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Os Senhores do Registro
Mil funcionários de um desconhecido corpo de elite garantem o “boom” imobiliário espanhol
Lola Galán
Se Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) levantasse hoje a cabeça, seguramente evitaria pronunciar a frase que o fez célebre: “A propriedade é um roubo”. Aos 140 anos da morte deste pioneiro francês do anarquismo, a propriedade, longe de ser considerada um roubo é a medida de todas as coisas, o verdadeiro termômetro para medir o dinamismo das sociedades modernas. Tomemos como exemplo a própria sociedade espanhola, convertida em um abrir e fechar de olhos em uma poderosa máquina de atividade imobiliária, capaz de atrair compradores estrangeiros (representam 40% das aquisições), até o ponto em que o mercado hipotecário, que em 1997 representava 27% do PIB, equivale hoje è metade da riqueza que geramos, enquanto que a França alcança apenas um quinto do produto interno bruto.
Das favelas brasileiras
Porém se este mercado mantém sua assombrosa pujança – a custa de arruinar litorais e serras em um frenesi construtor nunca visto –, é graças a que está solidamente ancorado em um registro da propriedade que funciona com a certeza de um relógio e tem o valor inapelável de uma sentença judicial. Registrar uma propriedade na Espanha equivale a garanti-la ante o mundo, com tudo o que isso significa.
Sobre a base do Registro Mercantil e da Propriedade, aparentemente uma fria e burocrática entidade, dirigida por um milhar de funcionários de elite, desenvolvem-se os mercados, cresce a economia e estende-se o que se costumou chamar o bem-estar social dos países.
Desde 1861, quando se aprovou a primeira lei hipotecária espanhola, esta instituição não tem feito mais que ganhar em seriedade e eficácia, até o ponto em que hoje os registradores espanhóis são solicitados em todo o mundo. Quer seja para creditar a propriedade do ocupante de uma favela no Brasil, de um apartamento privatizado na Rússia, um negócio em Cuba ou alguns terrenos no México, Polônia, Porto Rico, Hungria, Romênia ou Bielorrússsia, os registradores espanhóis são solicitados para implantar seu sistema de clarificação e para deixar constante sobre a quem pertencem realmente os bens.
Assim o proclama sem falsa modéstia o decano do Colégio de Registradores, Fernando P. Méndez, com toda a autoridade de seus 22 anos de experiência profissional: “Graças à nossa tecnologia jurídica registral, a Espanha converteu-se em uma potência mundial de primeira ordem no campo de registros de propriedade”. A afirmação pode parecer exagerada, porém se baseia, dizem, em dados objetivos tão palpáveis como o volume de petições que recebem e à alta estima que seu trabalho tem merecido do Banco Mundial ou do Banco Interamericano.
Fernando P. Méndez, decano registrador da propriedade em Moscou, 2002.
Uns e outros consideram que o sistema espanhol é muito competitivo, porque resulta barato e rápido em comparação com outros, inclusive o americano. Nicolás Nogueroles, responsável pelas Relações Internacionais do colégio, assegura que o sistema espanhol poupa ao proprietário uma média de 1.140 dólares por operação se se compara com o custo que alcança em Nova York, Califórnia ou Kansas, para pôr um exemplo dos Estados Unidos. A seriedade do sistema reforça-se com outros elementos legais, como a rapidez das execuções por não-pagamento de hipotecas, que na Espanha oscilam entre dois e cinco meses, frente aos quatro anos e meio da Itália ou França.
Porém o passo de gigante dado pelo sistema registral na Espanha, onde se realizam perto de cinco milhões de operações ao ano – temos a cifra de registradores per capita mais alta da Europa, depois de Portugal –, tem sido possível graças a dois fatores: a existência de multinacionais espanholas e a aposta dos sucessivos Governos – “particularmente os do PP” [Partido Popular], diz o decano Méndez – pela cooperação internacional.
“A propriedade rural no México é comunal. Ou se negociam preços de venda com cada proprietário ou existe o risco de comprar fumaça”.
“Graças à nossa tecnologia jurídica registral, a Espanha converteu-se em uma potência mundial de primeira ordem em registros da propriedade”.
Muitas das multinacionais espanholas têm pedido ajuda para resolver problemas de difícil compreensão de esclarecimento de propriedades na América Latina, em alguns casos insolúveis. E os registradores têm acorrido em sua ajuda com um apoio jurídico que equivale, dizem, a fornecer autopistas. No México, por exemplo, delimitar de quem são as propriedades pode levar demasiado tempo e dinheiro.
