BE949

Compartilhe:


 

IRIB participa de Encontro sobre o combate à grilagem de terras no Piauí - Parte 2 – entrevista com a Dra. Fernanda Almeida Moita


Conforme noticiado no Boletim Eletrônico 793, de 25 de agosto de 2003, o Irib foi convidado pelo Secretário de Reforma Agrária do Ministério do Desenvolvimento Agrário, doutor Helio Roberto Novoa da Costa para participar do Encontro de Juízes, Promotores e Tabeliães do Cerrado Piauiense realizado no Estado do Piauí nos dias 30 e 31 de outubro passado.

O evento que teve como tema O combate à grilagem do Cerrado Piauiense foi promovido em parceria pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário, MDA, Secretaria da Reforma Agrária, SDT, Incra, Tribunal de Justiça e Corregedoria-Geral de Justiça do Piauí, Governo do Estado do Piauí e Instituto de Terras do Piauí, Interpi.

Tendo publicado a primeira parte da reportagem, neste boletim v. terá conhecimento do teor da carta de Cristino Castro e da entrevista concedida pela Dra. Fernanda Almeida Moita, co-organizadora do evento e leitora do Boletim do Irib em Revista.

A entrevista concedida pela lúcida Presidente do Interpi nos introduz a uma realidade que precisa ser conhecida pelos registradores brasileiros. O que vimos discutindo sobre atomização dos serviços registrais, inadequação infra-estrutural dos cartórios para atuação em redes, falta de referências normativas e legais para a realização do serviço de maneira integrada e harmônica e outros fenômenos que acabam prejudicando uma adequada prestação de serviços à população, são problemas que precisam ser enfrentados institucionalmente.

Não se deve, contudo, deixar de registrar que muitos colegas piauienses, após o evento, procuraram o Irib para informação e capacitação técnica e para nos dar um testemunho valioso de que, apesar das deficiências notadas na visita que fizemos ao Estado, ainda assim os serviços são prestados com a maior dedicação e zelo por profissionais que lutam contra o atraso e o sucateamento das atividades registrais. (SJ)

ENTREVISTA

Aproveitando a estada no Piauí para participar do Encontro de Juízes, Promotores e Tabeliães do Cerrado Piauiense, o presidente do Irib Sérgio Jacomino entrevistou a Dra. Fernanda Almeida Moita, presidente do Instituto de Terras do Piauí – Interpi, autarquia vinculada à Secretaria de Desenvolvimento Rural, responsável pela gestão do patrimônio público fundiário do Estado do Piauí.

SJ - Como a Senhora vê a situação da grilagem no Piauí? É um problema endêmico?

FAM - Está se tornando. Na minha primeira gestão frente ao Interpi, em 1995, já era um problema, mas não endêmico. O Cerrado Piauiense, onde está a maior incidência de grilagem, começou a ser explorado com o advento da soja, no início da década de 1990, quando surgiram os primeiros investimentos na região. Antes não havia muito interesse pelas terras do Cerrado. Com a demanda de terras para o plantio de grãos, começou também o processo especulativo, que foi crescendo de tal forma que, em menos de uma década, 1 hectare de terra passou de R$ 10,00 para R$ 600,00.

SJ - A Senhora acha que a especulação pode ter ocorrido pela falta de um estoque de terras regulares? Se não existe um estoque regularizado de terras, disponibilizado pelo Estado ou pela iniciativa privada, a tendência é a criação de fenômenos homólogos da legalidade estatal, como a grilagem e um mercado selvagem de terras...

FAM - Sem dúvida isso ocorre. O mercado é independente, encontra a sua forma de resolver os problemas. No Piauí, oitenta por cento das terras aptas para o cultivo de grãos são terras devolutas, isto é, não são matriculadas no patrimônio do Estado. É claro que o mercado não iria deixar de produzir soja, que é um negócio estupendo, num dos melhores cerrados do Brasil, que é o do Piauí, porque não havia terra disponível. As pessoas trataram de ocupar essas terras de qualquer maneira, e isso acabou gerando a grilagem de terras.

SJ – Nesse fenômeno, qual a participação dos cartórios?

FAM - Como especificam os relatórios das Correições Extraordinárias feitas pela Corregedoria-Geral da Justiça nos cartórios da região, “a afrontosa omissão do Estado”, especialmente nos últimos seis anos, colaborou enormemente para que isso acontecesse. Tenho razões para crer que, nesse mesmo período, houve uma operação desmonte do Instituto de Terras, que pode ter sido intencional. A sede do Interpi funcionava num prédio espetacular de dois mil metros quadrados, construído pelo Banco Mundial. Pois bem, em 1997, seis meses depois que saí do Instituto de Terras, houve uma mudança de prédio, desalojaram o Instituto de Terras para alojar um outro órgão, jogando o Instituto em um prédio alugado sem as mínimas condições de funcionamento. Nessa mudança perderam-se ou foram roubados todos os livros de registro fundiário do Instituto, extraviou-se toda a sua memória histórica do Instituto, tornando praticamente impossível, no curto prazo, um trabalho mais efetivo de combate à grilagem, haja vista que gastamos quase todo o ano de 2003 na reconstrução dessa memória e não chegamos nem à metade do que foi perdido.

