BE909
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REGULARIZAÇÃO EM ÁREAS DE PROTEÇÃO AMBIENTAL NO MEIO URBANO[i]1 - Laura Machado de Mello Bueno
O presente texto apresenta em primeiro lugar os instrumentos de proteção do meio ambiente, caracterizando especialmente os aspectos ambientais relacionados às áreas urbanas. São destacados os conflitos entre a preservação e conservação ambientais e a justiça social, especialmente o acesso à moradia e aos serviços urbanos. Ao final são apresentadas algumas diretrizes para integração entre as ações de regularização urbana e fundiária e a necessária recuperação da qualidade ambiental das cidades brasileiras.
Instrumentos legais de proteção ambiental
São instrumentos legais de proteção ambiental as unidades de conservação, as áreas de preservação permanente definidas pelo Código Florestal, a nível nacional, e as áreas de proteção de mananciais, delimitadas por lei estadual ou municipal.
A legislação brasileira (lei federal 9985/2000) consolidou os diversos instrumentos com diferentes objetivos ligados à preservação e conservação de bens naturais. Ela define dois tipos unidades de conservação:
Unidades de proteção integral (reservas biológicas, estações ecológicas, parques nacionais, monumentos naturais e refúgios da vida silvestre), onde se proíbe a existência de populações humanas. Estas áreas destinam-se exclusivamente à proteção da biota e pesquisa científica;
Unidades de uso sustentável (áreas de proteção ambiental -APA, áreas de relevante interesse ecológico, floresta nacional, reserva extrativista, reserva de fauna, reserva de desenvolvimento sustentável e reserva particular do patrimônio natural. Nestas unidades, sob forma de contrato ou concessão, nas áreas públicas pode ser permitida a presença de populações tradicionais e a exploração de recursos. Para isso a legislação exige uma lei específica regulamentando as atividades a partir de um Plano de manejo. Destaque-se que as APAs tem sido criadas com delimitações territoriais abrangentes, englobando em seu território atividades econômicas pré-existentes e mesmo, sedes de municípios.
A mesma lei definiu o conceito de Zona de Amortecimento, em torno das unidades de conservação, onde devem ser estabelecidas regulamentações específicas para minimizar o chamado efeito de borda, de atividades limítrofes à área protegida.
O Código Florestal (Lei federal 4771/1965 com últimas modificações na MP 2166-67/2001), considera de preservação permanente as florestas e demais formas de vegetação natural em locais determinados (faixas ao longo de cursos d’água, topos de morros, montes, montanhas e serras, encostas com declividade superior a 45 graus, ou 100%, restingas fixadoras de dunas ou estabilizadoras de mangues, bordas de tabuleiros ou chapadas, campos e florestas em altitudes superiores a 1800 metros). Modificação desta lei em 1978 definiu que ela passava a vigorar em áreas metropolitanas definidas por lei. E outra modificação, em 1986, redefiniu a largura das faixas de proteção permanente dos cursos d’água[ii]2. O Código Florestal também prevê a possibilidade de supressão destas faixas por para ações de interesse público ou social, através de prévia autorização.
As áreas de proteção dos mananciais têm sido definidas para proteger, através do controle do uso e ocupação do solo, terrenos privados dentro de bacias hidrográficas de interesse regional para recarga de fontes de água para abastecimento público. Essa forma de proteção desenvolveu-se com o abandono da aquisição das áreas de mananciais, forma de proteção mais praticada no início da organização dos serviços de saneamento no Brasil (Bueno, 1994). No início do século XX a proteção se concretizava através da aquisição das terras pelo órgão responsável pelo abastecimento e fechamento para uso urbano ou mesmo, agrícola. A partir dos anos 30 esse modelo foi sendo abandonado. A expansão urbana ocorrida a partir dos anos 60 começou a comprometer o futuro do abastecimento em diferentes locais, optando-se pela definição de medidas restritivas ao uso e ocupação do solo dos terrenos privados, através de leis estaduais (Estado de São Paulo para a região metropolitana, por exemplo) ou municipais, ao invés da aquisição das terras. A legislação federal que criou a unidade de conservação APA, de 1981, cita claramente a proteção de mananciais como objetivo desta unidade de conservação.