O Colégio de Registradores foi chamado lá pelo BBVA [Banco Bilbao Vizcaya Argentaria], preocupado pela baixa expansão de seu mercado hipotecário. “Enquanto este banco leva a cabo umas 250.000 hipotecas por ano na Espanha, lá apenas assinava uma centena”. O problema, segundo Méndez, é que neste país “há posse, porém não propriedade. Por isso tem-se visto bloqueada a construção do segundo aeroporto da Cidade do México, e por isso há poucos empréstimos hipotecários, porque não há garantias suficientes”. Embora a propriedade urbana esteja auditada, “expandí-la é muito complexo”, acrescenta.
Um dos maiores ganhos da Revolução mexicana, pôr em mãos comunais a propriedade, converteu-se, paradoxalmente, em um grave obstáculo para o desenvolvimento do país. O poderoso vizinho do norte desconfia deste estado de coisas e a imprensa americana não deixa de alertar seus leitores sobre os riscos de comprar propriedades no México. “A propriedade rural lá é como um monte vicinal”, explica Celestino Pardo, diretor do serviço de estudos do Colégio de Registradores e professor de História do Direito. “É propriedade comunal, e ou bem se negociam preços de venda com cada proprietário ou existe o risco de comprar fumaça”.
A situação lembra vagamente os tempos em que havia que se recorrer a um julgamento público para definir os proprietários de um prédio. Para pôr-se a salvo de qualquer reclamação, as empresas espanholas que se têm aventurado a comprar terrenos no México, têm tido que gastar em apólices de seguros.
Esta experiência negativa pode haver pesado em um líder popular como Luiz Inácio Lula da Silva, presidente do Brasil, que, seguindo o caminho inverso ao de Pancho Villa, prometeu aos deserdados de seu país um pouco de propriedade privada, inclusive aos ocupantes das miseráveis favelas. O mal está em que nenhum deles pode pôr a mão em um papel onde conste como dono destas pobres paredes. Faltam escrituras e falta um registro com garantias. Os registradores espanhóis foram chamados pelo Governo brasileiro para resolver este problema.
Por estranho que possa parecer, a propriedade é um motor de riqueza que poderia transformar a situação dos mais pobres. “A importância da inscrição é enorme para que esta gente possa obter um micro-crédito”, diz Pardo. O mal é que dois terços da propriedade imobiliária na América Latina carece de um dono claro, e isso tem graves conseqüências econômicas para o subcontinente. Daí a valiosa ajuda que podem prestar os registradores. “Nossa tarefa é assessorar e redigir os princípios jurídicos. O que exportamos é conhecimento”, explica.
Um conhecimento do qual se valem também as organizações internacionais e as autoridades da nova Rússia, necessitadas de adequar, ao complexo mundo da economia de mercado, o velho sistema socialista de propriedade estatal. Em todos os países do Leste, os registradores espanhóis têm encontrado problemas parecidos, derivados do escasso respeito que a propriedade privada mereceu na era soviética.
Puderam comprovar, por exemplo, as dificuldades que traz consigo passar da propriedade estatal à privada, em uma imensa cidade como Moscou, onde assessoram as autoridades locais desde 1996. “Ali tudo é complicadíssimo. Quando falamos de residências, o que se privatizou foi o espaço do apartamento; porém, as escadas, a fachada, tudo continua pertencendo ao Estado, que descura muito”, disse o decano do colégio. Isso para não falar da dificuldade que resulta ao moscovita médio aceitar os critérios de hierarquização que o mercado introduz.
Os apartamentos de Moscou
“As pessoas não entendem que dois apartamentos aparentemente iguais tenham preços diferentes, dependendo da zona onde estejam localizados”, diz Méndez. Porém, este é um problema menor comparado com o simples esclarecimento da titularidade de algumas propriedades no emaranhado burocrático que caracterizava o antigo regime. O Instituto Cervantes teve de renunciar, há não muito tempo, a comprar um edifício no qual pretendia instalar-se por impossibilidade de achar o proprietário.
E acontece que o mercado livre é totalmente contrário ao caos. “Muita gente pensava que após o colapso do sistema comunista, se abriria passagem de maneira espontânea à economia de mercado. Porém, isso não é assim, a economia de mercado é um sistema muito sofisticado, que requer um tecido jurídico delicadíssimo. Na Rússia faltam leis e, como resultado disso, falha o que hoje chamamos ‘institucionalidade’“, acrescenta Méndez. Uma das realidades que mais se ressentem deste estado de coisas é justamente a propriedade.
