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Regularização fundiária discutida no curso de extensão IRIB-FADISP
O Curso de Extensão Estatuto da Cidade, realizado de agosto a novembro, em parceria do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, Irib, com o Centro de Ensino Nossa Senhora de Fátima, da Fadisp – Faculdade Autônoma de Direito de São Paulo, foi um grande sucesso no que refere à freqüência de alunos. Os participantes debateram temas atuais e de extrema importância às atividades dos profissionais que atuam na área do Direito Notarial e Registral. O objetivo do curso foi proporcionar mais uma oportunidade de formação técnica e profissional ao registrador brasileiro, uma vez que o Estatuto da Cidade traz implicações profundas para a atividade registral.
O Curso de Extensão contou com renomados professores do país, abordando os aspectos jurídicos e legais do Estatuto da Cidade. Confira, a seguir, a exposição de um tema que é a grande preocupação dos governos federal e estaduais em todo o Brasil.
Política Nacional de Regularização Fundiária[i]*
Edésio Fernandes, coordenador do Programa de Regularização Fundiária do governo federal.
O crescimento urbano acelerado é o fenômeno social mais importante ocorrido no século XX. Esse fenômeno transformou a face do mundo e promoveu mudanças drásticas na organização territorial, na produção da economia e nas relações socioculturais. Isso é o que tem sido identificado nos países da América Latina, África e Ásia, considerados os mais urbanizados do planeta atualmente.
Esse fenômeno de urbanização é cada vez mais estudado a partir de uma perspectiva interdisciplinar, mas ainda falta explorar o papel do Direito na solução dessa questão.
A compreensão das causas e das implicações do crescimento urbano acelerado nesses países tem permitido a identificação de algumas características que, basicamente, combinam a exclusão social e a segregação espacial. Ou seja, esse padrão de crescimento urbano, baseado na segregação de um número cada vez maior de pessoas e do acesso aos benefícios da urbanização, resulta num outro processo recentemente identificado, o aumento da pobreza. Porém, uma das características mais preocupantes nesse processo diz respeito ao acesso informal e, muitas vezes, ilegal das pessoas ao solo e à moradia na cidade.
O desenvolvimento informal é regra, não é exceção. Não está se falando aqui de algo que seja tão-somente um sintoma de um modelo de crescimento econômico, mas sim, do modelo ele mesmo, da essência de um modelo internacional de urbanização.
Num primeiro momento, essa urbanização foi estimulada para dar suporte a um processo de industrialização. Hoje, em que pese o declínio da industrialização tradicional que já se verifica no Brasil, com a mudança do perfil econômico no contexto global das trocas financeiras, a chamada economia de serviços e informações, as cidades vão continuar servindo de palco para essas ações e a urbanização vai continuar crescendo.
No caso do Brasil, as taxas têm sido menores em relação a meados de 1970, mas ainda assim, são bastante significativas quando comparadas às dos outros países.
Não existe mais no Brasil aquele padrão tradicional de urbanização com as pessoas migrando do campo para as grandes cidades, ao contrário do padrão intrínseco da exclusão social e da segregação espacial, que está se agravando. Os dados mais recentes do Brasil revelam o aumento do número de pessoas que migram para as cidades de porte médio, cidades que ainda estão em formação, porém, combinados com os mesmos processos de exclusão social e segregação espacial.
Na verdade, esse é um processo planejado. Se compararmos com as cidades planejadas no Brasil como, Belo Horizonte, Goiânia, Palmas e Brasília, o que vamos perceber é que esse processo é resultado não só de mercados imobiliários, mas também, da própria tradição brasileira de planejamento urbano, direta e indiretamente.
Se a produção da moradia informal na cidade não é uma exceção, mas um processo estrutural do espaço urbano, tem de ser tratada dessa forma. Em outras palavras, não cabe tratar da informalidade tão-somente com políticas setoriais ou com programas de combate. Sabemos da importância dessas políticas, porém, deve ser concebido um programa que contenha um contexto mais amplo de política urbana habitacional e de uma política que vise à geração de opções de moradias, tanto pelo Poder Público quanto pelo mercado.
O que chamamos de desenvolvimento informal, na verdade, corresponde a uma diversidade de processos e situações. Com freqüência observamos casos de conjuntos habitacionais irregulares produzidos pelo próprio Estado, ocupações de áreas públicas ou privadas, seguidas de autoconstrução, compra de lotes ou casas clandestinas, falta de infra-estrutura, equipamentos e serviços, enfim, construções muito precárias.
As discussões sobre o tema sempre visaram somente à regularização da área, em nenhum momento se preocupou em discutir a regularização da construção. São poucos os programas brasileiros que se ocupam desse tipo de regularização. Para esses casos, geralmente só uma anistia é dada, ou, até mesmo, continuam na informalidade, mesmo que o lote tenha passado por um processo de regularização.