Três casos
Apresentam-se a seguir alguns casos de conflito entre a legislação ambiental e as ocupações humanas, que podem fazer aflorar diretrizes para aprimoramento da gestão urbana ambiental e para a regularização urbana e fundiária.
Destacaremos esse conflito nas áreas urbanas, mas não podemos deixar de registrar o que vem acontecendo nas áreas rurais, notadamente nas unidades de conservação de grande dimensão, como parques nacionais e estaduais. No caso das unidades de conservação de proteção integral ou de uso sustentável, pode-se colecionar casos de conflitos, que a lei não resolveu, ou até acirrou, de comunidades tradicionais (como caiçaras, caipiras, índios aculturados ou quilombolas) que não tiveram seus direitos de vida digna reconhecidos, tornando-se, para os ambientalistas mais radicais, assentamentos ilegais inimigos da biota. Essas comunidades vem sendo removidas ou ameaçadas pela ação conservacionista. São tratadas como inimigos mais importantes até do que a política agrícola, com seu modelo de expansão da fronteira. A essas populações é negada assistência e investimentos que, segundo os argumentos conservacionistas, iriam descaracterizar a preservação dos bens naturais. Na prática, nega-se o valor da posse centenária das terras pela ausência de formalização. Comunidades inteiras e seus descendentes vem sendo expulsas das unidades de conservação, transferindo-se para novas favelas nas bordas destas áreas. Em outros casos, são abandonadas à própria sorte, sem assistência de saúde, educação, alimentos, com grande deterioração dos locais, à espera de sentenças judiciais.
Voltando o olhar ao ambiente urbano, gostaríamos de relatar três casos, um em Fortaleza, Ceará, outro em Jundiaí, Estado de São Paulo e o último em Campinas, também no Estado de São Paulo. A partir de sua apresentação, procuraremos apresentar alguns princípios para a regularização que articule justiça social e qualidade ambiental, ou seja, a regularização entendida como ação de recuperação urbana e ambiental.
Em pesquisa (LABHAB, 1999) sobre avaliação de obras de urbanização de favelas, estudou-se o Castelo Encantado, assentamento cadastrado como favela no município de Fortaleza, que recebeu investimentos do governo estadual. Foi removida uma área de risco – uma duna ocupada em frente à Praia de Iracema e o restante da área foi urbanizado, com introdução de saneamento ambiental, abertura de vias etc. Quando nos debruçamos sobre o caso, através de diferentes instrumentos de pesquisa, desvendaram-se outros aspectos. Constatamos que no local moravam pessoas há mais de 30 anos, bem como seus descendentes. Alguns dos moradores tinham como principal atividade econômica a pesca. De fato a favela fica em frente ao último local de atracagem da pesca artesanal em Fortaleza, e o último mercado de peixe da cidade localizado à beira mar. Na verdade, então, o que havia ocorrido era que a última aldeia de pescadores da área urbana de Fortaleza[iii]3 havia se adensado em condições urbanas e habitacionais precárias, precarizando os diretos de posse dos descendentes, incluídos agora no grupo moradores da favela. Esse processo possibilitou que alguns moradores fossem removidos do local por estarem em local de risco e interesse ambiental (duna). De fato, o local foi se congestionando, com a construção de novos barracos sem saneamento básico e nenhuma organização espacial. Hoje, para ir do Castelo Encantado à praia é preciso atravessar uma linha ferroviária e uma avenida. Na praia, outro conflito aflora. Em 1999, época da pesquisa, estava em construção junto ao mar (terras da marinha) um apart hotel, junto ao mercado de peixes. Os empreendedores e investidores estavam mobilizando a opinião pública para remover o local de atracagem e o mercado de peixe, devido ao incômodo e mau cheiro provocado pela atividade de pesca e comercialização.
