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A súmula vinculante para a administração pública aprovada pela reforma do judiciário 
Bruno Mattos e Silva [1]


 1. Introdução política ao tema.  

Agora é norma constitucional: com o advento da Emenda Constitucional nº 45, o Supremo Tribunal Federal poderá aprovar súmula com efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal. As decisões definitivas de mérito, proferidas nas ações declaratórias de constitucionalidade e nas ações diretas de inconstitucionalidade, também passam a ter efeito vinculante.

A existência do efeito vinculante das súmulas do STF para os juízes e tribunais inferiores é algo passível de controvérsias, com os mais variados argumentos, a favor e contra. Dentre outros argumentos, os opositores dizem que isso cercearia a liberdade de criação dos juízes ou sua independência; os defensores dizem que não mais possível que cada juiz julgue questões idênticas em sentidos diferentes, provocando milhares (ou milhões) de recursos para os tribunais.

Quando, na década de sessenta, o meu primo Victor Nunes Leal (na época Ministro do STF e anos mais tarde cassado pelo regime militar) defendeu a criação das súmulas da jurisprudência predominante, muitas pessoas foram contra, pelos mais variados motivos. Hoje ninguém mais é contra a existência das súmulas: a discussão é se elas devem ou não ser vinculantes.

É certo que a morosidade da Justiça brasileira tem como principal motivo o excesso de processos. Não há estrutura material e humana, em um país de escassos recursos públicos como é o caso do Brasil, que consiga dar vazão ao astronômico número de ações que diariamente são propostas perante o Poder Judiciário, por melhores que possam ser as leis que tratam de rito processual.

Frise-se este ponto: de nada adianta alterar o rito processual, para reduzir garantias ou possibilidade de recursos, se o número de processos a julgar for imenso. Basta ver quanto um processo judicial tarda para o juiz de primeiro grau sentenciar ou mesmo proferir uma decisão interlocutória...

Para se resolver um problema, é preciso localizar e neutralizar a causa do problema, que é, dentro de uma análise geral, a grave situação social do país e, dentro de uma análise específica, o excesso de ações judiciais que diariamente são propostas. Na verdade, se pensarmos na quantidade de pessoas que simplesmente não têm (por qualquer razão) acesso ao Judiciário, iremos concluir que o número de processos no Judiciário brasileiro seria ainda muitíssimo maior.

Por que temos tantos processos judiciais? Como fazer para reduzir o número de processos, sem reduzir o acesso à Justiça e sem reduzir a qualidade da prestação jurisdicional? O Brasil tem muitos processos porque ainda é um país confuso, com muitos problemas sociais e econômicos. Passamos – felizmente – o período dos tenebrosos “planos econômicos”, que geravam uma infinidade de controvérsias para serem dirimidas pelo Judiciário. Mas ainda há milhões de problemas: instituições financeiras e companhias telefônicas que enviam indevidamente nomes de pessoas para o SERASA, contribuintes que questionam se uma alteração na legislação tributária é devida, credores que não conseguem executar a sentença favorável duramente obtida no processo de conhecimento porque o devedor não tem bens em seu nome, litígios quanto a ocupações em áreas públicas etc.

Existe um número muito grande de processos “repetidos”, isto é, processos em que uma das partes é a mesma e que versam sobre uma mesma questão jurídica. Esses processos se arrastam durante anos pelo Judiciário até obter uma decisão final, que, em tese, deveria ser a mesma para todos aqueles que estão em uma mesma situação. Afinal de contas, o direito deve ser idêntico para as pessoas que estão na mesma situação de fato e de direito, caso contrário, o direito seria uma loteria. Não é preciso meditar muito para se concluir que casos tais devem ser objeto de um único processo de conhecimento . Não é razoável que existam milhares (ou milhões) de processos de conhecimento para se decidir uma mesma questão jurídica. É preciso que questões “repetidas” (na realidade, a questão é uma só) sejam objeto de um único processo de conhecimento, que deve produzir efeitos para todas as pessoas.

