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União de pessoas do mesmo sexo - Regularização pelo Provimento nº 6/2004 - CGJ/RS. - João Pedro Lamana Paiva * - Tiago Machado Burtet **
Foi publicado no Diário da Justiça de 3 de março de 2004, o Provimento nº 6/04, referente à união de pessoas do mesmo sexo, acrescentando um parágrafo único no art. 215, da Consolidação Normativa Notarial e Registral (Provimento nº 1/98-CGJ), vindo ao encontro da jurisprudência do Egrégio Tribunal de Justiça do Estado.
O artigo 215, parágrafo único, assim estabelece: “As pessoas plenamente capazes, independente da identidade ou oposição de sexo, que vivam uma relação de fato duradoura, em comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial, poderão registrar documentos que digam respeito a tal relação. As pessoas que pretendam constituir uma união afetiva na forma anteriormente referida também poderão registrar os documentos que a isso digam respeito.”
O registro especificado no artigo 215 é procedido no Serviço de Registro de Títulos e Documentos e os seus efeitos poderão repercutir na esfera jurídica alheia.
A publicação do Provimento nº 6/04-CGJ, significa a atribuição de ampla liberdade de contratação às pessoas do mesmo sexo, com a possibilidade de alcançar o registro de tal instrumento, nunca antes prevista de forma normatizada, no ordenamento jurídico nacional. Trata-se da admissibilidade de se registrar um contrato celebrado entre homossexuais, gerando efeitos jurídicos perante terceiros.
A título de informação, antes do Provimento havia grande discussão acerca do acesso desse tipo de contrato nos Registros Públicos. Alguns Registradores entendiam que não era admitida essa espécie de contratação entre pessoas do mesmo sexo, pois a Constituição Federal reconhece apenas a união entre homens e mulheres. Outrossim, outros colegas admitiam o registro de contratos de declarações de sociedade de fato (a exemplo de alguns Ofícios de Registro de Títulos e Documentos de São Paulo-SP), a qual não se confunde com a união estável.
Assim, com o propósito de fixação da matéria e de estudo para bem atender a comunidade para a qual servimos, passamos à análise do hodierno dispositivo, parte-a-parte, conforme segue:
1ª PARTE
“As pessoas plenamente capazes...”.
A verificação da capacidade civil será feita pelo Notário, quando da formalização de escritura pública que se aplique ao fim do Provimento, bem como ao Oficial do Registro de Títulos e Documentos, na hipótese de apresentação de instrumento particular. Neste caso, exige-se das partes contratantes que apresentem cópias da certidão de nascimento e do documento de identidade. Observa-se que será vedado o registro de contratos informando que um dos contratantes possui o estado civil de casado, consoante vedação expressa contida no artigo 1.521, VI, do Código Civil.
“ ... independente da identidade ou oposição de sexo, ...”
Este avanço normativo está amparado no artigo 5º, “caput” e inciso I, e no artigo 226, §§3º ao 5º, da Carta Magna, bem como na interpretação que o nosso Tribunal e raros outros têm dado às Leis números 8.971/94 e 9.278/96, reconhecendo juridicamente a união de fato entre pessoas do mesmo sexo. Neste sentido, pode-se perceber que o Poder Judiciário Gaúcho está à frente dos demais Estados, pela iniciativa em regular (dentro da sua competência) a matéria, assim como pela astúcia em realizar aquilo que o legislador já teve oportunidades de fazê-lo, mas não o fez, infelizmente, pois é sabido que a Ciência do Direito nasce, também, do fato social, normatizando relações já existentes, notórias de toda a sociedade.
“... que vivam uma relação de fato duradoura, em comunhão afetiva, ...”
Tal expressão estabelece os requisitos para a validade do instrumento. A presença do elemento “tempo” é essencial para a configuração da união, embora tenha sido excepcionado pelo próprio provimento (art. 215, parágrafo único, segunda parte). A convivência duradoura é, também, exigível para a concretização da união estável prevista nos diplomas legais supra citados, aplicável genericamente a pessoas de sexos opostos - homens e mulheres.
Já o elemento da comunhão afetiva será o cerne para a aplicação da norma. Sem ela, isto é, no caso de não haver afeto recíproco, não incidirão as normas da união estável.
“... com ou sem compromisso patrimonial, ...”
