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Em entrevista à TV Justiça, o professor Edésio Fernandes destaca a necessidade imperiosa de regularização fundiária no Brasil e afirma: “O registro é fundamental para o acesso a crédito e todo tipo de segurança jurídica que o registro propicia”.
 
O doutor Edésio Fernandes, diretor de assuntos fundiários da Secretaria Nacional de Programas Urbanos do Ministério das Cidades, foi entrevistado pelo presidente do Irib, Sérgio Jacomino, no programa Cartório, o parceiro amigo, da Anoreg-BR, exibido pela TV Justiça no dia 19 de outubro último e reapresentado nos dias 21 e 24 de outubro. 
 
O entrevistado prestou esclarecimentos sobre o andamento dos projetos de regularização fundiária no país e declarou que a importância do registro é fundamental para permitir que as pessoas tenham um título claro que possibilite acesso a crédito e reconhecimento social, enfim, todo tipo de segurança jurídica que o registro propicia.  
 
A regularização fundiária é possível no Brasil? 
 
Edésio Fernandes – A regularização é uma necessidade, um direito reconhecido pela ordem jurídica e urbanística brasileira. Para sua viabilidade é preciso uma constituição sociopolítica ampla envolvendo todos os níveis governamentais e a sociedade organizada porque a tarefa é enorme. 
 
As informações sobre a extensão da ilegalidade urbana no Brasil, no que toca às formas de acesso ao solo e produção de moradia na cidade, ainda são precárias, mas os dados já existentes indicam que 60 a 70% das grandes cidades brasileiras estão na ilegalidade não em relação às construções ou aos negócios informais, mas tão-somente quanto às formas de produção dos espaços urbanos como favelas e loteamentos clandestinos, ou seja, todo tipo de situação que varia demais, não se reduzindo às formas de assentamentos de grupos pobres. 
 
São muitas as formas de produção ilegal do espaço urbano por camadas mais privilegiadas da sociedade como os chamados condomínios fechados e outras formas de desrespeito às normas urbanísticas. Isso se deu por uma combinação de fatores políticos, socioeconômicos e de dinâmica do mercado de terras, mas poderíamos ressaltar o papel central que a lei tem tido nesse processo. A ordem jurídica brasileira tem sido, em grande parte, uma das principais razões de produção da ilegalidade. 
 
O Sr. acha que a lei 6.766/79 envelheceu? 
 
Edésio Fernandes – No que toca à questão da regularização fundiária a lei sempre foi inócua, nunca se prestou suficientemente para dar suporte jurídico aos programas de regularização. Nesse sentido, há uma série de projetos de leis. Aliás, a lei já foi modificada parcialmente há dois ou três anos. Eu diria que não basta mexer apenas na lei 6.766/79 para enfrentar a questão da regularização fundiária devido à variedade de formas e, também, à variedade de problemas de ordem jurídica que afetam os programas de regularização. 
 
Tenho defendido a idéia de uma lei nacional de regularização fundiária na qual as diversas formas de produção informal da ilegalidade das cidades seriam atacadas do ponto de vista urbanístico. Ou seja, a lei 6.766/70, o Estatuto da Cidade, a Medida Provisória, a Lei Ambiental, um dos problemas mais sérios já enfrentados que é a ocupação irregular de áreas de preservação ambiental. Enfim, como conciliar os programas de regularização com o Código Florestal, com a questão processual, que coloca uma série de dificuldades para que a regularização chegue ao final como, por exemplo, quanto às ações de usucapião, a dimensão registrária do processo. Temos trabalhado muito com a idéia da função social da terra pública, já que grande parte dos assentos informais se encontram nessas áreas. Como fazer para que o patrimônio público cumpra uma função social de moradia e em que medida a legislação aplicada deve ser revista, para que, por exemplo, as terras de marinha, INSS, terras de rede ferroviária possam ser regularizadas. Para atacar juridicamente a questão da regularização fundiária precisamos de um olhar integrado, compreensivo, que tem de ir além da modificação da lei de parcelamento. 
 
