BE1404
Compartilhe:
Preservação ambiental ou moradia? Um falso conflito - Edésio Fernandes *
Edésio Fernandes em aula ministrada em SP para atenta platéia. (7/5/2004)
Uma das principais características da urbanização intensa no Brasil ao longo das ultimas décadas tem sido a ocupação crescente de áreas de preservação permanente, áreas de mananciais, áreas non aedificandi e outras áreas que contêm valores ambientais.
Em alguns casos, trata-se de ocupações recentes – como as decorrentes da expansão das favelas cariocas que têm gradualmente comprometido o que sobra da Mata Atlântica local. Em muitos casos, trata-se de situações urbanas já completamente consolidadas ao longo de décadas de ocupação, como é o caso da enorme população que mora nas margens da Represa Billings, na região metropolitana de São Paulo.
Esforços consistentes devem ser feitos no sentido de impedir novas ocupações de
áreas ambientais, não se podendo aceitar a atual atitude de “tolerância 100%" percebida na ação de muitos governos locais. Contudo, o tratamento das ocupações urbanas consolidadas, envolvendo milhões de pessoas, exige que uma outra atitude seja tomada pelos governos e pela sociedade.
Se um numero crescente de brasileiros tem tido que recorrer a processos informais de acesso ao solo urbano e à moradia devido à omissão e/ou à ação do poder publico e de grupos imobiliários, um princípio básico do direito que não mais pode ser ignorado é o de que o tempo criou direitos para os ocupantes de tais áreas - publicas ou privadas - consolidadas.
Esse direito foi reconhecido pela Constituição Federal de 1988, pelo Estatuto da Cidade de 2001, e, no que toca às ocupações de terras publicas, pela Medida Provisória n. 2.220/2001.
Os programas de regularização de assentamentos informais que tem sido promovidos por diversos municípios visam a materializar esse direito, integrando essas áreas informais e suas comunidades na estrutura formal da cidade e na sociedade urbana como um todo.
Contudo, a questão dos assentamentos informais em áreas ambientais continua dividindo opiniões e grupos. Trata-se na verdade de mais uma expressão de um velho conflito entre os defensores da chamada "agenda verde" do meio ambiente e os defensores da chamada "agenda marrom" das cidades, conflito esse que tem se traduzido também no crescimento paralelo, e com freqüência potencialmente antagônico, de dois ramos do Direito Publico brasileiro, quais sejam, o Direito Ambiental e o Direito Urbanístico.
Infelizmente, tais grupos têm sido cada vez mais insensíveis um para com as demandas do outro, o que, dentre outros problemas, tem gerado decisões judiciais conflitantes, que vão da determinação de remoção de milhares de famílias sem uma maior preocupação com sua necessidades de moradia, a recentes decisões judiciais tomadas em prol dos moradores sem uma maior preocupação com valores ambientais. De um modo geral, pode-se dizer que os urbanistas têm feito um esforço maior de inserção de uma preocupação ambiental em suas propostas, do que os ambientalistas têm feito no que toca ao reconhecimento das necessidades sociais de moradia, sobretudo dos grupos mais pobres.
Alguns dispositivos legais do Código Florestal em vigor, por exemplo, totalmente as realidades urbanas do pais.
Mas, haveria mesmo um conflito entre preservação ambiental e moradia?
Trata-se de uma falsa questão: os dois são valores e direitos sociais constitucionalmente protegidos, tendo a mesma raiz conceitual, qual seja, o principio da função sócio-ambiental da propriedade. O desafio, então, é compatibilizar esses dois valores e direitos, o que somente pode ser feito por meio da construção não de cenários ideais, certamente não de cenários inadmissíveis, mas de cenários possíveis.
A grande novidade da ordem jurídica brasileira, mas que ainda não foi totalmente compreendida, é que onde valores constitucionais forem incompatíveis e um tiver que prevalecer sobre o outro, medidas concretas têm que ser tomadas para mitigar ou compensar o valor afetado. É esse o espírito da mencionada MP n. 2.220/20001: se o direito de moradia dos ocupantes de assentamentos informais em terras publicas não puder ser exercido no mesmo local, devido a razoes ambientais, o direito de moradia continua prevalecendo, devendo ser exercido em outro lugar adequado.
São muitos os exemplos no Brasil de programas locais que têm tentado construir esses cenários possíveis em que preservação e moradia são associados; talvez o melhor exemplo seja o dos "Bairros Ecológicos" de São Bernardo do Campo, para as ocupações consolidadas na margem da Represa Billings, onde uma ampla articulação coordenada pelo Ministério Publico local levou à assinatura de Termos de Ajustamento de Conduta envolvendo diversos atores – moradores, loteadores, Prefeitura, etc. Dado o grau de participação comunitária, novas ocupações têm sido impedidas; remoções foram promovidas em certas áreas, bem como reflorestamento e plantio, implantação de calçadas ecológicas e outras medidas mitigadoras e compensatórias.
A própria comunidade local pagou pela instalação de uma estação de tratamento de esgotos e como resultado a água da represa é hoje melhor do que a água nas origens da represa, poluída por agrotóxicos ou despejos industriais.
Não há porque demonizar a população ocupante de áreas de preservação ambiental: é crucial que governos e a população reconheçam que a promoção da regularização dos assentamentos informais é um direito coletivo, condição de enfrentamento do enorme passivo sócio-ambiental criado ao longo de décadas no pais. Para tanto, é preciso que se adote um conceito antropocêntrico de natureza, bem como que se tomem todas as medidas necessárias para a total reversão do atual modelo de crescimento urbano segregador e poluidor, de tal forma que as cidades brasileiras possam se tornar cidades ecológicas e sustentáveis do ponto de vista sócio-ambiental.