Outra dimensão pouco desenvolvida diz respeito às regularizações de negócios, o que pode ser levado em conta nos próprios programas de regularização quando se vê nos assentamentos informais a convivência entre residências e atividades comerciais. Ainda não existe uma política muito clara sobre como tratar dos negócios informais.
Pouco explorada também é a regularização de imóveis em áreas centrais degradadas. Em cidades como São Paulo, existem programas de requalificação e de reabilitação de centros urbanos esvaziados e degradados. Nesses programas também é fundamental a regularização dominial fundiária de imóveis particulares do Poder Público e de outros órgãos.
No Brasil a regularização é mais acentuada no processo de produção de lote, de terra urbanizada, seja de favelas ou de loteamentos. As formas variam muito. No Centro-Oeste temos as agrovilas, que eram os centros dos projetos de colonização, hoje enormes cidades irregulares. Um pouco acima, ao Norte ou mesmo no Nordeste, vamos descobrir que a relação das pessoas se dá muito mais com a água do que propriamente com o solo quando vemos as palafitas, as populações ribeirinhas. Juridicamente, as formas podem ser reduzidas a duas ou três categorias principais.
Os impactos e implicações desses processos, quaisquer que sejam as suas características, são geralmente os mesmos.
Em termos sociais, a exclusão da população aos benefícios da urbanização, vivendo em periferias ou em áreas centrais degradadas, trouxe para a atualidade a teoria da marginalidade.
Dados estatísticos do Banco Mundial informam que de 1 milhão de moradias produzidas no Brasil no ano passado, cerca de 700 mil são ilegais. O grande promotor da habitação no Brasil não é o mercado imobiliário nem o Poder Público. O setor informal é que promove essa oferta de lotes no país.
Na década de 60 já era comum, no Brasil e na América Latina, a teoria da marginalidade, ou seja, a associação de moradores ocupantes de áreas informais periféricas com marginais. Uma autora norte-americana, Janice E. Perlman, veio ao Brasil especialmente para escrever O mito da Marginalidade, um livro revelador que trouxe para o debate a forte associação existente entre exclusão social, a segregação territorial e a marginalidade. Foram feitas entrevistas com 700 famílias, incluindo famílias moradoras da favela da Rocinha, no Rio de Janeiro.
Em cidades grandes, infelizmente, essa questão vem se destacando muito com o aumento da violência urbana. A relação entre a pobreza, a segregação, exclusão e marginalidade, que hoje está cada vez mais presente na sociedade brasileira, tem orientado propostas muito perigosas do ponto de vista urbanístico. A cidade de São Paulo pretende fazer um paisagismo à prova de bandidos, pretende acabar com as azaléias da cidade plantando árvores altas no lugar, o que trará sérias implicações urbanísticas.
No Congresso Nacional, a discussão sobre a revisão da Lei de Parcelamento do Solo, lei 6.766/79, era especificamente sobre a necessidade de se regularizar os loteamentos fechados. Toda ênfase estava sendo dada à criação de desenhos urbanos que sirvam de proteção contra os marginais. Essa associação tem levado à proliferação de outras formas de guetos e de fortalezas urbanas, o que significa um fenômeno muito perigoso.
Conseqüências da falta de acesso ao registro
Juridicamente, a informalidade acarreta todo o tipo de implicações, mas a falta de segurança da posse, por exemplo, sobretudo em países como o Brasil, onde o registro é constitutivo da propriedade, está criando sérias dificuldades até para se arrumar emprego. Em Petrolina (PE), bóias-frias que procuram emprego em safras de uvas só não conseguem porque não possuem endereço, por não serem juridicamente reconhecidos como legítimos ocupantes das áreas onde habitam.
A insegurança ocorre desde a falta de um endereço até a falta de acesso ao crédito, passando-se por diversas dificuldades. Essa insegurança coloca a população numa situação de vulnerabilidade política, muito mais facilmente submetida às práticas do clientelismo político.
Talvez os processos informais de produção das cidades sejam hoje os mais debatidos no setor econômico. Até a década de 90, a discussão sobre a regularização passava por uma combinação de fatores, por discursos que eram articulados sobre valores morais, éticos, humanitários, religiosos e sóciopolíticos. Recentemente, essa discussão ganhou outra dimensão com a inserção do valor econômico. Nesse sentido, avançamos mais, já que podemos fazer um discurso não apenas em cima de valores, mas também de direitos.
Em termos de valores, o que está cada vez mais claro internacionalmente é que as cidades produzidas informalmente são cidades extremamente caras, que são impossíveis de serem administradas. São cidades fragmentadas, do ponto de vista da prestação de serviços, cidades cujas soluções urbanísticas são infinitamente mais dispendiosas do que as cidades que passam por um processo de regulação.