O Sr. acha que a lei pode desempenhar um processo diretor do processo de regularização, ou esse fenômeno ocorre na sociedade, que encontra meios paralegais para resolver o problema? 
 
Edésio Fernandes – Lei nenhuma resolve os problemas socioeconômicos. Uma proposta desse tipo, de um anteprojeto de lei nacional de regularização fundiária, vai ter o papel, inicialmente, de criar condições para uma ampla articulação sociopolítica e jurídica, em termos desse problema, que é central na estruturação das cidades brasileiras, com implicações econômicas, ambientais, sociais e de várias ordens, que devem ser enfrentadas enquanto tal. Hoje podemos dizer que a irregularidade urbana não é uma exceção, mas sim regra, não é sintoma de um problema socioeconômico, mas o modelo ele mesmo. 
 
A quem interessa a clandestinidade jurídica? 
 
Edésio Fernandes – Ela tem interessado a todos os setores sociais, inclusive aos pobres, na medida em que não há outras opções oferecidas pelos mercados imobiliários ou pelo poder público. Dessa forma, o pobre se vê reduzido a essa forma de ocupação, o que não quer dizer que essa seja uma boa forma do ponto de vista urbanístico, ambiental, financeiro e da administração das cidades. Por outro lado, essa forma não significa que os pobres estejam pagando menos para ter acesso ao solo urbano, pelo contrário, pesquisas têm mostrado que o pobre paga muito caro para ter acesso a condições precaríssimas de vida. Temos de quebrar esse processo que produz a ilegalidade. Regularização só faz sentido se for concebida num contexto mais amplo de política urbana e habitacional que interfira diretamente na produção do espaço urbano, no mercado de terras, na oferta de lotes urbanizados baratos para essa população de zero a três salários-mínimos. 
 
Os cartórios sempre foram considerados obstáculos à regularização, entendendo-se que criam dificuldades no momento da entrega dos títulos de domínio ao cidadão. O Sr. acha que os cartórios têm culpa no cartório? 
 
Edésio Fernandes – Tenho certeza de que os cartórios vivem uma crise de legitimidade, não só na área específica da regularização, mas de um modo geral. Basta olhar o número de propostas ou projetos de lei, que vão desde a extinção até a municipalização plena dos cartórios. 
 
No Brasil, no caso da regularização fundiária, se avançou muito mais no que toca à urbanização dos assentamentos, infra-estrutura e serviços do que no que diz respeito à regularização jurídica, titulação e registro. No modelo brasileiro isso é muito mais grave porque o registro é constitutivo da propriedade, ou seja, quem não registra, não é dono. Nesse sentido, a importância de se chegar até o registro é fundamental, para permitir que as pessoas tenham um título claro, com lote determinado, que possibilite acesso a crédito, reconhecimento social, todo tipo de segurança jurídica que o registro propicia.  
 
Tenho percebido que os problemas que dizem respeitos aos cartórios, no contexto da regularização fundiária, são de três ordens: a primeira delas diz respeito aos custos. Os preços cobrados são altíssimos para o registro de um loteamento regularizado, de abertura das matrículas individualizadas e, depois, o registro de cada uma, seja concessão de uso, seja da sentença de usucapião ou da doação que o município faz. Em Porto Alegre, por exemplo, há experiências onde o registro de um loteamento regularizado chega a custar 80 mil reais. Uma outra dimensão disso é a burocracia, o que se exige de documentação. 
 
A segunda ordem de políticas diz respeito aos procedimentos, que vão desde a falta de critérios uniformes, onde cada cartório tem uma sentença, ou cada estado trata da mesma questão cartorária de maneira diversa, não havendo critérios nacionais. 
 
