BE1053

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Execução condominial. Penhora – registro. Obrigações propter rem – conceito.
 
Dando seguimento ao projeto de publicar as suscitações de dúvida e suas respectivas decisões, publicamos abaixo o desenlace de uma interessante questão envolvendo execução condominial, penhoras e registro, tendo como elemento complicador a natureza jurídica dessas obrigações, que inequivocamente ostentam o caráter de obrigações reais, o que foi reforçado pelo novo código civil. 
 
Do estrito ponto de vista registral, a dúvida tinha grandes chances de ser julgada procedente (como de fato foi) pelo simples fato de que o imóvel não se achava no domínio do executado. Mas havia a argumentação, a latere, dos suscitados, de que a natureza propter rem das obrigações condominiais nos obrigaria a uma nova exegese, franqueando o acesso do mandado de penhora, como se verá na argumentação abaixo. 
 
A questão ganha inesperada atualidade pelo advento do NCC e pela posição assumida publicamente por notáveis estudiosos do direito registral, entre o quais calha nomear o caso do Dr. Marcelo Terra, que tem uma posição divergente e que terá a oportunidade de contra-argumentar a tese defendida pelo registrador. 
 
O debate está posto. A decisão foi tomada pelo Sr. Juiz corregedor-permanente, com a adição de outro argumento de todo ponderável, decisão que ainda está pendente de recurso. (SJ) 
 
Tramitação do título 
 
Em janeiro de 2003, deu ingresso no 5º Registro Predial da Capital a certidão expedida para fins de registro de penhora, datada de 5 de dezembro de 2002, emitida pela Escrivã-Diretora Substituta da 10ª Vara Cível da Capital de São Paulo. A referida certidão foi extraída do Processo 000.94.802437-9 de ação consignatória movida em face de CONDOMÍNIO (...). 
 
O título foi protocolado em 21 de janeiro de 2003, sob número de ordem 168.549, tendo sido denegado o registro da penhora em virtude de o imóvel não estar registrado em nome da executada. 
 
De fato, pela matrícula 4.682, deste Registro o imóvel acha-se registrado em nome de DPA, casada com ASA. 
 
Formulada a nota de devolução a 27 de janeiro de 2003, os interessados a levaram a Juízo, perante o MM. Juiz da 10ª Vara Cível da Capital de São Paulo que proferiu o seguinte despacho: “Vistos. Tratando-se de obrigação propter rem cumpre ao exeqüente suscitar dúvida pertinente, dado que a penhora deve ser concretizada tal qual já deferida”. 
 
Em face do despacho de Sua Excelência o Juiz da 10ª Vara Cível da Capital, os interessados declararam ter surgido “dúvida” se poderiam “registrar a penhora a favor do Condomínio, exeqüente do referido processo, uma vez que se trata de débito condominial, ou seja, um direito real, esclarecendo que a dívida exeqüenda acompanha o imóvel em questão, independentemente de quem seja o atual proprietário”. (p. 3). 
 
Manifestando, assim, sua irresignação, os interessados deduziram perante a Primeira Vara de Registros Públicos a dúvida inversa. Para garantia dos interesses dos suscitados, o título foi prenotado sob número 175.321, em data de 15 de dezembro de 2003, permanecendo em vigor a prenotação até julgamento deste procedimento. 
 
Motivos impedientes do registro 
 
Basicamente são dois os motivos que estão a impedir o acesso do título: 
 
1) O imóvel não se acha registrado em nome do executado – infração ao princípio de continuidade do registro (art. 195 da Lei 6.015/73); 
 
2) A certidão apresentada a Juízo é cópia reprográfica. O título deveria ter sido apresentado no original. 
 
1. Obrigações propter rem e o registro da penhora 
 
O argumento desenvolvido de plano pelo Senhor Juiz da 10ª Vara Cível culmina com a conclusão da registrabilidade do título em questão em virtude da qualidade da obrigação (obrigação real, propter rem) cuja característica singular seria a sua ambulatoriedade – “acompanha o imóvel”, na dicção do suscitado. 
 