O alto preço do acesso informal ao solo
Com muita freqüência as pessoas dizem que esse acesso informal ao solo é a única opção reconhecida ao pobre, na medida em que tanto as políticas públicas de habitação quanto o mercado imobiliário teriam falhado, historicamente, ao não produzir opções acessíveis, adequadas, suficientes. Isso é verdade, mas não significa que essa única opção seja barata.
Cada vez mais vemos pessoas sendo jogadas, pela combinação entre planejamento e legislação urbanística, para áreas de preservação ambiental, áreas totalmente incompatíveis com a presença humana. Essa única opção não significa ser a mais barata. A verdade é que o pobre, no Brasil e na América Latina, paga muito caro para viver em condições extremamente precárias.
Uma pesquisa recente comparando o preço de um metro quadrado de lote produzido regularmente nos Estados Unidos, obedecendo à legislação de parcelamento, com o metro quadrado do lote produzido informalmente no Brasil mostrou que o lote informal produzido no Brasil é mais caro. Barracos em favelas são alugados e vendidos por valores assustadores. No valor da venda são embutidos fatores como localização, proximidade do trabalho e das redes sociais que se formam nessas áreas para compensar a ausência de redes públicas. No alto custo do metro quadrado em assentamentos informais está embutida, também, a liberdade urbanística, a liberdade de se construir um segundo andar na laje, um puxado. Isso ocorre graças ao total descaso do Estado nessas áreas.
Vivemos uma situação muito delicada de tolerância, a tolerância gera direitos. A dimensão econômica tem sido cada vez mais discutida, assim como as campanhas e programas de larga escala para a legalização dos assentamentos informais.
Países como Egito, El Salvador, Peru, Romênia, México e Filipinas têm adotado essa idéia de promover legalização em larga escala, trazendo o ilegal para dentro da legalidade.
Em termos de impactos ambientais, a cidade de São Paulo é a mais prejudicada, no Brasil, com as ocupações irregulares em áreas de mananciais e de preservação ambiental.
É necessário entender que a informalidade se dá por uma combinação de causas. As mais comuns são: a carência de opções de moradias adequadas e acessíveis devido à ação de mercados especulativos formais e informais; os sistemas políticos clientelistas; o planejamento urbano que se faz no Brasil, um planejamento elitista e tecnocrático, baseado em critérios técnicos ideais, mas que não expressam as realidades socioeconômicas de produção e de acesso à terra.
Em Porto Alegre, que é visto como modelo internacional de gestão e de reforma urbana, levava-se cerca de três anos para conseguir aprovar um loteamento até dois meses atrás. O projeto entrava na Secretaria de Meio Ambiente, passava para a Secretaria de Planejamento Urbano, depois ia para a Secretaria de Habitação, para a Secretaria de Obras, todas elas fazendo suas exigências, até chegar novamente à Secretaria de Meio Ambiente. Resultado: nos últimos cinco anos, três loteamentos regulados foram aprovados em Porto Alegre. Na mesma época, cento e oitenta loteamentos irregulares foram implementados e, desses três loteamentos regulados aprovados, o lote mais barato, dadas as obrigações e a infra-estrutura que a legislação local exigia, chegava a custar 18 mil reais.
Para o grande número de pessoas que ganham até três salários mínimos, historicamente excluídas do acesso ao crédito, o custo desse lote é irreal. É preciso repensar a maneira como as cidades têm sido planejadas, quais os critérios que estão sendo utilizados. No meu entender, essa visão elitista, que o planejador urbano leva com freqüência para a sua prática profissional, é um dos grandes fatores da produção da informalidade.
O papel da Ordem Jurídica na produção da ilegalidade
É freqüente o uso da expressão “cidade legal” ou “cidade ilegal”. Esse é mais um recurso pedagógico para enfatizar essas realidades do que uma descrição de um processo real.
Mais do que a divisão entre duas categorias, o que se tem são redes de relações que se alimentam entre si, ou seja, redes de relações entre o formal e o informal, o legal e o ilegal. Atualmente, há estudos acadêmicos sobre a chamada produção informal do Direito no contexto das comunidades. Produção informal que passa pelo Direito Civil, normas informalmente produzidas das relações entre indivíduos, das relações de casamento, de herança, de sucessão, das relações informais do direito comercial, regras de sucessão, construção com o verdadeiro solo criado, espaço aéreo cada vez mais negociado nas favelas brasileiras.
Ao contrário, uma dimensão pouco estudada, mas que vem despertando a atenção de investigadores e pesquisadores do mundo diz respeito à produção informal da justiça criminal.