Um terceiro fator importante é o que eu chamo de práticas institucionais. Até muito recentemente, os cartórios, em geral, não eram parceiros dos processos de regularização, seja das prefeituras municipais, dos governos ou das associações de moradores. Os cartórios ficavam de fora do processo e, no final, diziam não. Hoje, já se percebe um movimento muito mais orgânico e forte de se trazer o cartório para dentro do processo, no sentido de que as respostas sejam construídas de maneira conjunta, indicando alternativas mediante convênios, isenção de custos, uma série de atitudes positivas e até ideológicas. Exemplo disso são os termos de dúvida suscitados pelos cartórios, que demonstram grande dificuldade do registrador em admitir que o pobre passa a ter direitos, de entender os novos direitos coletivos trazidos pela legislação, o usucapião, a concessão de direito real de uso e, mais recentemente, a concessão de uso especial. 
 
De certa forma, eu diria que a legislação cartorária não acompanhou a mesma lógica da evolução da legislação urbanística brasileira, a dos direitos coletivos, da função social da propriedade, da gestão democrática das cidades. É necessário que as práticas institucionais avancem no sentido de se criar parcerias entre os cartórios, o poder público e a sociedade organizada, para que a regularização seja possível. 
 
O Sr. acredita ser possível um marco legal mais amplo que possibilite que os cartórios sejam integrados nesse processo de rediscutir as formas de regularização, de inserção social? 
 
Edésio Fernandes – Toda lei para dar certo, tem que pegar no processo sociopolítico, senão não funciona. Não basta fazer uma intervenção dessa ordem na sociedade, em processos consolidados ao longo de décadas, tão-somente por uma intervenção superficial, de cima para baixo, temos de construir os processos. E essa construção já está dada de várias formas, no que diz respeito aos cartórios. Mesmo no contexto da ordem jurídica existente, sem mexer nas leis, avançamos muito no que toca à mudança das práticas institucionais. Um dos primeiros atores que nos procuraram para manifestar a intenção de participar do programa nacional de apoio à regularização fundiária sustentável foi a Associação dos Notários e Registradores do Brasil, Anoreg-BR, trazendo propostas já avançadas. Em breve teremos condições de assinar um termo de cooperação com o Ministério das Cidades, o Ministério da Justiça e a Anoreg-BR, de maneira a indicar a posição da entidade de que o registro dessas áreas regularizadas e o primeiro registro de cada lote, resultado da regularização, seja isento de custos. Da mesma forma, já há uma construção sociopolítica institucional da idéia de que é preciso avançar no sentido da uniformização dos critérios de determinados procedimentos seguidos pelos cartórios. Há propostas, por exemplo, de criação de um conselho normatizador dos cartórios. Essa discussão está sendo levada no contexto do comitê de articulação federativa da Casa Civil, com a participação de representantes de municípios e três questões principais, uma delas é a gestão compartilhada da terra pública da União com os municípios, a remoção dos obstáculos colocados pelos cartórios e a conciliação das bases cartorárias com a bases cadastrais do município. Com isso foi-se criando um fosso entre aquelas realidades reconhecidas juridicamente pelos cartórios e aquelas produzidas no espaço, reconhecidas pelos cadastros municipais. 
 
Na Casa Civil já existe essa articulação e o Congresso Nacional também vai convocar, em breve, uma audiência pública para discutir a questão dos cartórios e da regularização fundiária. Os processos todos já estão sendo construídos para que qualquer lei, eventualmente aprovada, tenha legitimidade num processo político no qual todos esses atores interessados tenham sido envolvidos. 
 
O Sr. acha que uma lei federal, com normas gerais sobre a organização dos cadastros, estabelecendo referências para a constituição e povoamento de dados poderia resolver, em parte, esse processo? 
 
Edésio Fernandes – Acho que sim. Ressaltando que, na minha opinião, o cadastro municipal não substitui o registro imobiliário. São duas instituições diferentes que cumprem finalidades diferentes. O que não podemos mais permitir é a total falta de compatibilidade entre os dois institutos. Às vezes, num registro é impossível identificar com precisão, no espaço físico, onde determinada área está localizada. Isso porque a própria história da regularização fundiária brasileira é uma sucessão de erros e demarcações imprecisas de toda ordem que quase sempre são referendadas mediante anistia ou registro. A verdade é que nunca conseguimos aproximar a estrutura fundiária tal como produzida pelos processos socioeconômico e político e a estrutura fundiária tal como reconhecida pelos cartórios. 
 