Mas, salvo melhor juízo, nem a obrigação decorrente de contribuições condominiais é “direito real”, como querem os interessados, nem ocorre tout court a “ambulatoriedade” nas sobreditas obrigações; tampouco é possível deferir o registro tão-só pelo fato de as obrigações condominiais serem consideradas, pela doutrina esmagadoramente dominante, como verdadeiras obrigações reais. 
 
Que não se trate de direito real, parece muito claro. Bastaria a sinalização do artigo 1.225 do Código Civil de 2002, que apresenta um rol estrito e taxativo dos direitos reais, um verdadeiro numerus clausus. Evidentemente, as obrigações condominiais não se acham ali elencadas. 
 
A respeito da ambulatoriedade e sobre a aproximação aos conceitos de direito real de garantia e ônus reais, é necessária alguma outra consideração. 
 
A obrigação real “é aquela em que o devedor, por ser titular de um direito sobre uma coisa, fica sujeito a uma determinada prestação que, por conseguinte, não derivou da manifestação expressa ou tácita de sua vontade. O que o faz devedor é a circunstância de ser titular do direito real, e tanto isso é verdade, que ele se libera da obrigação se renunciar a esse direito”. (RODRIGUES, Silvio. Direito civil – parte geral das obrigações. 28ª ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 99). 
 
Impende, aqui, verificar claramente o nexo que existe entre os direitos reais e as obrigações ob rem – até para refutar a idéia, equivocada a meu juízo, de que as obrigações reais possam ser consideradas relações de natureza real, ou ônus reais ou, o que seria ainda pior, serem qualificadas como direitos reais. 
 
À parte a afirmação, pacífica em doutrina, de que há, paralelamente a uma tipicidade de direitos reais, uma taxatividade conseqüente de obrigações reais – derivadas diretamente do estatuto do direito de propriedade – mais importante ainda seria observar o fato de que ditas obrigações fazem parte do conteúdo do direito real e somente com base na lei esses direitos podem ser exercitados. 
 
Assim, embora tais obrigações derivem diretamente do direito real, com ele, contudo, não se confundem. Assinala MANUEL HENRIQUE MESQUITA (Obrigações reais e ónus reais. Coimbra: Almedina, 1990, p. 102) que “o entendimento de que as obrigações propter rem fazem parte do conteúdo do ius in re não significa que, por esse motivo, elas devam ser qualificadas como relações de natureza real, ou de natureza mista, ou como figuras de fronteira entre os iura in re e as obrigações. Estruturalmente, é de verdadeira obrigações que se trata, ou seja, de vínculos jurídicos por virtude dos quais uma pessoa, na qualidade de titular de um direito real, fica adstrita a realizar uma prestação em benefício de outra. Sucede apenas que estas obrigações se encontram enxertadas, incluídas ou incrustadas no conteúdo de um ius in re, de cujo estatuto promanam”. 
 
A confusão se insinua a partir do R. despacho noticiado às fls. 10 dos autos, o que levou o suscitado a radicalizar as conclusões como uma espécie de consectário lógico. Assim, a reiteração da determinação de registro de penhora de um bem que se não ache no domínio do executado, que deva ser deferido tão-só pelo fato de a obrigação inadimplida ostentar o caráter propter rem, a outra conclusão não poderia levar – conclusão a que chegaram, aliás, os interessados: é a coisa e não a relação com a coisa que estaria importando determinantemente. Seria a res que estaria diretamente respondendo pela obrigação condominial, e não o titular do direito real sobre a coisa. Assim, patenteia-se uma confusão – aliás, bastante comum –, entre obrigações propter rem e ônus reais (ou entre tais obrigações e os direitos reais de garantia). 
 
Vejamos melhor. Nos ônus reais (assim como nas obrigações reais) o devedor das prestações é a pessoa que ostenta a titularidade do direito real. Transmitido o domínio, o sub-adquirente sub-roga-se nas obrigações, nas prestações. Mas especificamente no caso do ônus real, se for transmitido o direito, a res sobre a qual o direito incide continua a responder pelas prestações vencidas. Conclui a respeito do tema o mesmo MESQUITA: “de onde se segue que o credor, com vista a obter o pagamento, poderá executar aquela res e, se houver responsabilidade pessoal do devedor das prestações, o patrimônio deste (cumulativa ou subsidiariamente, conforme for o regime legal)” (op. cit. p. 420). 
 