SJ – A propriedade pública, terras devolutas do Estado, não se acha devidamente registrada nos registros de imóveis?

FAM - Está. Só que os livros que se perderam são livros de registros fundiários do Interpi, isto é, livros onde estão inscritos os títulos de terra concedidos, constando a característica do título, quem é o donatário, a data em que foi expedido etc. Pois bem, como tudo isso foi perdido, ficou mais fácil a falsificação de assinaturas para confecção de títulos frios utilizando o número do registro fundiário de outros títulos. Em outras palavras, existem hoje, sendo comercializados pela grilagem, diversos títulos de terra, especialmente os títulos definitivos, para um mesmo número de registro fundiário, onde apenas um é legítimo. Já estamos recuperando essa memória, abrindo processo por processo, lançando no computador essas informações, tentando construir um novo Livro, só que dessa vez em meio digital.

SJ - Esse livro de registro de terras fundiárias era feito com base em decisões judiciais em ações discriminatórias?

FAM - Não. Trata-se de um livro interno, de registros do Instituto de Terras, que controlava os títulos de terras emitidos. Os títulos são emitidos em cima de terras já matriculadas em nome do Estado.

SJ – A concessão de títulos não era registrada nos cartórios de Registro de Imóveis?

FAM – Sim. Só que não era possível ter esse controle porque geralmente registramos o loteamento, o registro individual de cada título fica por conta do donatário, que em alguns casos não providencia o registro. Com o advento dos créditos para a agricultura familiar, esse quadro reverteu um pouco porque para  ter acesso a esses créditos o trabalhador precisa fazer o registro do seu título no cartório de registro de imóveis.

SJ - Como a Senhora avalia o funcionamento dos cartórios no Piauí?

FAM - Extremamente precário. Existe uma profunda desinformação e desqualificação do corpo de serventuários. E falta informatização. Segundo a lei, para ser tabelião é obrigatório possuir nível superior, o que não acontece com muitos titulares de cartórios no Piauí. Eu diria que é caótica a situação dos cartórios no Piauí.

SJ - Na sua avaliação, a que se deve essa deficiência infra-estrutural?

FAM – Tenho a impressão de que não se respeita muito essa profissão e entregam essa atividade às pessoas por critérios políticos ou de amizade, ou de tradição familiar... Enfim, parece que última coisa que se observa é a Lei ou o critério técnico.  Existem os cartórios que são ligados ao Poder Judiciário e aqueles que são particulares. Penso que o Poder Judiciário deveria privatizar 100% desses cartórios e investir todo o seu esforço na fiscalização e supervisão dos mesmos, junto com a sociedade, por meio de um programa disque denúncia ou outros canais democráticos para a população se manifestar. Ou seja, a opinião do usuário seria um termômetro para a fiscalização da Corregedoria-Geral, podendo esta última cassar a delegação caso o cartório não atingisse os padrões de qualidade exigidos – ou caso as irregularidades fossem graves. Me parece que cartórios estatizados são um atraso para o bom andamento da Justiça!

SJ - O problema da estatização acaba tracionando os cartórios à atividade judicial. Os serviços notariais e registrais são o outro lado da moeda da segurança jurídica: atuam preventivamente prevenindo litígios e conflitos. As atribuições de cada são muito específicas. O cartório deveria funcionar como um elemento que pudesse prevenir os litígios. O que a Senhora pensa a respeito?

FAM – Os cartórios estatizados ficam esperando que a Corregedoria invista neles com recursos de informatização, em capacitação de pessoal, etc. Como é muito grande a incidência de cartórios nesse estado caótico e o Tribunal não tem os recursos necessários para investir em todos eles, acaba ficando tudo como está e quem perde é a sociedade.

SJ - Sobre as fraudes cometidas no Piauí, a Senhora identificou se estão ocorrendo nos cartórios?

FAM - Também estão. Há muitas irregularidades cometidas em cartórios que são apontadas nos relatórios da Correição Extraordinária realizada em 2001 no sul do Estado.

SJ - O que o Instituto de Terras está fazendo para regularizar essas terras? A idéia é conceder títulos para produtores rurais?