Estudo elaborado por Pradella em 2002 documentou alguns empreendimentos imobiliários clandestinos em área rural e de proteção ambiental do município de Jundiaí, a 50 km de São Paulo. São encontrados justamente na zona de amortecimento da Serra do Japi. A Serra está protegida por instrumentos de preservação com diferentes perímetros: reserva biológica por lei municipal, tombamento por resolução estadual e APA por lei estadual. O zoneamento municipal define essa área como rural e o Plano Diretor a classifica com Macrozona de Proteção e Macrozona de Preservação Ambiental, em quanto a lei estadual da APA, como Zona de proteção da vida silvestre. O que causa espanto nestes loteamentos é o padrão socioeconômico dos moradores identificado a partir do padrão arquitetônico. São residências de alto padrão, geralmente com mais de 300 metros quadrados de área construída e piscinas em muitas das unidades. Alguns loteamentos são fechados ao público. Outro trecho do município, a bacia do rio Jundiaí Mirim, é protegido por lei municipal de mananciais. No zoneamento municipal a bacia é classificada como área rural em quase toda sua extensão, a exceção de alguns bairros rurais históricos. Mas há casos de venda de chácaras de recreio e condomínios horizontais para residência, através da venda de fração ideal de propriedades agrícolas. Fazendas e sítios se tornam pouco competitivos em lucratividade agropecuária, frente à atividade imobiliária para classe média e alta. Os empreendimentos são vendidos com sucesso, apesar de serem ilegais, sem condição de registro em Cartório de Registro de Imóveis.
Em Campinas, há 100 km de São Paulo, encontra-se outra situação de conflito entre a qualidade urbana e ambiental, relatada em trabalho do Laboratório da Habitat de 2000. O município de Campinas tem um milhão de habitantes, sendo a sede da Região Metropolitana de Campinas, recentemente criada pelo governo estadual. Loteamentos populares implantados no fim dos anos 50 deixaram como áreas públicas faixas à beira do córrego Taubaté, que deságua no rio Capivari. Alguns dos loteamentos existentes portanto, foram comercializados antes da aprovação do Código Florestal e da Lei Lehmann A montante deste ponto do rio Capivari, o município de Campinas retira água para abastecimento. A jusante Campinas lança o esgoto doméstico de cerca de sua população. Após a área urbana de Campinas, outros municípios usam a bacia do rio Capivari para abastecimento, retirando água de seus afluentes e para despejo dos esgotos, inclusive no rio principal. Estima-se uma população de 100 000 habitantes na bacia do córrego Taubaté, mas há ainda muitas glebas e loteamentos vazios, além de alguma atividade agrícola remanescente. Desde os anos 70 favelas vem ocupando as margens do córrego e outras áreas públicas. Em 1996 um loteamento privado irregular e ainda desocupado foi invadido por organização de movimentos de sem-teto, constituindo bairros precários, com cerca de 3000 moradias, chamados Parque Oziel e Monte Cristo. A ocupação (denominação regional de invasão de terras particulares) está situada nas nascentes, próxima à Rodovia Anhanguera, em um dos principais acessos de Campinas, entroncamento com a estrada de Indaiatuba e a estrada Santos Dumont, que dá acesso ao Aeroporto Viracopos e a Sorocaba. Adiciona-se à complexidade da situação socioeconômica e fundiária, um aspecto geotécnico que agrava as condições de risco de vida e perdas materiais. A área apresenta preponderância de solos de arenito, muito suscetíveis à erosão. Mesmo se este córrego estivesse em área com biota totalmente preservada, ele mudaria seu curso todo ano, após as chuvas de verão, pois suas margens, e de seus afluentes e nascentes, erodem e solapam por serem de areia. Assim, trata-se de impasse – sem obras de estabilização das margens do córrego, drenagem e pavimentação, as famílias moradoras (legal ou ilegalmente) tem sofrido perdas de vidas e materiais. Mesmo se as pessoas que moram em faixa non aedificandi ou nas faixas da área de preservação permanente forem removidas, o processo erosivo continuará.