Nesse sentido, uma boa pista já nos foi dada pela lei 10.267/01, quando reconhece que hoje temos recursos tecnológicos como o georreferenciamento, a utilização de sistema de informação avançado, que permitem a compatibilização da base cartorária com a cadastral, no que diz respeito às áreas rurais. O problema agora é como trazer esse princípio para as áreas urbanas, já que o Brasil é um país onde 83% da população residem em grandes cidades, com processos de produção de espaço urbano diferenciados. A adaptação para as áreas urbanas e a compatibilização dos dois institutos vai exigir um pensamento próprio e, ainda mais, a formação de parcerias dos cartórios, pois uma linguagem comum há de ser construída. 
 
Há prefeituras de grandes centros urbanos que já estão fazendo o georreferenciamento, mas não há o estabelecimento de uma referência básica, a constituição e compreensão da virtualidade de um cadastro multifinalitário. Está faltando essa dimensão? 
 
Edésio Fernandes – Sim, é verdade. E um dos nossos grandes desafios no recém-criado Ministério das Cidades é pensar no Brasil como um todo. Todos nós já tivemos, em alguma medida, experiências em gestão municipal, mas elevar essa experiência para o nível nacional é muito difícil, devido à heterogeneidade de situações. 
 
Enquanto temos um sistema político institucional de autonomia municipal pelo qual os municípios brasileiros são comparados aos cantões suíços, a questão é como levar isso em conta na formulação de diretrizes nacionais que prezam a capacidade de ação efetiva dos municípios, de gerenciamento. É muito variado. 
 
O Cadastro multifinalitário foi muito debatido num encontro promovido pelo senhor em Brasília, recentemente, onde acabou se discutindo a situação dos cartórios em relação às políticas públicas de regularização. Como o Sr. avalia o resultado desse encontro? Alguns preconceitos foram superados? 
 
Edésio Fernandes – O Encontro foi um sucesso. Lançamos uma série chamada Jornadas de discussões temáticas sobre temas específicos da regularização fundiária e a situação dos cartórios foi a primeira questão debatida. Depois, em julho de 2003, no I Seminário Nacional de Regularização Fundiária, que teve a participação de cerca de 500 pessoas de todo o Brasil e fora dele, também a sessão temática sobre cartórios atraiu muito a atenção. 
 
Tenho percebido que em certos contextos, como em São Paulo e Vitória, o preconceito está diminuindo em função de maior aproximação dos cartórios e seus representantes, como a Anoreg-BR e o Irib, nos programas. Existe muita desinformação sobre as possibilidades de se alterar as práticas institucionais, mesmo sem mudar o marco jurídico. A disposição e a informação devem andar sempre juntas. Agora, por exemplo, tenho acompanhado a formulação de um convênio entre o município de Gravataí, no Rio Grande do Sul, os registradores locais e a Anoreg-RS, no sentido de garantir a isenção de custos de registro de parcelamento e, depois, dos respectivos títulos, ou seja, atitudes como essas são muito positivas e levam a ações do mesmo tipo em outros lugares, fazendo com que tenhamos mais elementos para pensar quais critérios que deveriam orientar uma nova ordem jurídica cartorária. 
 
Agradecimento 
 
No final da entrevista o doutor Edésio Fernandes registrou seu agradecimento pela oportunidade de expor os projetos e a luta do Ministério das Cidades pela regularização fundiária no país e, também, pelo trabalho fundamental que Irib, Anoreg-BR e Anoreg’s estaduais têm feito de criar condições para que a regularização fundiária de imóveis urbanos no Brasil seja possível. 
 
“A Anoreg-BR e o Ministério das Cidades têm criado laços cada vez mais consistentes que vão levar a mudanças muito significativas não só nas práticas institucionais, mas também no marco jurídico que orienta a ação dos cartórios”, finalizou.


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