É, no mínimo, razoável que um juiz não julgue uma mesma questão jurídica, presente uma mesma situação de fato, de forma diversa da que julga o tribunal superior. Ainda que “julgue” o juiz ser a orientação do tribunal injusta, ou que seja a lei injusta, não deve ele proferir uma decisão que sabe ou deva saber que será reformada em grau de recurso. Salvo nas ditaduras, não pode um órgão do Estado – e o juiz e administrador público são órgãos do Estado -, sujeito às leis, fazer prevalecer suas convicções pessoais em detrimento da lei (esse é o tão falado princípio da legalidade ). Embora muitas vezes o ato de julgar contra a lei ou contra a orientação do STF possa materializar um verdadeiro sentimento de boas intenções por parte do juiz prolator da decisão, é certo que os danos causados por milhares de sentenças ou acórdãos em desconformidade com a orientação jurisprudencial das cortes supremas são gigantescos, pois essas sentenças e acórdãos abarrotam o STF e os tribunais superiores, tornando a Justiça mais lenta e reduzindo drasticamente a qualidade da prestação jurisdicional. E não se diga que isso não ocorre: confira-se apenas o percentual de recursos especiais e extraordinários julgados procedentes em questões já pacificadas para se ter uma exata noção da quantidade de decisões proferidas em desconformidade com a jurisprudência dominante!

Mesmo que possa em alguns casos concretos existir ”injustiça” (no juízo de quem?) na aplicação da orientação pacificada das cortes supremas, é preciso notar que hoje milhares (ou talvez milhões) de injustiças ocorrem em razão da demora e em razão da relativamente baixa qualidade (de técnica e de justiça) de muitos julgamentos, causadas pelo excesso de processos a julgar: é humanamente impossível possa um juiz, por mais culto e trabalhador que seja, dar vazão com rapidez, eficiência e qualidade ao número absurdamente elevado de processos que abarrotam o Judiciário.

A falta de segurança jurídica (dentre as quais a morosidade do Judiciário e a imprevisibilidade das decisões judiciais são fatores importantes) é um dos entraves ao crescimento sócio-econômico do país.

Não é possível que mais de quinhentos congressistas, eleitos pelo voto direto, aprovem uma lei, que ingressa no mundo jurídico produzindo efeitos em centenas ou em milhares (ou talvez milhões) de casos concretos, para em seguida serem propostas centenas, milhares (ou talvez milhões) de ações individuais, tenha-se uma infinidade de provimentos, muitas vezes liminares e totalmente díspares, parte dos quais dizendo que lei é constitucional, parte declarando a inconstitucionalidade total ou parcial da lei, decretando a nulidade, determinando, total ou parcialmente, a anulação ou declarando a inexistência dos efeitos produzidos pela lei, e, após isso, parte dos recursos contra essas decisões sendo julgados procedentes para cassar as liminares obtidas, para dizer que todos ou parte dos efeitos anulados, declarados inexistentes ou nulos são, na verdade, perfeitos e válidos... É preciso que exista uma única decisão eficaz, para que a sociedade saiba se a norma é ou não válida, se é ou não constitucional, se deve ou não ser cumprida. Se não for assim, não há segurança jurídica. O ideal é que essa decisão seja prévia ao ingresso da norma no mundo jurídico, tal como ocorre em alguns países, mas infelizmente o ordenamento constitucional brasileiro ainda não contempla isso.

Seria muito bom se as partes pudessem saber qual será o desfecho de determinadas ações judiciais: não proporiam ações inviáveis e poderiam fazer negócios jurídicos com segurança. A redução do número de ações faria com que todas as demais ações tramitassem mais rápido, tornando a Justiça mais eficaz. O círculo virtuoso seria ainda maior, pois isso desestimularia medidas procrastinatórias (exemplo: recursos protelatórios que seriam rapidamente julgados, obtenção de liminares que seriam rapidamente revogadas pelo tribunal etc), isto é, desestimularia que as pessoas usassem a Justiça para praticar injustiças. Hoje, ao contrário, como a Justiça é lenta, muitas pessoas usam medidas judiciais para ganhar tempo para o cumprimento de suas obrigações; além disso, o grau de imprevisibilidade das decisões judicial é elevado demais, o que aumenta a insegurança jurídica.

Por todos esses motivos, é preciso mudar radicalmente a situação do Judiciário brasileiro, sob pena de condenarmos o Brasil a um círculo vicioso e infernal de subdesenvolvimento.