Política ambiental urbana
Quando discutimos a política ambiental em área urbana devemos lembrar que “Toda cidade, mas especialmente as grandes estruturas ambientais urbanas, apresenta intensas relações com regiões mais amplas (poderíamos comparar com o conceito de ecossistema), sejam elas os eixos de ocupação humana (as regiões econômicas), sejam as áreas de suporte à produção de energia, alimentos, disposição de resíduos e outras demandas urbanas. Ao mesmo tempo, a qualidade do ambiente urbano – em seus aspectos funcionais, sanitários e estético-culturais - está diretamente relacionada à qualidade da vida humana”. (Bueno, 2001: 1).
Nossas cidades são resultado de nossa estrutura social, caracterizada por diferentes condições de vida e de acesso a serviços e equipamentos urbanos. Historicamente nosso ambiente construído apresenta uma urbanização incompleta – bairros sem pavimentação com erosão (causando assoreamentos dos cursos d’água e dificuldades de acesso aos sistemas de transporte e outros serviços), lançamento de esgotos nos cursos d’água pelos próprios sistemas de afastamento de esgotos domésticos, coleta de lixo parcial e com disposição final inadequada, inacessibilidade à moradia digna, com a formação de assentamentos precários e irregulares.
Quanto às ilegalidades, nos assentamentos precários de interesse social têm-se conflitos quanto à:
posse do terreno (casos de invasão e grilagem);
parcelamento e edificação em terrenos de uso ou edificação proibidos - área de uso comum do povo, beira de córrego, alta declividade;
parcelamento e ocupação do solo diferentes da legislação vigente - dimensão dos lotes, vias, índices e, por fim,
em relação à própria edificação: uso misto em zona estritamente residencial, materiais, dimensão, ventilação, iluminação.
A experiência mostra que nem tudo o que é irregular é precário. Muitas das situações de segurança, salubridade e conforto que as exigências legais tem por objetivo garantir são alcançáveis através da execução de obras de infra-estrutura urbana, especialmente drenagem, redes de água, redes de esgoto e viabilização da coleta de lixo. Verificam-se muitas situações, especialmente em relação às moradias e estrutura do parcelamento, que são adequadas e tem sido aproveitadas e mantidas no processo de urbanização. Os impactos ambientais e sanitários decorrentes de grande número destes assentamentos são resultado, sobretudo, da ausência de infra-estrutura urbana.
Tendo como referência os casos apresentados, deve-se ter em conta que a regularização urbana-ambiental precisa ser entendida com uma ação com dois objetivos integrados, de promover a recuperação da qualidade ambiental e, ao mesmo tempo, das condições de vida. O entendimento de justiça social torna obrigatória a diferenciação da violação da lei por opção da violação por necessidade, quando então se configura a situação de interesse social. Segundo Alfonsin[iv]4, justiça social na visão contemporânea engloba duas dimensões de direito que podem ser vinculadas às condições de vida urbana e de qualidade da moradia – igualdade e diferença. O direito à igualdade significa que todo cidadão tem direito à cidade, à moradia digna e ambientalmente saudável. O direito à diferença significa que deve haver respeito à produção cultural e social do habitat, com a flexibilização dos padrões e regime urbanístico.
Assim, na escala intra-urbana, a complementação da urbanização dos assentamentos precários, sua integração ao sistema urbano e sua regularização deve ser entendida como um instrumento de recuperação ambiental, através do qual se promove a justiça social. Isso somente se configura quando há vinculação entre o interesse social (características socioeconômicas e culturais das populações beneficiadas) e o interesse público (garantir um ambiente saudável).
