpa ou dolo, contra o delegado. E ao Poder Público assegura a norma constitucional direito de regresso contra o responsável, por igual com prova de dolo ou culpa. A eleição, pelos legitimados, de um ou outro desses caminhos judiciais —e, simultaneamente, electa una via non datum regressus ad alteram— submete-se a freqüente influência da realidade ultratextual: ao passo em que, de um lado, o ônus da prova do dolo ou da culpa empecilha um tanto o direcionamento da ação contra o notário ou o registrador, em contrapartida, de outro lado, a antevisão do precatório amesquinha o recurso à ação contra a Fazenda. Averbam-se, de todo o modo: (a) quanto à legitimidade ad causam passiva do Estado em caso de danos resultantes das atividades notariais e de registros públicos, sua afirmação em julgados do eg. Supremo Tribunal Federal (v.g., RExt 201.595 –2ª Turma –Ministro MARCO AURÉLIO, e AgRg no RExt 209.354 –2ª Turma –Ministro CARLOS VELLOSO), e (b) que a admissão do delegado com direta legitimidade passiva para a causa indenizatória foi acolhida em decisão do eg. Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do REsp 476.532 –4ª Turma –Ministro RUY ROSADO DE AGUIAR.
 
Meu voto, pois, julga ser a Fazenda do Estado de São Paulo parte passiva legítima para a causa indenizatória sob exame, relativa a danos gerados por ato do serviço notarial.
 
3. A denunciação da lide — in casu, a do Tabelião do 1° Cartório de Notas de Guarujá— teria de vincar-se, como se lê na disposição constitucional do § 6°, art. 37, no suposto de dolo ou culpa, fundamentos que inovam a base fundacional do pleito (: responsabilização objetiva), de sorte que, a exigir-se a prova de um daqueles elementos subjetivos, na demanda secundária, manifesta a vulneração da economia do processo.
 
Além disso, não era caso de denunciação obrigatória sob pena de perdimento do direito de regresso (arg. art. 70, inc. III, CPC), de sorte que a denúncia da lide foi bem afastada pela r. sentença de origem (fl. 115, in medio).
 
Acrescente-se que esse entendimento usufrui ampla freqüência nos julgados do eg. Superior Tribunal de Justiça (cfr., p.ex., EDv no REsp 313.886 –1ª Seção –Ministra ELIANA CALMON; REsp 620.829 –1ª Turma –Ministro LUIZ FUX; REsp 526.299 –1ª Turma –Ministro FRANCISCO FALCÃO; AgRg no AgInst 299.997 –2ª Turma –Ministra NANCY ANDRIGHI; REsp 151.671 –2ª Turma –Ministro FRANCISCO PEÇANHA MARTINS).
 
4. A prova dos autos conforta, quanto ao mérito, a r. sentença proferida em primeira instância (cfr., sobretudo, fls. 13-23), sequer desfiando a Fazenda do Estado de São Paulo resistência pontual quanto à matéria de fato.
 
A falsidade no documento público, de resto, é uma das hipóteses clássicas de causa de responsabilização dos notários —incluso penalmente, quando o caso (cfr. ENRIQUE GIMÉNEZ-ARNAU, Derecho Notarial, Pamplona, EUNSA, 1976, p. 328 et sqq.; PEDRO ÁVILA ALVAREZ, Estudios de Derecho Notarial, Madrid, ed. Montecorvo, 1982, p. 412-6; CARLOS A. PELOSI, El Documento Notarial, Buenos Aires, ed. Astrea, 1980, p. 310 et sqq.).
 
5. Por fim, a condenação da Fazenda por valor em cruzeiros deverá, por evidente, converter-se em reais, moeda agora vigente no País, observado o disposto na Lei 9.069/1995, de 29-6, sobretudo seu art. 1°, § 3°, e, quanto aos encargos da sucumbência, anota-se que o Juízo de origem, considerando a procedência parcial da pretensão, reciprocou-os, por eles a responder, em maior parte, o autor da demanda, com que, a meu juízo, nada leva a acolher a remessa ex officio (fl. 121).
 
Meu voto, pois, nega provimento ao agravo retido, à remessa oficial e à apelação interposta pela Fazenda do Estado de São Paulo, mantendo assim a r. sentença proferida nos autos 8.960/1997 da 2ª Vara da Fazenda Pública da Comarca de Santos (: requerente, CPAJ).
 
É como voto.
 
Ricardo Dip – relator



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