 2. O significado jurídico e o alcance da súmula vinculante para a Administração Pública.  

O art. 2º da Emenda Constitucional nº 45, de 8 de dezembro de 2004, acresceu o art. 103-A ao texto constitucional, estabelecendo que o Supremo Tribunal Federal poderá, após reiteradas decisões sobre matéria constitucional, aprovar súmula que terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública e terá por objetivo a validade, a interpretação e a eficácia de normas determinadas, acerca das quais haja controvérsia entre órgãos judiciários ou entre esses e a administração pública que acarrete grave insegurança jurídica e relevante multiplicação de processos sobre questão idêntica.

A norma constitucional estabelece determinados requisitos que, se atendidos, conferirão à súmula o efeito vinculante descrito. Qual o alcance desses efeitos?

O efeito mais óbvio é a impossibilidade jurídica e a conseqüente invalidade de uma decisão judicial que contrariar a súmula vinculante.

Mas o aspecto mais importante da Reforma do Judiciário é, certamente, a aprovação da súmula vinculante para a Administração Pública . A partir de agora, está a Administração Pública direta e indireta, dos três níveis de governo, vinculadas às súmulas do STF que gozarem do atributo da vinculação, isto é, que atenderem aos requisitos do art. 103-A da Constituição Federal, incluído pela Emenda Constitucional nº 45/2004 ou do art. 8º dessa mesma Emenda.

Se o STF, órgão supremo do Judiciário nacional, constitucionalmente competente para interpretar a Constituição Federal, decide que a interpretação de um dispositivo constitucional é em um determinado sentido, não é nem um pouco razoável que qualquer outro órgão do Estado brasileiro (seja judicial ou administrativo) venha dar outra interpretação ou venha decidir em sentido contrário. Isso significa que se o STF disser que o percentual correto de reajuste para um aposentado ou para o FGTS é xis , não pode (ou, pelo menos, não poderia) um juiz dar outro percentual ou o administrador público deixar de pagar esse xis de reajuste. Na prática, porém, nada disso vinha acontecendo: conforme o caso, alguns juízes continuavam a dar outros percentuais e os administradores públicos continuavam sem pagar o percentual devido (percentual devido, por óbvio, é o percentual conferido pelo STF). Contra atos (comissivos ou omissivos) que não conferem o percentual devido são propostas milhares (ou milhões) de ações judiciais; contra decisões que conferem percentual diferente do juridicamente devido, são propostos milhares (ou milhões) de recursos.

Parece estranho – e é totalmente ilógico – que possa o Estado descumprir uma ordem do próprio Estado. Essa situação esdrúxula parece agora que terminará.

A partir de agora – ao menos de acordo com o art. 103-A da Constituição Federal -, os juízes e demais agentes públicos não podem mais violar as decisões do próprio Estado brasileiro que se revestirem do atributo da vinculação , isto é, não podem violar as súmulas vinculantes previstas no mencionado dispositivo constitucional.

A jurisprudência não se tornará “rígida” ou “imutável”, pois o STF poderá criar, rever e cancelar as súmulas, mediante provocação dos legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade (art. 103-A, § 2º, da Constituição Federal). A edição de súmulas, como, aliás, a prolação de qualquer julgamento, é algo que deve ser feito com a devida responsabilidade, não sendo razoável aceitar que, em um dia, uma questão seja julgada de um modo, no dia seguinte de outro e na semana que vem da mesma maneira que da primeira, de forma aleatória, dependendo que quem seja o julgador. Às vezes há julgamentos díspares efetuados pelo mesmo órgão!

É interessante notar que a vinculação da Administração Pública à súmula prevista no art. 103-A da Constituição Federal é algo que prescinde da utilização da ação judicial . Quando se diz que a súmula vincula a Administração Pública, não significa que apenas o procurador ou advogado da entidade estatal está proibido de ajuizar ação ou recorrer quando houver súmula vinculante. Muito ao revés: significa que todos os agentes públicos têm o dever de decidir, têm o dever de agir em conformidade com o disposto na súmula vinculante. Em outras palavras, quando o STF decidir, em uma ação declaratória de constitucionalidade, em uma ação direta de inconstitucionalidade, ou editar uma súmula vinculante, deve o administrador público determinar o cumprimento do conteúdo dessa decisão ou dessa súmula para todas as pessoas que estiverem em idêntica situação (ex. correção de FGTS), ainda que não tenham proposto qualquer ação judicial ou efetuado qualquer pedido administrativo.