Conclui-se que os casos de irregularidade urbanística, fundiária e dano ambiental causados por assentamentos que não foram promovidos pela necessidade, mas pela presunção de impunidade, devem ser tratados de forma diversa quanto à aplicação de penalidades e quanto à inversão de recurso financeiros do poder público em ações de recuperação urbana ambiental.
A qualidade do ambiente na área urbana está vinculada à recuperação da qualidade da água, do ar e do solo; ao controle e diminuição de lançamentos de resíduos (esgotos, lixo, poluição difusa na rede de drenagem); controle das inundações através do aumento da permeabilidade e da retenção de água de chuvas intensas; e o aumento das áreas verdes (ilhas de calor). As áreas verdes são ambientalmente importantes não só nos interstícios urbanos, configurados por jardins, quintais, áreas livres e de lazer, mas também na configuração de um cinturão verde entre áreas urbanas, composto por áreas rurais e de lazer, de maior permeabilidade e por unidades de conservação.
Na atualidade observa-se uma atualização dos paradigmas do urbanismo e da engenharia urbana, em função da situação ambiental mundial. Em escala mundial desenvolvem-se pesquisas visando quebrar o monopólio do uso de combustíveis fósseis, voltando-se para soluções que diminuam o lançamento de poluentes e o aquecimento global. Nas cidades brasileiras vive-se um impasse em relação à opção (macroeconômica) pelo automóvel e a decorrente degradação ambiental (congestionamentos e poluição do ar) e a falta de recursos financeiros para a melhoria da oferta de serviços públicos acessíveis e de qualidade. Notadamente, em relação à produção de resíduos, está consagrada (no meio científico) a necessidade de modificação dos processos industriais e do comportamento social, em direção à redução, reutilização e reciclagem. Esses conceitos têm sido utilizados não só para o tratamento dos resíduos sólidos, mas também para a própria água (Cunha, 2003). Propõe-se o uso racional, tendo sido desenvolvidos equipamentos que utilizam menor quantidade da água e incentivos à sua adoção, a reutilização da água, notadamente na atividade industrial. Verifica-se também a pressão da sociedade para a construção de ETEs em nossas cidades.
Na área de drenagem urbana, formulam-se dispositivos para promover a contenção das águas pluviais na cidade existente, em estruturas construídas e adoção padrões com maior permeabilidade nos lotes e pontos estratégicos do sistema de drenagem, como forma apropriada de controlar os picos de cheia causados por chuvas intensas. Essa postura começa a se contrapor à visão convencional de transferir o pico de cheia para jusante de aumentar a vazão dos canais de drenagem, sobretudo através da retificação e canalização dos cursos d’água. O urbanismo contemporâneo volta-se à valorização da presença da água no meio urbano, ao invés de aceitar (ou até induzir) as soluções de engenharia urbana de enterramento de córregos e nascentes.
A aplicação em área urbana de instrumentos legais relacionados aos fundos de vale (áreas non aedificandi da Lei Lehmann em projetos de parcelamento e as faixas ao longo de cursos d’água em áreas metropolitanas do Código Florestal) produziu um grande número de situações em que essas áreas, doadas ao poder público municipal como áreas verdes e de lazer, constituíram-se em terrenos baldios paulatinamente invadidos por pessoas pobres como vimos em caso apresentado. Vistas até os anos setenta como situação temporária, as favelas foram transformando seus barracos em casas de alvenaria e passaram a receber obras de urbanização. Muitas destas áreas apresentam trechos justamente dentro destas faixas junto aos córregos. As obras para resolver as perdas de vida e materiais com enchentes (estabilização de margens, canalização e aterramento de margens) têm sido incluídas nas ações de urbanização, concretizando conflitos entre a ação e o texto legal.
Portanto, essa complexa situação do ambiente urbano contemporâneo, em especial em cidades como as nossas, que ainda apresentam os problemas de risco sanitário pela ausência da universalização do saneamento ambiental, requer, portanto um grande número de ações estruturais inovadoras, além de conscientização e educação ambiental.