Hoje, em São Paulo, verificamos a existência de todo um aparato informal de produção e distribuição da justiça criminal que a cidade do Rio de Janeiro já conhece há mais tempo.
Programas de regularização
A informalidade não é privilégio de pobre, são muitas as práticas de desrespeito à lei urbanística entre grupos mais privilegiados da sociedade brasileira, partindo de condomínios horizontais que não obedecem a legislação de 1964 e de loteamentos fechados, aberrações ainda maiores. O desrespeito se dá de formas diferenciadas às regras dos códigos de obras e das leis de uso do solo.
Como resposta do Poder Público à mobilização social, a partir da década de 80 surgem, no Brasil, os programas de regularização com base na lei 6.766/79, que hoje passa por um processo de revisão.
Tratando da regularização de loteamentos, a lei 6.766/79 criou condições, quando inseriu em um capítulo disposição sobre a urbanização específica, para que programas de regularização de favelas pudessem ser pensados no Brasil.
Essa disposição trazida pela lei 6.766/79 foi agarrada por algumas administrações municipais brasileiras que abriram caminho para o crescente enfrentamento da informalidade.
Em 1983, Belo Horizonte criou o “Pró-favela”, o primeiro programa brasileiro de regularização de área e, em seguida, Recife também lançou o seu programa.
Esses foram dois pilares fundamentais para a história e para a política no processo de regularização do país. Mas esses pilares possuíam diferenças bem expressivas quanto à forma de reconhecimento dos direitos dos ocupantes, cada um tinha visões diferentes sobre a regularização. A única semelhança existente entre as duas experiências é que ambas foram claramente influenciadas pela Igreja Católica.
Enquanto Belo Horizonte, influenciada pelos padres italianos, entendia que regularização era uma forma de reforma fundiária e de distribuição de renda, a cidade de Recife acreditava que regularização era tão-somente um empreendimento de moradia. Essas visões diferentes sobre a regularização vão ensejar termos muito diversos.
Uma coisa é discutir direitos de propriedade e outra, direitos de moradia. O direito de propriedade, sobretudo o direito individual de propriedade, pode ser a forma mais adequada de reconhecimento de um direito de moradia, porém, dependendo dos objetivos do programa de regularização pode também não ser.
Esse processo de resposta ao desenvolvimento informal começa em 1983 e ganha força com a Constituição de 1988, quando surge o direito à regularização. A regularização fundiária no Brasil, até essa época, ficava por conta de ação discricionária do Poder Público, ou seja, não sendo consolidada.
A partir de 1988, com o reconhecimento da usucapião especial urbana e da concessão, hoje consolidada no Estatuto da Cidade, surge o direito do ocupante à regularização. Nesse sentido, nasce o conceito de regularização, ou seja, se a prefeitura municipal quiser promover um conceito de regularização fundiária de maneira ampla, combinando regularização urbanística com ambiental, social e jurídica, ela terá que agir, caso contrário, o direito do ocupante à regularização jurídica prevalece e há de ser reconhecido pela via judicial.
Título de propriedade gera acesso ao crédito
No Brasil, a regularização urbanística é muito mais significativa que a regularização das construções que, aliás, avançou muito nos últimos tempos. Mesmo aquele município que conseguiu promover a regularização jurídica combinada com a urbanística, dificilmente conseguiu registrar o parcelamento das áreas ou dos lotes resultantes. Nesse caso, dada a fundamental importância do registro, a regularização acaba não se concretizando completamente. A cidade de São Paulo está de parabéns, já que a Prefeitura Municipal, na pessoa do Secretário de Habitação, Paulo Teixeira, está entregando 40 mil títulos de concessão de direito real de uso registrado. Isso significa um feito histórico e de importância inestimável para o Brasil.
Porto Alegre promove regularização urbanística e jurídica há 14 anos, com programas de geração de rendas e todo o tipo de programas comunitários, mas até agora a cidade não conseguiu proceder nenhum registro das áreas regularizadas. Foram entregues 16 mil títulos de concessão de direito real de uso que até hoje não foram registrados.
É imprescindível, além da promoção do registro, garantir condições de validação social das novas formas de direito, dos novos instrumentos, ou seja, há necessidade de existir o pleno reconhecimento desses direitos pelas agências de crédito, de financiamentos e pela sociedade em geral.
Com a ênfase dada internacionalmente à importância da legalização, o conceito de regularização tem que ser disputado, não há um conceito único. Atualmente, os dados da Organização das Nações Unidas, ONU, apontam para cerca de 870 milhões de pessoas vivendo em favelas ou em assentamentos. A previsão é que até o ano de 2020 esse número aumente para 1,5 bilhão, o que se torna uma situação alarmante.
