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ENTREVISTA - Luiz Mário Galbetti
“Toda vez que a lei atribuir efeitos reais estamos à frente de um direito real, e não porque consta do artigo 167”.
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O registrador Ruy Rebello Pinho entrevistou o juiz de Direito da 33 a Vara Cível de São Paulo, Luiz Mário Galbetti, no programa Cartório Parceiro Amigo, exibido pela TV Justiça no dia 29 de agosto de 2004.
Entre os temas polêmicos do Direito imobiliário foram discutidos a taxatividade dos atos de registro e a concessão de uso especial para fins de moradia.
Confira a íntegra da entrevista.
Ruy Rebello Pinho – Você acha que a taxatividade dos atos de registro é um assunto polêmico?
Luiz Mário Galbetti – Esse é um tema polêmico, embora não devesse ser. Existe uma tendência doutrinária e jurisprudencial muito sedimentada ao tratar de alguns temas com uma perspectiva que, a meu ver, não é a melhor.
Ruy Rebello Pinho – Por que há essa corrente da taxatividade?
Luiz Mário Galbetti – O problema todo é o direito real. O direito pessoal é aquele que pode pretender sempre de uma pessoa, ou seja, se você se obriga com alguém, esse alguém só poderá exigir de você. O direito real não, se estabelecermos um contrato, todo mundo fica obrigado a obedecer. É o caso da propriedade. Se você me vende uma propriedade, eu passo a ser o proprietário, e todo mundo fica obrigado a respeitar minha propriedade. É claro que isso só ocorre se a propriedade estiver registrada.
Ruy Rebello Pinho – E se houver um contrato somente obrigacional entre as partes?
Luiz Mário Galbetti – Nesse caso só teria validade entre as partes, não teria eficácia erga omnes. Se não houver o cumprimento desse contrato, o máximo que se poderá obter é uma indenização por perdas e danos. As partes não podem criar um direito real, que é determinado por lei. O decreto-lei 58/37 já afirmava que o compromisso, antes somente averbado, conferia ao seu titular direito real erga omnes . Parece-me que a questão está um pouco equivocada, mas não por causa, especificamente, do artigo 167.
É como a questão da preferência, que não está referendada no artigo 1.225. Entre as preferências existentes, temos a da Lei de Locação, a preferência dos condôminos, do pacto, objeto de compra e venda, cujo comprador, no caso de alienação futura, acaba concedendo essa preferência.
De acordo com os artigos que regulam a compra e venda, esse pacto, objeto de preferência, diz que eventual descumprimento dá origem a perdas e danos. Se eu tiver descumprido cláusula de preferência e um terceiro de boa-fé adquirir, somente existe a ação de perdas e danos do direito pessoal, diferentemente da locação, numa situação de condomínio, em que duas pessoas adquirem de forma conjunta o imóvel. Nessas hipóteses, depositado o preço, tenho a possibilidade de adjudicar, independentemente do terceiro não ter participado da tratativa, o que cria o direito real. Por isso, para saber se temos direito real ou não, não acho que a questão se resolva recorrendo aos artigos 1.225 e 167.
Ruy Rebello Pinho – O direito real é criado por lei, mas a possibilidade do registro do direito real precisa ser reafirmada por lei?
Luiz Mário Galbetti – Exatamente graças a essa qualidade de poder depositar o preço e pedir a adjudicação do terceiro que não fez parte da tratativa, existe uma natureza jurídica real muita clara. Toda vez que a lei atribuir efeitos reais estamos à frente de um direito real, e não porque consta do artigo 167.
Ruy Rebello Pinho – Por que o artigo 167 é tão importante? Por que o lugar de procurar os direitos reais tem de ser a lei que cria o direito real? Ou seja, não estamos procurando o sujeito na casa errada?
Luiz Mário Galbetti – Esse foi um vício que se tornou necessário numa determinada época, quando não existia no registro de imóveis nem no meio jurídico e acadêmico um conceito muito claro sobre as questões que envolvem os registros públicos e a propriedade imobiliária. A lei 6.015/73 teve três anos de fracasso, mais que o próprio Código Civil, tamanhas as inovações que criou.
A questão de se ter criado o sistema matricial, segundo o qual todos os atos seriam centralizados num único instrumento, fez com que se tentasse dar um rigorismo maior. Houve decisões de juízes brilhantes, que passaram pela vara de registros à época e que criaram uma cultura do registro, que foi exportada para o mundo inteiro.
Por isso houve a necessidade de um certo formalismo. Hoje não se pode mais ficar preso a isso. Temos diversas leis que redigem isso.
Ruy Rebello Pinho – O senhor tem mais alguma observação a fazer sobre a taxatividade?
Luiz Mário Galbetti – O tema, de fato, é polêmico, mas acho que hoje temos uma porção de instrumentos de direitos que dependem muito do registro de imóveis. Não me parece que seja razoável continuarmos afirmando uma taxatividade num artigo específico. Direito real é aquele criado por lei. Temos que aprender a natureza jurídica do instituto como foi definido em lei. Não que seja necessária uma nova lei ou um inciso específico a mais no artigo 167 para que possamos registrar. É importante discutir essas questões porque ainda não existe apoio doutrinário para elas.
Ruy Rebello Pinho – As novidades trazidas pelo Estatuto da Cidade passam pelo registro de imóveis?
Luiz Mário Galbetti – Passam. Acho até que o Estatuto é mais avançado que o fixado no novo Código Civil, pelo menos no que se refere ao direito de superfície. Existem certas restrições no direito de superfície do novo Código Civil que não deveriam ser mantidas.