Na verdade, a Emenda Constitucional nº 45 mitigou os limites subjetivos da coisa julgada (!), de modo que passam todas as pessoas que estiverem em uma determinada situação a terem o direito de efetivar (isto é, concretizar, realizar na prática) um determinado direito abstratamente conferido pela súmula ou pela ação abstrata, independentemente de obtenção para si de uma decisão judicial em um processo de conhecimento.

Esse direito deve ser efetivado mediante extensão administrativa a todas as pessoas que se encontrarem na mesma situação de fato e de direito que se encontram as pessoas cujas decisões judiciais geraram a súmula vinculante. A Administração deve conceder o direito de forma espontânea (mesmo se os direitos forem disponíveis), ou, caso não o faça de ofício, mediante simples petição ao órgão público que, se desatendida, deve ser protegida por meio de reclamação dirigida diretamente ao STF contra o órgão que descumprir a súmula vinculante:

“Art. 103-A. (...)

§ 3º Do ato administrativo ou decisão judicial que contrariar a súmula aplicável ou que indevidamente a aplicar, caberá reclamação ao Supremo Tribunal Federal que, julgando-a procedente, anulará o ato administrativo ou cassará a decisão judicial reclamada, e determinará que outra seja proferida com ou sem a aplicação da súmula, conforme o caso."

Evidentemente, é preciso que somente se aplique a súmula vinculante nos casos em que ela deve ser aplicada, isto é, nas hipóteses em que as condições de fato e de direito sejam essencialmente idênticas às dos precedentes que geraram a súmula. Caso o juiz ou tribunal aplique a súmula de forma equivocada, também caberá reclamação para o STF, tal como se vê do dispositivo constitucional acima transcrito.

Parece intuitivo que um processo judicial é algo muito caro para produzir efeitos somente entre as partes, especialmente quando temos em mente que há milhares (ou milhões) de outras pessoas em idêntica situação à da pessoa que foi parte. O que o dispositivo constitucional deseja é que essas outras pessoas não necessitem buscar tutela jurisdicional, mediante processos judiciais de conteúdo idêntico aos que foram propostos, mas, ao contrário, que a Administração Pública decida e aja de acordo com o que restou estabelecido como jurídico pela súmula vinculante.

 3. Conclusões e perspectivas.  

No que se refere ao estabelecimento da súmula vinculante, a Reforma do Judiciário avançou muito. De acordo com o texto aprovado, os juízes não mais poderão decidir em sentido contrário às súmulas aprovadas de acordo com o disposto no art. 103-A da Constituição Federal ou que atenderem ao disposto no art. 8º da Emenda Constitucional nº 45, e os agentes da Administração Pública deverão decidir e agir ou deixarem de agir em conformidade com essas súmulas, de ofício ou mediante provocação dos interessados.

A jurisprudência não se tornará “rígida” ou “imutável”, pois o STF poderá rever as próprias súmulas, mediante provocação dos legitimados a propor ação direta de inconstitucionalidade.

A existência de julgamentos uniformes irá melhorar a rapidez e a qualidade dos julgamentos, reduzindo drasticamente a quantidade de injustiças que são cometidas em diversos casos concretos.

Estão criadas as bases para uma melhora significativa da segurança jurídica das relações sociais no Brasil. Contudo, de nada adianta existir um bom texto normativo, se ele não for cumprido: se os juízes e demais agentes públicos descumprirem as súmulas vinculantes, o STF em breve estará abarrotado de reclamações e criará diversos obstáculos para o conhecimento e apreciação das reclamações , reduzindo ou anulando os efeitos das súmulas vinculantes, fazendo com que os processos judiciais sejam cada vez mais lentos, a Justiça mais aleatória, deixando nosso país em uma situação de insegurança jurídica ainda maior, com os graves danos que isso causa.

Além disso, é preciso que outras medidas sejam tomadas, como, por exemplo, o controle prévio e abstrato, por parte do STF, da constitucionalidade das leis e de atos normativos, como requisito para sua eficácia.

Há muito por fazer. Mas o primeiro passo já foi dado: resta agir para que o Brasil continue caminhando para a superação das injustiças sociais, sendo necessárias profundas reformas em vários setores, dentre eles a do Judiciário, para propiciar a efetividade da verdadeira Justiça.

[1] Procurador Federal e autor do livro “Compra de imóveis” (Ed. Atlas).



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