Os problemas de reconversão que esta titularidade coletiva estabelece lembram um pouco o que ocorreu na Espanha com a desamortização (em 1837). Até essa data, os grandes proprietários dispunham só de “livros bezerros” (pelo couro com que estavam encadernados), nos quais figurava o inventário de seus bens, sem nenhum referendo oficial. Depois de todo o estamento nobiliário e religioso, estavam isentos de qualquer risco, posto que suas propriedades eram inalienáveis por lei. Desde então, as coisas têm mudado muito. A propriedade tem-se fragmentado, massificando-se até limites nunca imaginados, o que tem exigido organizar e hierarquizar a informação. Esta necessidade se fez patente na Espanha na segunda metade do século XIX. E com uma urgência tal que a primeira Lei Hipotecária foi aprovada em 1861, antes inclusive que o Código Civil, dificultado pelas travas jurídicas que representavam os direitos forais.
O processo de fixação da lei mais adequada se fez pelo método de engenharia social. “Porque”, acrescenta o decano do colégio, “definir a propriedade é difícil”. O registro rege-se hoje pela Lei Hipotecária de 1944, que foi atualizada em 1981 para adequá-la à realidade de um país que havia iniciado um desenvolvimento selvagem. Desde então, o corpo de registradores passou de 600 a 1.000 funcionários. Também têm aumentado as garantias. Desde 1990 exige-se a posse da licença de obras na hora de registrar uma residência.
Obviamente, os países da Europa Ocidental, com séculos de desenvolvimento econômico nas costas, não parecem necessitados da ajuda espanhola neste terreno. “Cada país tem seu sistema de registro, embora haja basicamente dois: o francês e o hispano-alemão”, diz Fernando Méndez. “A diferença com nosso sistema é que o francês limita-se a registrar uma transação de compra e venda sem que isto signifique que se credita a autenticidade de uma propriedade, enquanto que no hispano-alemão, o Estado se responsabiliza, por assim dizer, por essa autenticação. Isto se traduz em maior rapidez e barateamento de custos destas operações”.
Se o registro oferece mais garantias, isso significa que as entidades de empréstimo se animarão a conceder dinheiro em menor custo ao eventual comprador. Na França, para comprar uma propriedade não basta ir ao registro. Há que se armar de paciência e euros, e acorrer a um expert – um advogado ou uma companhia de seguros – para que se investigue a fundo quem é o verdadeiro proprietário.
É como se o Estado lavasse as mãos, resistindo a ser o garante da propriedade registrada. E isso por uma boa razão: o pânico a correr com todos os enormes custos dos eventuais erros. Na Espanha – sistemas similares funcionam na Suíça, Áustria e desde há pouco, no Reino Unido –, o Estado não assume tampouco esta responsabilidade diretamente, senão por meio do Colégio de Registradores, que financia, com as quotas de seus membros, um fundo de compensação civil coletivo.
O colégio tem subscrita uma super-apólice com um pull de companhias re-asseguradoras para fazer frente às indenizações em caso de erros, “que sempre se produzem”, reconhece Celestino Pardo, “embora, por sorte, não demasiados”. Ao ano podem ser, não obstante, centenas de milhares de euros, sobretudo por questões de poderes. “Não faz muito tempo perderam-se 60 apartamentos em Marbella, por um erro de escritura”, acrescenta.
Ainda assim, as cifras são pequenas comparadas com o fabuloso volume de receita que o Colégio de Registradores tem, graças às quotas de seus membros, alguns dos quais embolsam ao mês quantidades vertiginosas que, na sede madrilenha desta instituição, ninguém quer especificar demasiado. “Depende muito do volume de operações do registro em questão; se é de Marbella, pode ser uma cifra enorme, porém em Fonsagrada, na melhor das hipóteses, se faz uma operação ao ano”, dizem.
Até a “desamortização”, os grandes proprietários dispunham só de “livros bezerros”, onde anotavam todas as suas propriedades
Os registradores insistem em que se esforçam não só em modernizar tecnologicamente o registro, como também em incorporar a ele dados que representam valores em alta nas sociedades desenvolvidas, como podem ser os informes meio-ambientais, embora tudo aponte a que os maiores investimentos têm como objeto facilitar os mecanismos de creditação de propriedades e de atividade mercantil. Embora os grandes sistemas montaram-se antes que houvesse computadores, de uma maneira até certo ponto artesanal, a febre tecnológica tem invadido tudo. O Colégio de Registradores investiu quase 40 milhões de euros para informatizar seus fabulosos arquivos. Nada mais e nada menos que dois milhões de volumes de papel. “Foi a maior digitalização da Europa”, explicam com orgulho. Qualquer usuário de Internet pode acessar o Registro Mercantil e o da Propriedade (http://www.registradores.org), até um limite, obviamente: o que fixam as leis da privacidade. Como se fosse pouco, os espanhóis são os primeiros em haver habilitado a assinatura eletrônica (na realidade, um cartão especial ao qual têm acesso, sobretudo, os executivos e responsáveis por empresas), para facilitar gestões mercantís obrigatórias, ou relações entre empresas, sem necessidade de apresentar-se fisicamente no registro correspondente.