FAM - Estamos com três frentes de trabalho. A primeira delas é recuperar os assentamentos que já estão implantados, cerca de cento e trinta e seis assentamentos em plena execução. A segunda é a regularização fundiária, isto é, regularizar a situação do posseiro que já está morando na terra matriculada em nome do Estado há muitos anos. São 1.200 hectares de terras ocupadas por posseiros que estão sendo regularizadas. Não se sabe se isso vai resultar na maior produtividade das terras, mas é possível que sim. Se essas pessoas tiverem um título nas mãos, presumo que terão também acesso ao crédito. Essa é a intenção. Claro que não vamos conseguir integrar 100% dessas pessoas no mercado, mas pelo menos 40% vamos conseguir. A terceira frente de trabalho do Interpi é o combate à grilagem para recuperar as terras públicas ao patrimônio estadual para disciplinar a ocupação dos cerrados com quem quer e pode produzir lá. A idéia é, unicamente, tornar o cerrado produtivo, respeitando as posses legais e o meio-ambiente, em benefício do desenvolvimento do Estado.

CARTA DE CRISTINO CASTRO

Imagem

Os participantes do Primeiro encontro de juízes, promotores, tabeliães dos cerrados do Piauí sobre o combate à grilagem de terras públicas, realizado nos dias 30 e 31 de outubro de 2003 em Cristino Castro,

considerando que a ocupação do Estado do Piauí deu-se, como em todo o território brasileiro, por meio de concessão de Sesmarias pela Coroa Portuguesa e que “no caso específico do Piauí as sesmarias depois de demarcadas e divididas, representam a caracterização do domínio privado reconhecido pelo Estado”[i]¹;

considerando que “as terras não demarcadas, existentes entre as Sesmarias demarcadas e divididas, representam bolsões de terras que não foram submetidas ao crivo da análise de legitimidade dos títulos de propriedade”[ii]²;

considerando que  no sudoeste e no extremo sul do Piauí, áreas de domínio dos cerrados piauienses, ocorreram poucas concessões de cartas de sesmarias (..)[iii]³ e, tendo em vista que estas terras não foram discriminadas e arrecadadas pois são devolutas, o que favoreceu e favorece a “grilagem” destas;

considerando que o título de propriedade que comprova o domínio da terra pelo particular deverá obedecer uma cadeia dominial que tem por título original primitivo: carta de concessão de sesmarias devidamente confirmada, expedida por um sesmeiro no intervalo de tempo compreendido entre 1676 e 1822 (precisamente 17.7.1822) ou decisão judicial exarada em processo de usucapião que tenha sua tramitação anterior ao Código Civil de 1/1/ 1917;

considerando que nos cerrados piauienses a grande maioria das terras é devoluta e jamais foi discriminada e que, portanto, grande parte das propriedades que se pretendem particulares na realidade estão localizadas em terras devolutas e conseqüentemente estão fundadas em títulos eivados de nulidade e sem qualquer valor jurídico;

aprovam, por aclamação, sejam encaminhadas, às instituições respectivas, as seguintes propostas:

1) ao Governo do Estado do Piauí, a imediata reestruturação do Instituto de Terras do Piauí-INTERPI, para que essa autarquia possa propor as ações discriminatórias necessárias para arrecadar as terras devolutas e integrá-las ao patrimônio do Estado;

2) à Corregedoria-Geral de Justiça, as providências necessárias ao cancelamento das matrículas e registros sugeridos pelo INCRA nos diversos ofícios encaminhados a ela;

3) ao Tribunal de Justiça e à Procuradoria-Geral de Justiça, a promoção, em conjunto, de cursos de capacitação para Juízes, notários, registradores e Promotores de Justiça a respeito da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/73) e suas alterações;

4) ao INCRA, a localização e restauração de microfilmes do acervo de todos os cartórios de Registros de Imóveis existentes no Piauí;

5) à Corregedoria-Geral de Justiça, providência administrativa visando unificar os procedimentos nos cartórios de Registros de Imóveis com o intuito de imprimir maior clareza, rapidez e eficiência aos procedimentos de registro de imóveis;

6) à Procuradoria-Geral de Justiça, firmar convênio entre o Instituto dos Registradores de Imóveis do Brasil - IRIB e o Ministério Público do Estado do Piauí, que terá por objeto o  intercâmbio de informações, realização de eventos conjuntos para formação e aperfeiçoamento técnico e científico dos Promotores de Justiça;

7) ao Tribunal de Justiça, a realização de concurso público para provimento dos serviços notariais e registrais (conforme dispõe o art. 236 da CF de 1988 e Lei 8.935/94)

8) ao Tribunal de Justiça, a criação das varas agrárias estaduais;

9) à Procuradoria de Justiça, a criação das Promotorias Agrárias;

10) ao Presidente da República, a criação das ouvidorias agrárias federais.

Cristino Castro, Gurguéia Park Hotel, 31 de outubro de 2003.



[i]¹ Coletânea de artigos do advogado e historiador Paulo Machado

[ii]² Idem

[iii]³ Idem 



Últimos boletins



Ver todas as edições