O que também se identifica no âmbito internacional é a homogeneização dos regimes jurídicos que acabam com a diversidade de formas de reconhecimento de direitos de propriedade e enfatizam uma única forma, o direito individual da propriedade plena.
A promoção pelo Poder Público de programas de legalizações em massa tem ocorrido no sentido de se possibilitar a regularização jurídica. Esse movimento internacional não está baseado em um conceito amplo integrado e articulado de regularização que combine as três dimensões, urbanística, jurídica e social.
Os argumentos sobre a necessidade de regularização têm variado muito ao longo das décadas. No Brasil, a partir da década de 70, quando começa a discussão sobre a regularização, os argumentos eram essencialmente morais e religiosos, já que a Igreja Católica tinha importante papel na condução desses processos.
A partir da década de 80, os argumentos que começam a predominar são os sóciopolíticos, ou seja, o Direito como resultado de lutas políticas. Ainda assim, os argumentos são discutidos em relação a valores.
Hernando De Soto, economista peruano, calculou que no mundo em desenvolvimento foram investidos na produção informal de lotes, de casas e negócios, cerca de 9,3 trilhões de dólares, que ele chama de capital morto, pois não é reconhecido pela ordem jurídica. Desse modo, não gera acesso ao crédito, não permitindo também a circulação desse dinheiro na economia como um todo e na economia urbana, em particular.
Hoje, a economia urbana do mundo desenvolvido e do munido em desenvolvimento é um problema sério, os municípios estão falidos. A necessidade de renovação da economia urbana é um fenômeno internacional que tem levado à competição das cidades, que já estão trabalhando novas formas de planejamento, o chamado planejamento estratégico. Mesmo com o declínio da produção industrial e com a necessidade de se reinventar novas bases econômicas, as cidades vão continuar servindo de sede para uma população cada vez maior, porém maior também em atividade econômica.
Hernando De Soto propõe que esse capital que ele chama de morto seja reanimado e incorporado pela ordem jurídica. Ele faz uma crítica, a meu ver correta, acerca do papel do Direito no processo da burocracia como, por exemplo, a dificuldade para se abrir um negócio. Propõe que é preciso legalizar o ilegal, dar condições para que as pessoas se sintam seguras da sua posse, pois somente quando se sentirem seguras da sua posse é que vão investir em suas casas e nos seus negócios.
O autor não se preocupa com o título de propriedade, mas, em sua teoria, o título de propriedade é a condição da segurança da posse que gera o acesso ao crédito. Para ele, há que se fazer a reforma da ordem jurídica, um investimento maciço na legalização tão-somente para abrir as portas ao crédito.
Até agora regularizações eram feitas em função de valores que se opunham à ordem jurídica, a preocupação era pura e simplesmente a legitimidade e não a legalidade. Mas, a partir de uma série de convenções e tratados, além dos discursos de valores que não são exclusivos ou excludentes um dos outros, temos hoje condições de fazer um discurso de direitos.
Regularizar é um direito das pessoas, direito esse que pode ser materializado mesmo contra a vontade do Poder Público. Não estamos mais no âmbito da ação exclusiva e discricionária do Poder Público, atualmente existem direitos subjetivos em jogo, o que explica, mais uma vez, a importância de se promover programas de regularização sustentáveis, que combinem todas as dimensões já citadas.
Segurança da posse como condição de erradicação da pobreza
Geralmente são dois os objetivos dos programas internacionais de regularização. O primeiro deles é a segurança da posse, objeto de campanha da ONU e do Banco Mundial. Todos os investimentos são feitos na tentativa de erradicação da pobreza.
Os critérios de medição da erradicação da pobreza estão nos dois objetivos principais, saneamento básico e a segurança da posse. O objetivo é reduzir em 100 milhões o número de pessoas que vivem em favelas até o ano de 2010, o que significa uma gota de água nesse oceano da informalidade e da pobreza.
É esse tipo de argumento e de objetivo que tem gerado campanhas globais, contratos internacionais com agências doadoras, a participação de organizações não governamentais internacionais e o apoio dos governos internacionais, todos se articulando em torno da segurança da posse como condição de erradicação da pobreza.
O outro objetivo é no que se refere à integração socio-espacial. No caso do Brasil, os programas de regularização almejam a integração das áreas na estrutura das cidades e a integração das comunidades na sociedade urbana.
Isso é muito importante porque vai determinar a escolha jurídico-política dos direitos a serem reconhecidos. O Poder Público pode e deve materializar esse objetivo para promover a integração das áreas garantindo às pessoas um lugar mais centralizado ou, pelo menos, áreas mais bem equipadas e que não sejam expulsas por força de mercado.