Ordem em Porto Rico
Tão caro processo de modernização coincidiu com a expansão exterior do sistema espanhol. Às vezes, os serviços dos registradores espanhóis são requeridos pelo Banco Mundial ou o Banco Interamericano de Desenvolvimento, para participar de projetos próprios, como ocorreu no México e na República Dominicana, em Porto Rico e em Cuba, nos quais nestes dois últimos países ainda está em vigor a Lei Hipotecária do século XIX, em sua versão de ultramar.
“Em Porto Rico, os problemas de pessoal levaram a acumular um atraso de 500.000 transações. A situação é tremenda, em que pese o Governo tenha tentado resolvê-lo à maneira caribenha, quer dizer, ampliando ao infinito o limite de validade das operações”, explica Celestino Pardo. A chegada dos registradores espanhóis com um sistema simplificador e eficaz, não foi aplaudido por todos. “Encontramos um enorme rechaço ao pôr em marcha nosso sistema, porque requer menos pessoal e menos custos, e são muitos os que se vêem prejudicados”, diz Méndez.
Sob o guarda-chuva da UE têm assessorado também às autoridades da Bielorrússia, Croácia, Kosovo ou Albânia, e mais recentemente Romênia e Polônia. Da mão do Banco Mundial, participam em uma instituição registral da Hungria. A potência do corpo depende em boa medida de sua coesão estatal, embora esteja adaptado à realidade autonômica espanhola. Os registradores asseguram que a tendência é para uma uniformização maior dos sistemas no âmbito europeu. “Tem havido várias diretrizes européias neste sentido, embora alguma, como a da eurohipoteca, fracassou”, explica Nicolás Nogueroles. E não por culpa da Espanha, que, na opinião dos registradores, “tem hoje em dia uma reputação de país bem organizado”. O Colégio de Registradores é consciente de que chegou o momento de dar um novo salto profissional. “O futuro está no registro de bens móveis (o que acredita o valor material de uma firma de renome, por exemplo). Neste âmbito, os Estados Unidos estão muito mais avançados do que a Europa”, asseguram. Tudo demonstra que os registradores espanhóis não ficarão atrás. A propriedade, idolatrada por todos, com licença de Proudhon, oferece ainda infinitas possibilidades de catalogação e registro.
Encontro de registradores em Moscou, 2002.
Profissionais semi-privados à serviço do Estado
Os registradores são um corpo de elite ao qual se pode aceder mediante concursos que se celebram normalmente a cada dois anos; embora, dependendo das necessidades, podem ser realizados anualmente. Há localidades com uma só cartório e cidades como Madri que têm mais de 40 Cartórios de Registro da Propriedade (com um registrador à frente e uma média de vinte empregados cada um) e 17 mercantis. Os horários correspondem com o do funcionalismo. O Governo, mediante a lei de demarcação, cria, a cada 10 anos (às vezes a cada cinco e, excepcionalmente, a cada dois anos), novos registros. O boom imobiliário espanhol povoou de registros da propriedade amplas zonas da costa espanhola. Benidorm, que em 1978 não tinha registro, agora tem três, para não falar em Marbella, onde tem surgido como fungos, o mesmo que na maioria das cidades da Costa do Sol. O Estado, dizem no colégio, deveria cancelar, pelo contrário, os registros sem atividade, testemunhas de um passado agrário que desapareceu para sempre. Porém a decisão é do Ministério da Justiça, do qual dependem os registradores.
As taxas e complicadas custas judiciais que aplicam em cada operação de inscrição no registro são fixadas pelo Ministério da Economia. Quanto ao mais, o registrador funciona em tudo como um profissional liberal, o mesmo que um notário. O dinheiro que ingressa de cada registro é administrado por seu titular, que dedica 40% desta soma para pagar salários e cotas do Seguro Social dos empregados do mesmo, além do aluguel do local. O resto são seus honorários. Dentro da profissão há um verdadeiro escalão, entre registros ricos e registros quase miseráveis.
Tanto é assim que o colégio garante que nenhum de seus membros recebe menos de 1.500 euros mensalmente. E a capacidade de eleição entre o modesto registro de Fonsagrada e um de Barcelona, para citar um exemplo? A possibilidade de se optar por uma praça se faz mediante uma convocatória oficial na qual prima, sobretudo, a antigüidade profissional dos aspirantes. Embora o normal, acrescentam, é que, uma vez aprovado em concurso, concedam um registro ao candidato durante um mês e em seguida se tome posse do definitivo, no qual se deverá permanecer ao menos por um ano. (Matéria publicada no El País, Seção: Domingo, Página: 8 (1/2), Data: 4.1.2004 e reproduzida em http://www.registradores.org/prensa/elperiodico17enero04.pdf
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