* Jurista e urbanista ( [email protected] )
Confira também:
Revista de Direito Imobiliário nº 55 - ano 26 - Jul/Dez de 2003 - 3. SEMINÁRIO SOBRE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA - 3.5 Pós-regularização urbanística e seus efeitos sócio-ambientais – ROSÂNGELA STAURENGHI e SÔNIA LIMA URL:http://www.irib.org.br/rdi/rdi55_274.asp . O Município de São Bernardo do Campo, localizado na sub-região sudeste da Região Metropolitana da Grande São Paulo, destaca-se...
Boletim do Irib em Revista - Julho e Agosto de 2003 - Nº 311 - Especial - Seminário de Regularização Fundiária - Pós-regularização urbanística e seus efeitos socioambientais - Rosângela Staurenghi e Sônia Lima URL:http://www.irib.org.br/birib/birib311m.asp Julho e Agosto de 2003 - n. 311. Especial - Seminário de Regularização Fundiária. Tema 4 - Pós-regularização urbanística e seus efeitos ambientais e urbanísticos. Presidente da mesa: José Carlos de Freitas, Ministério Público de São Paulo...
Salas Temáticas - Regularização Fundiária - Encontro de SP - Boletim Eletrônico IRIB/ANOREG-SP - São Paulo, 01/09/2003 - n. 809 - Respostas oferecidas pela expositora do Tema 4 - Pós-regularização Urbanística e seus Efeitos Ambientais e Urbanísticos, Dra. Rosângela Staurenghi - Promotora de Justiça de São Bernardo do Campo URL:http://www.irib.org.br/salas/boletimel809a.asp 01/09/2003 - n. 809. Tema: Regularização Fundiária - Encontro de SP. Publicamos abaixo as respostas oferecidas pela expositora do Tema 4 - Pós-regularização Urbanística e seus Efeitos Ambientais e Urbanísticos, Dra. Rosângela Staurenghi - Promotora de Justiça de São Bernardo do Campo.
Últimos boletins
-
BE 5739 - 18/12/2024
Confira nesta edição:
Você conhece a parceria IRIB e YK Editora? | Orientação Normativa AGU n. 93, de 17 de dezembro de 2024 | FDI emite Nota Técnica de Padronização sobre Incorporação Imobiliária e certidões de objeto e pé | REURB-E: CDU aprova PL que amplia rol de beneficiários | IBGE disponibiliza os mapas de 199 municípios que tiveram atualizações de seus limites | TJSC: prescrição de dívida condominial não gera CND | UNIREGISTRAL oferece o curso REURB 2.0 | Resolução 571/24 CNJ: Inventário extrajudicial envolvendo menores e incapazes – por Flávia Pereira Ribeiro e César Augusto Costa | Jurisprudência do TJRJ | IRIB Responde.
-
BE 5738 - 17/12/2024
Confira nesta edição:
Hospital de Amor: doe seu Imposto de Renda até o dia 31 de dezembro | Resolução CNJ n. 601 de 13 de dezembro de 2024 | Diário do Estado publica matéria sobre cadastro e Cartórios | CMADS aprova criação de fundo para financiar aumento de áreas verdes nas cidades | Clipping | UNIREGISTRAL oferece o curso REURB 2.0 | A atualidade da Lei da Incorporação Imobiliária ao completar sessenta anos – por Melhim Namem Chalhub | Jurisprudência do TJMG | IRIB Responde.
-
BE 5737 - 16/12/2024
Confira nesta edição:
Conheça o IRIB Cultural: a loja virtual do IRIB! | Alienação Fiduciária: STF entende possível celebração do contrato por instrumento particular | Inexiste prazo de preclusão ou decadência para o direito formativo de desfazimento do contrato com base em cláusula resolutiva expressa | Raio-X dos Cartórios: ANOREG/BR iniciará divulgação de resultados | Clipping | UNIREGISTRAL oferece o curso REURB 2.0 | Fundação ENORE-RS e UNISC lançam cursos de Mestrado e Doutorado | Averbação de indisponibilidade de bens – O CNJ prestigia a insegurança jurídica – por Eduardo Pacheco Ribeiro de Souza | Jurisprudência da CGJSP | IRIB Responde | FAQ – Tecnologia e Registro.
Ver todas as edições
Notícias por categorias
- Georreferenciamento
- Regularização fundiária
- Registro eletrônico
- Alienação fiduciária
- Legislação e Provimento
- Artigos
- Imóveis rurais e urbanos
- Imóveis públicos
- Geral
- Eventos
- Concursos
- Condomínio e Loteamento
- Jurisprudência
- INCRA
- Usucapião Extrajudicial
- SIGEF
- Institucional
- IRIB Responde
- Biblioteca
- Cursos
- IRIB Memória
- Jurisprudência Comentada
- Jurisprudência Selecionada
- IRIB em Vídeo
- Teses e Dissertações
- Opinião
- FAQ - Tecnologia e Registro
Últimas Notícias
- União Estável – registro e averbação. Ato registral.
- Escritura de Compra e Venda. Remição de foro. Escritura – rerratificação. Laudêmio – pagamento – alvará. Segurança jurídica.
- Orientação Normativa AGU n. 93, de 17 de dezembro de 2024