No Estatuto da Cidade, o direito de superfície está voltado para fins urbanos. É perfeitamente possível admitir uma convivência entre os dois, sem preterir o recém-editado direito de superfície do Estatuto pelo fato de que em seguida tenha saído o Código Civil que tratou da mesma matéria.
Ruy Rebello Pinho – Isso é curioso porque, uma vez que 80% da população brasileira vivem em ambiente urbano, a lei especial acaba se tornando a lei geral.
Luiz Mário Galbetti – Sem dúvida. E existem muitas questões polêmicas também. Isso é só uma mostra da quantidade de questões registradas que surgiram.
Ruy Rebello Pinho – Uma questão muito importante também seria a de a prefeitura averbar a notificação ao proprietário para que ele cumpra a função social da propriedade. Mas como é que o terceiro adquirente vai saber que o sujeito foi notificado? Somente pelo registro de imóveis.
Luiz Mário Galbetti – Fui convidado a falar na Procuradoria do município e essa foi a primeira coisa que mencionei. É preciso centralizar isso em algum lugar, se bem o destinatário natural seja o registro de imóveis. Toda vez que criamos alguma barreira para admitir a recepção de títulos, cuja naturalidade levaria ao registro de imóveis, acabamos cometendo erros graves. É o caso da lei do Sistema Financeiro da Habitação que impedia o ingresso das transferências imobiliárias ao registro enquanto não fosse feito o refinanciamento. Tínhamos contratos de gaveta, como foi o caso da Encol, o que, afinal, acaba ensejando a informalidade.
Temos que ficar atentos a isso. Se o registro de imóveis tem o papel de fornecer segurança jurídica, afastar os negócios jurídicos do registro, com toda certeza, não vai proibir a existência dos negócios, ou seja, eles vão continuar existindo, mas não vão ganhar registro, ensejando, assim, insegurança. É preciso enfrentar esses problemas com envergadura. Não acho que se deva manter a idéia de dar registro somente em casos específicos. É necessário que estudemos essas novas questões, como a de títulos novos que estão sendo apresentados, mas não negar por antecipação, simplesmente porque não há previsão expressa para eles.
Ruy Rebello Pinho – Quando falamos de função social e função econômica, estamos falando da mesma coisa com nuanças ideológicas diferentes. No tema da função social do registro, fale sobre a concessão de uso especial da medida provisória 2.220 e seus aspectos registrários.
Luiz Mário Galbetti – Essa concessão de uso especial é muito polêmica. Temos o direito de concessão especial para fins de moradia decorrente de ocupação, ou seja, desde que as pessoas estejam ocupando o imóvel há um certo tempo. Existe a possibilidade ou não de usucapir esse imóvel.
Ruy Rebello Pinho – É impossível usucapir esse direito? Pergunto isso porque existe uma tendência em achar que usucapir significa ter o domínio completo.
Luiz Mário Galbetti – Existe uma abordagem que normalmente chama mais atenção nos processos, se bem eu ache que ela deve ser relativizada em certos momentos. Se formos examinar exatamente o rigor do nosso processo evolutivo, cultural e jurídico, não poderíamos admitir essa privatização do bem, uma vez que o bem é de domínio público. Se dermos a um só estamos privatizando e por ocupação. Não acho que essa deva ser a idéia ao falarmos de locais ocupados há anos por famílias moradoras de favelas que já estão sedimentadas.
A concessão de uso especial foi idealizada para regularizar questões envolvendo favelas, áreas de ocupação sedimentadas há muito tempo, etc. Acho criativa, interessante e necessária a criação da concessão de uso especial.
Ruy Rebello Pinho – Acho que não adianta dar a concessão de uso especial ou qualquer concessão, se ela não for recepcionada pelo registro de imóveis. Essa pessoa só vai ser incluída a partir do momento em que conseguir levar o bem para o registro público, que lhe dará garantia de poder vender, herdar, dispor, etc. Muitas vezes, quem ganha a concessão de uso especial vem a se casar, mas o cônjuge não mora mais no local. E, em razão dos mandamentos constitucionais de usucapião, qual sua opinião? E sobre o bem reservado constitucional que ainda não tem legislação a respeito?
Luiz Mário Galbetti – A questão não é nova. A Constituição de 1988, no artigo 183, parágrafo primeiro, deixa bem claro que “a concessão de uso especial para fins de moradia será conferida de forma gratuita ao homem ou mulher, ou a ambos, independente do estado civil”. Ou seja, a aquisição tem que ser feita como se fosse um solteiro. O que se pretendeu atender foi a migração dos nordestinos, pessoas que por diferentes razões se afastaram de suas famílias e acabaram constituindo uma nova família aqui. Na Vara de Registros Públicos, já tive situações de pessoas casadas em outros estados que vivem aqui, com alguma ocupação, com outro cônjuge. O período aquisitivo foi feito só com a posse deles. Se o título for bloqueado sob a exigência de que tragam a outorga uxória de cada um dos cônjuges, eles nunca vão trazer. Assim, a meu ver, a sentença da usucapião deve fazer referência expressa à aquisição do bem como se a pessoa fosse solteira.
Essa discussão tem que chegar ao ponto de permitir que a alienação se dê como se a pessoa fosse solteira, sem nenhum tipo de outorga uxória. É exatamente o que diz o parágrafo primeiro, “independente do estado civil”. Quem procura a usucapião quer dispor da propriedade, poder de disposição esse que só terá razoabilidade se entendermos o dispositivo dessa forma.
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