Para a execução destas obras de complementação e readequação da infra-estrutura urbana, observem-se as dificuldades administrativas decorrentes do texto da MP 2166-67 de 2001, que modifica e acresce artigos ao Código Florestal: “artigo. 4o. A supressão de vegetação em área de preservação permanente somente poderá ser autorizada em caso de utilidade pública ou de interesse social, devidamente caracterizados e motivados em procedimento administrativo próprio, quando inexistir alternativa técnica ou locacional ao empreendimento proposto. ... Parágrafo 2o. A supressão de vegetação em área de preservação permanente situada em área urbana dependerá de autorização do órgão ambiental competente, desde que o município possua conselho de meio ambiente com caráter deliberativo e plano diretor, mediante anuência prévia do órgão ambiental estadual competente fundamentada em parecer técnico.”
Para a complementação da urbanização de nossas cidades para garantia de qualidade de vida e segurança sanitária, estas áreas próximas aos córregos e rios precisam receber estruturas de estabilização geotécnica e de drenagem, para controle de enchentes, de erosão, de poluição difusa e inibição de acidentes; equipamentos para afastamento (EEE) e tratamento dos esgotos (ETE); remoção periódica de resíduos sólidos; pontes para veículos e pedestres. Essas mesmas áreas, quando se consegue impedir o lançamento de esgotos domésticos, tornam-se valorizadas para área de lazer, esportes e verdes de acesso público. Essas demandas eminentemente relacionadas ao ambiente urbano tem causado conflitos com interpretações de que nas cidades deve-se promover a reintrodução de matas ciliares semelhantes ao habitat natural anterior à ocupação humana.
Vê-se como adequada a discussão promovida pela ANAMMA (ANAMMA, 2002) sobre a conveniência de rever a forma de aplicação do Código Florestal na cidade existente e a iniciativa do CONAMA (MMA, 2002), de elaborar uma resolução que regulamente as ações de interesse social e ambiental em áreas urbanizadas.
Demonstrando a relação da cidade com estruturas regionais mais amplas, surgem recentemente indicadores da complexidade da questão do habitat humano e sua relação com a fauna. Desde os anos 50, portanto antes do Código Florestal, ocorreu no Estado de São Paulo a ampliação extensiva das atividades agrícolas sem a preservação de matas ciliares e reservas de habitat natural. A preocupação mais recente com a questão da preservação ambiental promoveu a criação ou valorização de parques urbanos com áreas de lazer, esportes e verdes de acesso público em diversas cidades envoltas de intensa atividade agrícola e, mesmo, da transformação destas áreas em empreendimentos imobiliários, com menor quantidade de áreas florestadas. A diminuição das reservas naturais acabou por praticamente erradicar algumas espécies, como os predadores da capivara, que, por sua vez, teve sua caça proibida. Verifica-se um fenômeno não previsto, que é a proliferação de capivaras, expulsas das matas ciliares retiradas pela agricultura e sua migração para estes parques urbanos. Em paralelo ao discurso idílico da convivência do homem com os animais, verifica-se a ocorrência da infestação de carrapatos em alguns locais. Um deles, cujo principal hospedeiro é a capivara, é o carrapato-estrela, transmissor da febre maculosa ao homem, doença que este ano, no Estado de São Paulo, causou letalidade em 50% dos casos. A doença é provocada pela bactéria Rickttsia rickettssii, transmitida ao homem pelo carrapato –estrela. Essa bactéria é encontrada na corrente sanguínea de animais silvestres e domésticos. A Prefeitura de Campinas está solicitando ao Ibama a remoção das capivaras de áreas verdes e parques da cidade, em função do risco à saúde pública. Segundo a Folha de São Paulo de 23/8/2003, “A circulação e permanência nos gramados e vegetação da lagoa está proibida”.