Inicialmente, a principal razão pela qual esse objetivo se tornou um fator mobilizador das campanhas globais era a proteção contra o despejo. Essa talvez seja atualmente uma questão menos séria do que já foi no passado e seguramente menos séria do que está acontecendo na Ásia e na África, onde despejos violentos e remoções forçadas ainda são algumas formas de políticas. O Brasil evoluiu para o reconhecimento, mas o despejo ainda é uma política dominante em grande parte do mundo.
Acesso ao crédito formal é umas das razões pelas quais a segurança da posse tem sido defendida. No início, a segurança da posse era muito específica na medida em que era vista apenas como meio de prevenir ações de despejo e promover o acesso ao crédito. Nos programas atuais já se analisa amplamente novos gêneros, entre eles os assentamentos sustentáveis; direitos de cidadania; fortalecimento de organizações sociais e direito das mulheres, que constituem famílias informalmente. Os programas de regularização têm de garantir a permanência das pessoas no local.
A regularização de área é muito cara e leva tempo lidar com situações já constituídas ao longo de 70 anos, sai mais caro ainda. Um exemplo disso está em Belo Horizonte, cidade planejada inaugurada em 1897. Na época, o exercício de planejamento urbano era muito sofisticado, comparado até com elementos do urbanismo de Paris. Mas, esqueceram de reservar um lugar para os construtores da nova cidade que migravam do campo. Atualmente, existe um bairro que leva o nome de Funcionários. Dois anos antes da inauguração de Belo Horizonte, em 1895, três mil pessoas já viviam em favelas, favelas essas que até hoje não foram regularizadas. Palmas, no Tocantins, cidade que tem apenas 14 anos de existência, já possui um população de quase 200 mil habitantes que se encontram na mesma situação.
Enfrentar essa herança histórica, esse passivo sócio-ambiental, é algo que exige esforço e investimento de recursos públicos. O que hoje se discute é que esse esforço do Poder Público não pode ser apropriado pelos próprios agentes que provocaram a informalidade, os beneficiários é que têm de ser os ocupantes. Deve-se garantir áreas centrais, equipadas e com serviços.
Experiências brasileiras
O primeiro comentário que se pode fazer das experiências brasileiras é que a segurança da posse não está sendo devidamente traduzida em instrumentos urbanísticos, jurídicos e financeiros. Os mecanismos de gestão não são adequados e os processos sóciopolíticos e socioeconômicos não são condizentes.
A verdade é que essa falta de adequação entre objetivos, instrumentos, mecanismos e processos têm levado a distorções e a efeitos perversos de tal modo que o mercado informal acaba se tornando mais viável para muitas pessoas. Há quem pense que a intervenção do Estado, mediante programas de regularização, estaria servindo como mais um fator de expulsão e de segregação.
Se levarmos em conta o volume de recursos e os números irrisórios resultantes do final, pode-se dizer que, vinte anos depois das experiências de Belo Horizonte e Recife, as iniciativas brasileiras de regularização são grandes fracassos.
Na concepção de programas de regularização é fundamental que se procure a devida tradução dos objetivos para que não sejam apenas nominais e retóricos.
A regularização é um programa de natureza essencialmente curativa, que existe tão-somente para resolver uma situação, reconhecer direitos e situações consolidadas no tempo. Porém o programa só tem sentido se conciliado com políticas públicas de habitação, planejamento urbano e gestão democrática. Só assim é que conseguimos quebrar o círculo vicioso que, ao longo das décadas, têm produzido a informalidade.
O censo de 2000 aponta um deficit habitacional de aproximadamente 6,6 milhões de unidades, o que leva à conclusão de que seria necessário construir 6 milhões de casas. O mesmo censo indica a existência, nas cidades brasileiras, de 4,5 milhões de imóveis vazios, grande parte deles pertencentes ao Poder Público. Desse modo, o que se verifica é a necessidade de um processo de produção do espaço urbano e não um sintoma de um modelo.
Programa Nacional de Regularização Fundiária
Trata-se de um programa que visa apoiar, complementar e suplementar a ação dos municípios por meio de quatro estratégias: jurídicas, financeiras, urbanísticas e institucionais.
Sabemos que o problema é grande, a informalidade no país já chega a 80%, mas a nossa história sóciopolítica é a da descentralização, a do municipalismo que, mesmo com todas as limitações financeiras é a instância local mais forte no que diz respeito às ordens constitucionais.
Na Conferência das Cidades, inúmeras foram as propostas em busca de soluções mágicas, sem nenhum compromisso com ordem constitucional, política ou jurídica. Propostas que visavam providências do Governo Federal e do Ministério das Cidades para a solução dos problemas, ignorando, pura e simplesmente, as competências municipais.
Essa é uma expressão da carência histórica e da ausência de uma política nacional, mas é fundamental entender que o lugar do Governo Federal é muito determinado, trata-se tão-somente de um lugar de apoio.