Os contratantes poderão estabelecer acerca dos seus bens quando da formalização do ato. Outrossim, esta disposição deverá ser feita em consonância com a legislação vigente, não se admitindo estipulações que possam ferir normas de direito público e direitos alheios. Se isso ocorrer, considera-se inviável o registro do contrato, pois não será válido perante terceiros (art. 132, II, da Lei dos Registros Públicos). Assim, no caso de um dos contratantes possuir herdeiros, poderão haver limitações quanto à disposição dos bens.
Recomenda-se, por cautela, a formalização de um ato notarial quando os contratantes preverem cláusulas equiparadas aos regimes de bens diversos do legal, aplicável às relações entre homens e mulheres. Assim, admitir-se-á a forma privada quando o pactuado se adequar às normas que vigoram para o regime da comunhão “parcial” de bens.
“... poderão registrar documentos que digam respeito a tal relação.”
Conforme mencionado anteriormente, o ato registral será procedido no Registro de Títulos e Documentos do domicílio dos contratantes (art. 130, da Lei nº 6.015/73), uma vez verificada a legalidade das convenções, gerando efeitos entre as partes e terceiros.
Observa-se que os artigos 3º e 4º da Lei nº 9.278/96, que traziam previsão sobre a formalização de um contrato de união estável e a possibilidade de registrá-lo no Registro Civil das Pessoas Naturais, foram vetados pelo então Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso. A razão dos vetos foi no sentido de que “não se justifica a introdução da união estável contratual”. Nesse sentido, concluiu-se que a única forma de se reconhecer a união estável era por meio da proposição de ação judicial.
Agora, com o Provimento nº 6/04-CGJ, questiona-se se o mesmo veio para dispensar o reconhecimento judicial da união estável, servindo apenas o registro do contrato para atribuir validade à relação entre as partes e com terceiros ou se apenas previu um meio (legal) de constituição de prova.
À primeira vista, em virtude da adoção da expressão “união estável” no cabeçalho da norma, poder-se-ia imaginar que o normatizador reconheceu o registro do contrato como validade da união estável de pessoas do mesmo sexo.
Todavia, em virtude da previsão da possibilidade de registro de contratos sem a existência do suporte fático que caracteriza a união estável – o tempo, na segunda parte, do artigo 215, do parágrafo único, do Provimento nº 1/98-CGJ, não vislumbramos que se tenha pretendido atribuir total força à contratação, continuando a exigir, assim, salvo melhor juízo, a manifestação judicial para o reconhecimento da união estável, seja entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos diferentes.
Também, questiona-se acerca da possibilidade de fazer tal contrato gerar o lançamento de um ato registral no Registro de Imóveis?
Para aqueles que entenderem que o próprio Provimento serviu para reconhecer a união estável entre pessoas do mesmo sexo, não sobra dúvida quanto a possibilidade de se proceder à averbação no Fólio Real, noticiando a atual situação jurídica do proprietário do imóvel.
Nesse desiderato, com tranqüilidade seria admitida a averbação de contratos de união estável entre homens e mulheres, dispensando a prévia declaração judicial, exigida pela maioria dos Registradores Imobiliários do Estado, uma vez que, com a mesma razão, pessoas de sexos opostos poderão contratar acerca da união estável.
Entretanto, como entendemos que o Provimento nº 6/04-CGJ não veio para atribuir tamanha força ao contrato, isto é, que este apenas servirá para surtir efeitos jurídicos entre as partes e perante terceiros, uma vez registrado no Registro de Títulos e Documentos, não servindo como título de reconhecimento da união estável entre os contratantes, o mesmo não terá o condão de permitir a realização de uma averbação no Registro de Imóveis. Para isso, é mister o reconhecimento judicial.
Esta averbação, fundada no princípio da concentração, previsto no artigo 167, II, item 5 e no artigo 246, §1º, da Lei nº 6.015/73, após a declaração judicial da existência da união estável, servirá de corolário para a segurança jurídica de terceiros adquirentes que contratam com pessoas aparentemente solteiras, mas que mantém uma relação - outrora de fato, mas agora jurídica – com pessoa do mesmo sexo.