Aliás, é interessante focalizar o caso concreto. Aparentemente o imóvel da matrícula 4.682 foi alienado à executada, mas o título não chegou ao registro. Eventualmente a executada poderia estar vinculada à prestação em decorrência de sua posição jurídica – admitida tranqüilamente a extensão da obrigação a mero possuidor, como a admitem SÍLVIO RODRIGUES, SERPA LOPES e VENOSA (op. cit, p. 102, Curso, 3ª ed. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1961, item 21 passim e Direito Civil: direitos reais, Vol. 5, 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2003, p.29, respectivamente). Mas a garantir essa obrigação nascente da relação jurídica de mero possuidor ou detentor da coisa está o patrimônio do devedor, cujo bem constrito, evidentemente, não integra dito acervo como direito real de propriedade. Poderão ser penhorados os bens e direitos do patrimônio do executado, mas a penhora não poderá alcançar o registro, pois o bem não integra o domínio do executado. Segue-se, como corolário lógico, que o registro da penhora não se fará, pois a inscrição deve ter por objeto um direito inscrito, e não é esse o caso. Se admitirmos que a arrematação (ou adjudicação) em hasta pública não seja forma originária de aquisição – pressupondo, logicamente, a existência do transmitente titulado –, obviamente que a penhora, compreendida entre os atos preliminares e preparatórios da excussão e alienação forçada, não poderá ser registrada. 
 
Entre as características apontadas pela doutrina como definidoras da obligatio propter rem exsurge a que a junge, essencialmente, a um direito real. Diz mui claramente SERPA LOPES que “as obrigações propter rem recaem, assim, sobre uma pessoa por força de um determinado direito real, com o qual se encontram numa vinculação tão estreita que o seguem a título de acessórios, inseparáveis”. (Curso, loc. cit. p. 66). Essa característica apendicular é digna de nota, pois remarca claramente os seu limites: não se pode dizer que os agitados direitos do exeqüente sejam propriamente direitos reais; portanto, não têm a virtude de operar uma mutação que sujeitasse a coisa àquela obrigação, independentemente de quem fosse o titular do direito. 
 
Em suma, a penhora nesse caso é admissível, mas a sua projeção registral (inscrição) não, pois o executado não é titular de direito real inscrito. 
 
2. Cópia reprográfica. 
 
A certidão apresentada a Juízo neste procedimento de dúvida é cópia reprográfica. O título deveria ter sido apresentado no original. 
 
A propósito, é farta a jurisprudência do C. Conselho Superior da Magistratura no sentido de que os títulos devam ser apresentados no original, não sendo admitidas cópias reprográficas ou mesmo autenticadas. 
 
Mesmo nos casos de dúvida inversa, os títulos devem ser apresentados ao R. Juízo pois, deferido que seja o registro, o ato se pratica incontinente, não sendo possível qualquer decisão, em sede de dúvida registrária, que ostenta o caráter de condicionalidade. 
 
Em arrimo das teses aqui esposadas, peço vênia a Vossa Excelência para anexar resultado de pesquisa jurisprudencial. 
 
Essas são as razões impedientes do registro. Devolvo a qualificação do título a Vossa Excelência para que possa decidir o que de direito, reiterando minhas cordiais saudações. 
 
São Paulo, 15 de dezembro de 2003. 
 
SÉRGIO JACOMINO 
 
Oficial Registrador 
 
Processo nº: 000.03.149297-5 – 1a VRPSP. 
 
Vistos, etc... 
 
Cuida-se de procedimento administrativo formado como DÚVIDA INVERSA, levantada pelo CM, na condição de suscitado, em face do Oficial do 5º SRI. Destacou que apresentou para registro certidão de penhora, expedida em ação consignatória, que não conquistou qualificação registral por não se encontrar o bem em nome da devedora. Destacou que a dívida é propter rem e tal aptidão permite o registro. 
 
Instado a se pronunciar o OFICIAL apresentou suas ponderações, trazendo um estudo sobre a natureza e características da ordem. Observou que o mandado não pode ser cumprido, não só em razão da não coincidência de nomes entre a executada e o titular do domínio, mas por ter sido apresentado por cópia. 
 
É o relatório. 
 