Como já falado, o modelo de desenvolvimento do país tem produzido cidades caracterizadas pela informalidade fundiária, marcadas pela presença de assentamentos precários sem a menor condição de habitabilidade e infra-estrutura. É o que Raquel Rolnik chama de urbanização de risco, pois há até risco de vida com as contaminações e inundações geralmente ocorridas.
Favelas, assentamentos e loteamentos informais não são problemas vividos apenas por grandes cidades. Dados recentes mostram que em cidades de porte médio e cada vez mais em cidades pequenas essas formas variadas de copnstrução informal já estão ocorrendo. Cerca de 37% dos municípios brasileiros com menos de 20 mil habitantes têm loteamentos clandestinos, e 18% desses municípios possuem favelas.
O que podemos esperar com o contexto da nova estrutura urbana que está se formando com o crescimento de cidades de porte médio é que, cada vez mais, esse tipo de coisa ocorrerá. Mais uma vez, não se trata de uma exceção, mas sim de uma regra que não se reduz mais aos grandes centros urbanos.
No Programa Nacional de Regularização há maior espaço para a ação da União, que cuidará dos assentamentos a serem regularizados em terras de propriedade da União.
Outro pilar importante do programa é o reconhecimento do direito constitucional de moradia e segurança de posse como direitos humanos fundamentais.
O Direito urbanístico é um ramo novo do Direito brasileiro e é totalmente autônomo. Esse direito possui princípios, institutos e bens próprios. É fundamental afirmar a supremacia desse novo ramo do Direito público sobre o privado na regulação da ordem urbanística e na aplicação do Estatuto da Cidade. Eis aí o grande desafio dos juristas brasileiros, construir doutrinas e critérios de interpretação para a nova ordem jurídica.
Para o bom funcionamento do Programa Nacional de Regularização se faz necessário que ele esteja intimamente relacionado com programas que visem à produção de lotes urbanizados.
Um dos objetivos do Programa Nacional de Regularização é criar condições para que os municípios possam agir, ampliar o acesso da população de menor renda à terra urbanizada e, para isso, além de propor um conceito amplo de regularização que combine urbanização e legalização, é preciso trabalhar novas políticas de habitação e planejamento.
O Sistema Nacional de Habitação, a partir de 2004, estará sendo totalmente redesenhado, o que implicará em novas ofertas de unidades habitacionais pelo Poder Público. Também implicará em novas linhas de crédito e financiamentos, sobretudo, para essa camada da população que ganha até três salários mínimos.
Dada a extensão do problema, sabemos que ainda não será suficiente. É necessário buscar o apoio do setor privado para a produção regular de lotes urbanizados, utilizando-se as possibilidades oferecidas pelo Estatuto da Cidade, as vantagens, os incentivos, os créditos de construção.
Outra preocupação refere-se aos espaços vazios. É preciso dar uma função social para os milhões de imóveis vazios existentes no país. Nessa questão, um grande desafio vai estar na integração do direito social constitucional de moradia com o direito social constitucional de preservação ambiental.
Os conflitos entre moradia e preservação ambiental têm sido utilizados com muita freqüência para introduzir obstáculos nos programas de regularização. A ênfase na idéia de passivo ambiental não permite uma discussão sobre passivo sócio-ambiental. Dessa forma, é importante tentarmos encontrar alguma medida de compatibilidade, o que será difícil, já que algum direito ou valor irá prevalecer sobre o outro. No caso de o valor ambiental prevalecer, se faz necessária a criação de alternativas para a população de baixa renda.
Um dos objetivos específicos é o reconhecimento, como formas de direito real, da concessão e da usucapião. Para isso, é fundamental o trabalho de revalidação dos instrumentos. O registro se torna crucial, porém o desafio é promover a aceitação desses novos títulos pelos bancos financiadores, pela Caixa Econômica Federal, de modo que não sejam tratados como formas inferiores de aquisição de propriedade.
É imprescindível pensar em produções coletivas para os problemas enfrentados pelas favelas. Não se trata somente de soluções técnicas de tratamento de esgoto ou água, a questão está em solucionar os problemas jurídicos coletivos como, por exemplo, a usucapião ou a concessão coletiva.
Mesmo aqueles municípios que já conseguiram avançar com a regularização ainda encontram obstáculos de várias ordens, quais sejam: urbanísticas – lei 6766 e Estatuto da Cidade; ambientais – Código Florestal, leis ambientais; fundiárias – Lei de Patrimônio da União; cartorárias – tudo o que obstaculiza a lei cartorária para a regularização; processuais – ações de usucapião coletiva que caem no processo civil; lei de desapropriações, com a criação de projetos para desestimular a desapropriação, pagando-se somente o valor da terra nua.