Quanto à repercussão do Provimento no Registro Civil das Pessoas Naturais, isto é, quanto à conversão da união estável em casamento, entendemos que não será possível, em hipótese alguma, ocorrer a celebração de matrimônio entre pessoas do mesmo sexo, salvo se houver alteração da Constituição Federal e do Código Civil, ou se houver determinação judicial (Provimento nº 27/03-CGJ, alterado pelo Provimento 39/03-CGJ), o que ensejará questão de alta indagação.
Quanto à forma do instrumento, admite-se a pública ou a privada. Nesta, é admissível a exigibilidade da inserção de testemunhas, bem como o reconhecimento de firma, por autenticidade, dos contratantes. O reconhecimento das assinaturas das testemunhas poderá se dar por semelhança. Assim, no Estado do Rio Grande do Sul, ficam autorizados os Tabeliães a reconhecer as firmas de contratantes em contratos dessa natureza.
2º PARTE
“As pessoas que pretendam constituir uma união afetiva na forma anteriormente referida também poderão registrar os documentos que a isso digam respeito.”
As regras acima mencionadas servirão, ainda, para as pessoas que estão pensando em iniciar ou articulando esta espécie de relação afetiva, mas não só para aqueles que mantém por já há algum tempo tal comprometimento.
Desta forma, repetindo afirmação acima, esta possibilidade relativiza o requisito tempo – requisito imprescindível para a configuração do status de convivente – o que irá gerar conflitos acerca da possibilidade ou não de se reconhecer a união estável de imediato.
CONCLUSÕES:
- Admite-se a contratação sobre a relação afetiva (união) entre pessoas do mesmo sexo, tanto por instrumento público ou particular;
- A verificação da capacidade civil será feita pelo Notário, se instrumento público, ou pelo Oficial do Registro de Títulos e Documentos, se contrato particular;
- O Tabelião está autorizado a reconhecer as firmas dos contratantes, nos instrumentos privados;
- É vedada a lavratura e o registro desses contratos envolvendo pessoas casadas;
- Admite-se o registro destes contratos, observadas as formalidades legais, normas de ordem pública e direitos de terceiros;
- A contratação e o registro não representam a existência de união estável, a qual somente será declarada judicialmente;
- Na hipótese de reconhecimento judicial da união estável, permite-se a averbação na matrícula e/ou transcrição do imóvel de propriedade de um ou de ambos os conviventes;
- É possível o registro do contrato de pessoas que já apresentam uma relação contínua e duradoura como de sujeitos que estão constituindo ou que pretendam constituir dita relação.
Finalmente, considera-se um avanço, um ato de coragem e competência daqueles operadores do Direito que iniciaram, apreciaram e aprovaram tal medida, como representantes da Egrégia Corregedoria-Geral da Justiça e do Ministério Público, pois se estará, em última análise, resguardando a segurança jurídica e a paz social dos Gaúchos. Parabéns ao Corregedor-Geral e a sua equipe de Juízes.
Sapucaia do Sul, 5 de março de 2004.
Apêndice
Provimento 6/2004. Publicado no Diário da Justiça de 3/3/2004 - Processo Nº 22738/03-0
Parecer nº 6/2004-CM/GE
União estável. Pessoas do mesmo sexo. Inclui parágrafo único no artigo 215 da CNNR-CGJ.
O excelentíssimo senhor desembargador Aristides Pedroso de Albuquerque Neto, corregedor-geral da justiça, no uso de suas atribuições legais, considerando o teor do parecer em epígrafe,
resolve prover:
art. 1º - inclui-se o parágrafo único no artigo 215 da consolidação normativa notarial registral, com o seguinte teor:
"art. 215
(...)
Parágrafo único. As pessoas plenamente capazes, independente da identidade ou oposição de sexo, que vivam uma relação de fato duradoura, em comunhão afetiva, com ou sem compromisso patrimonial, poderão registrar documentos que digam respeito a tal relação. As pessoas que pretendam constituir uma união afetiva na forma anteriormente referida também poderão registrar os documentos que a isso digam respeito.”
Art. 2º - este provimento entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as disposições em contrário.
Publique-se.
Cumpra-se.
Porto alegre, 17 de fevereiro de 2004.
Des. Aristides p. De albuquerque neto
Corregedor-Geral Da Justiça
registre-se e publique-se.
Valéria Gambogi Rodrigues.
Secretária-substituta da CGJ.