DECIDO: 
 
Dois entraves se antepuseram aos interesses da requerente em obter o registro da Certidão de Penhora expedida pelo juízo da 10ª Vara Cível Central, extraída dos autos da ação consignatória (000.94.802437-9). Em primeiro lugar por que o IMÓVEL se encontra matriculado (4.682/5ºSRI), em nome de terceira pessoa, e também porque a certidão foi apresentada em cópia. 
 
Evidentemente que muitas dificuldades existem para a definição da exata natureza jurídica das obrigações propter rem, se tipificadoras de obrigações pessoais ou obrigações reais, ou ainda como uma forma híbrida de obrigação. 
 
As dificuldades decorrem da considerada “ambulatoriedade” de tais obrigações, que vinculadas a um bem imóvel, conservam tal vinculação mesmo em face da transferência de sua titularidade. Esta característica tem sido evidenciada pela jurisprudência, que proclama que o “rateio condominial” afeta a própria coisa, onerando-a, pouco importando no nome de quem esteja. Fartos são os julgados que acentuam esta natureza:
 
DESPESAS CONDOMINIAIS - RESPONSABILIDADE 
 
Obrigações propter rem. 
 
Ementa: As despesas de condomínio constituem responsabilidade propter rem do proprietário, seqüela, portanto, que acompanha o bem, seja ele de quem for. (Ap. s/ Rev 481.960-00/4 - 6. ª Câm. - 2.° TACivSP - j. 11.06.1997 - Rel. Juiz Carlos Stroppa). 
 
“ACÓRDÃO - Vistos, relatados e discutidos estes autos, os Juízes desta Turma Julgadora do 2.° Tribunal de Alçada Civil, de conformidade com o relatório e o voto do relator, que ficam fazendo parte integrante deste julgado, nesta data, deram provimento ao recurso, por votação unânime - CARLOS STROPPA, Relator. 
 
VOTO - O apelante tem inteira razão. Isso se evidencia até mesmo pelo fato de que a pretensão corresponde ao recebimento de despesas condominiais, ou seja, decorrentes do fato de haver um condomínio. 
 
Assim, tendo-se por incontendível que o condômino é aquele que com outros possui a propriedade de um bem, ou, como no caso, é aquele que possui uma unidade autônoma em um condomínio vertical ou horizontal, as despesas de condomínio sempre serão, em última instância, responsabilidade do proprietário. Como bem observou o apelante, essa responsabilidade é propter rem, constituindo seqüela, portanto, que acompanha o bem, seja ele de quem for. 
 
Pelo exposto, dou provimento ao recurso para reformar a r. sentença, proporcionando, então, condição para que o feito prossiga regularmente, para que, a final, outra sentença seja prolatada - CARLOS STROPPA, Relator”. 
 
Portanto, adotando-se este entendimento jurisprudencial, é de se considerar que o encargo condominial deve ser de responsabilidade do proprietário, e eventual transferência por qualquer meio, faz deslocar esta responsabilidade. 
 
Entretanto, esta característica eficacial, não admite que a ação judicial de cobrança ou outra qualquer seja aforada contra uma determinada pessoa, depois seja cumprida em face de terceira pessoa. Trata-se de uma questão, que não comporta mitigação, sendo da essência do “estado de direito”, que não admite condenação sem processo ou oportunidade de defesa. 
 
O CONDOMÍNIO deveria aforar a demanda em face de quem se apresenta como titular do domínio, pouco importando a posse ou a existência de transferências não registradas. O domino sempre irá responder com o bem e no que sobejar, com o restante de seu acervo pessoal. 
 
Portanto, o mandado ou a certidão deve vir aparelhado com o nome do proprietário, atentando contra o princípio da continuidade, o cumprimento de ordem contra non domino. 
 
Ademais, insuperável é a necessidade da apresentação da ordem ou certidão em sua via ORIGINAL, exigência que também não foi atendida pela suscitada. 
 
Ante o exposto, JULGO PROCEDENTE A DÚVIDA. Cumpra-se o disposto no art. 203 da lei de Registros Públicos. 
 
P.R.I.C. 
 
São Paulo,  16 de Fevereiro de 2004. 
 
Venício Antonio de Paula Salles 
 
Juiz de Direito Titular


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