Dentre as questões trabalhadas nas estratégias de apoio utilizadas no programa de regularização fundiária estão as custas de cartórios. Será assinado, em breve, com a Anoreg-BR um termo de compromisso que isentará de custas de registros a regularização do parcelamento e da primeira matrícula dos lotes que entrarão no mercado. Em Gravataí essa já é uma realidade municipal, mas a idéia é transformá-la em orientação nacional da Anoreg-BR para os registradores do Brasil.
Outro grande avanço se deu com relação aos procedimentos. Cada Estado procede de uma determinada forma, os cartórios dão interpretações diversas aos provimentos. A proposta feita pela própria Anoreg-BR é a criação de um Conselho nacional normativo regulador dos cartórios. As regras para a regularização vão ser definidas por esse Conselho, para pôr fim às divergências.
Ainda com relação aos procedimentos, o trabalho mais difícil será o de compatibilizar as bases cartorárias com as bases cadastrais dos municípios, visto que se tratam de universos distintos. Para promover uma maior aproximação com os dados que constam do Registro é preciso entender essa nova era, a do georreferenciamento. Esse é o maior desafio que ainda vai passar por uma série de discussões e critérios.
Outro fator importante em relação aos cartórios diz respeito às suas práticas. Se, por um lado, existem os cartórios que se recusam a se envolver nos processos de regularização, por outro, existe a falta de compreensão das prefeituras. É fundamental a presença dos cartórios no processo de regularização e, nesse sentido, é preciso que avancemos com parcerias.
Foi mediante parcerias que se tornou possível a entrega de 40 mil títulos de concessão registrados. Há necessidade de unir o Ministério Público, os cartórios e todos os operadores do Direito nessa solução jurídica, pois estamos vivendo uma nova doutrina, um novo mundo e é de fundamental importância a participação de todos.
Outra estratégia de apoio é a que cuida da valorização dos instrumentos novos individuais e coletivos da usucapião e da concessão. Uma terceira estratégia se refere à questão ambiental. O Conselho Nacional do Meio Ambiente, Conama, está com um projeto de resolução que propõe tratamento específico para a regularização em áreas de preservação permanente.
No que se refere às estratégias financeiras, o Ministério está propondo, a partir do próximo ano, o lançamento, pela Caixa Econômica Federal, de três linhas de crédito do orçamento-geral da União.
A primeira linha de crédito seria para o município que ainda não iniciou nenhum tipo de regularização e que pretende fazer o levantamento da irregularidade, cadastrar e identificar.
A segunda linha de crédito vai para a montagem de programas de regularização, formatação e equipamento. E a última vai para aqueles municípios que já realizaram até investimentos em urbanização, mas não conseguiram avançar nas ações de usucapião e na assistência sócio-jurídica às comunidades, serviria como aparato para que esses municípios entrem com as ações de concessão.
Do ponto de vista urbanístico a idéia é estimular nacionalmente a discussão no sentido de que a regularização não pode ser pensada isoladamente, deve ser levada para o coração do planejamento urbano, com a discussão do plano diretor e do Estatuto da Cidade. Nesse sentido, nos dias 27 e 28 de novembro, será realizado o seminário “A nova ordem jurídica e urbanística” com parceria conjunta do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, Ministério Público de São Paulo e Escola Paulista de Magistratura. Para o Governo é muito importante levar essa discussão para todos os operadores do Direito.
E, por último, as estratégias institucionais, que são trabalhadas com duas formas de parceria. A primeira delas é possibilitando assistência técnica para os programas de regularização que envolvam trabalhos com arquitetura, engenharia pública e universidades. A outra forma de parceria se refere à assistência jurídica para propositura das ações. O objetivo é estimular um projeto completo que envolva engenheiros, arquitetos, advogados, assistentes sociais, psicólogos, que trabalharão com cinema, teatro e música visando à inclusão jurídica, urbanística e sócio-cultural das pessoas que, mesmo com seus títulos nas mãos, ainda são vistas como faveladas.
Foi criado um grupo de trabalho pela Casa Civil sobre a questão do patrimônio da União, que está sendo definida em seminários e convênios, no sentido de criar condições para que os municípios possam agir. Mais uma vez, é necessário entender que o governo federal não entrega nenhum título e não legaliza absolutamente nada. É o município que entrega título, o máximo que pode ser feito pelo governo federal é entregar terra para que o município transfira aos ocupantes, o que frustra muitas expectativas de pessoas que esperam que o governo federal aja nesse sentido. Os projetos de regularização são muito importantes para impulsionar as experiências isoladas para uma escala maior, levando a questão da regularização para o coração da política pública nacional.
[i]* 28a aula do curso de extensão Estatuto da Cidade, realizado em parceria do Irib com a Fadisp, em 5 de novembro último.
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