A proteção dos mananciais e o uso urbano
A existência de água em condições sanitárias adequadas à utilização para abastecimento humano está relacionada à manutenção das condições do ciclo hidrológico e impedimento de qualquer contaminação: a precipitação deve alcançar a cobertura vegetal, chegando à superfície sem provocar erosão, penetrar no solo e, através de lenta percolação, chegar aos lençóis freáticos e profundos que vão alimentar os cursos d’água e suas nascentes. Para isso é necessário manter permeabilidade do solo sem deixa-lo exposto, evitar concentração de escoamentos, evitar erosão e impedir lançamentos de poluentes. Essas condições são atingidas de forma mais eficaz (alta eficiência e baixo custo) através da manutenção da vegetação natural e manutenção áreas agrícolas, desde que com controle da poluição difusa por agrotóxicos e dejetos produzidos por animais. Portanto pode-se afirmar que o uso urbano (assim como o agro-industrial) não é desejável em áreas de mananciais. A proteção mais eficaz, conforme já se afirmou anteriormente, seria a constituição de áreas de preservação sem acesso ao uso humano nas bacias hidrográficas de interesse para abastecimento público de água.
Quando encontramos um assentamento precário em área de manancial já ocorreu o desequilíbrio do ciclo hidrológico e a contaminação da água. Por isso, ao se analisar a possibilidade de regularização de assentamentos humanos de interesse social em áreas de mananciais é necessário observar quais seriam os padrões aceitáveis (não desejáveis) para a continuidade do uso daquela fonte de água e manutenção do assentamento. Trata-se de analisar os custos e a viabilidade social e econômica de uma remoção, e o tempo para sua execução, comparando-se com o resultado para a qualidade e quantidade de água se as obras de recuperação forem executadas em prazo menor. Isso somente será verificado com o estudo da sub-bacia hidrográfica onde o assentamento está inserido e da viabilidade de melhoria da qualidade e aumento da quantidade da água através das obras de recuperação ambiental e adequação urbana em toda a unidade hidrográfica. A recuperação da qualidade e quantidade será resultado do aumento da permeabilidade do local e, sobretudo, da construção de estruturas de contenção e infiltração, ações para controle da erosão e do impedimento de lançamentos de poluentes (por fonte pontual ou difusa) no sistema de drenagem. Trata-se não só de controlar o escoamento superficial e diminuir a velocidade e a quantidade de água, mas, sobretudo, controlar a qualidade. A poluição difusa é nosso maior vilão, inclusive pelas dificuldades de controle dos contaminantes - poeira de desgaste de pneus, lixo lançado na via pública, como “bituca” de cigarro, uso de agrotóxicos em paisagismo, lançamento de dejetos químicos na drenagem. Isso significa que deverá haver um cuidado muito maior no aspecto do comportamento da população moradora da área da sub-bacia. “A política e o discurso setorial – água é uma coisa, habitação é outra, fiscalização não é assunto de plano, a legislação ambiental não pode permitir a regularização de invasões – não dão conta de encontrar saídas. ... A gestão urbana ambiental caucada no favor, no privilégio e na arbitrariedade tem como instrumento a regulamentação detalhista, restritiva e abstrata em relação à situação real de nossas cidades, mas com uma regulamentação sem fiscalização, lançando os mais pobres na ilegalidade, os mais favorecidos nos caminhos da burla e da corrupção, pela aplicação arbitrária das leis”(Bueno, 1998: 58). A partir deste entendimento, afirma-se que a ação regularização/recuperação deverá ser monitorada e fiscalizada visando continuamente auferir os resultados do processo de recuperação. Assim é fundamental relacionar obras de urbanização à compensação ambiental e recuperação das condições de produção e de qualidade do manancial.
Propostas para a regularização urbana e a recuperação ambiental de interesse social
Como contribuição, apresentam-se a seguir algumas ações que vem sendo implementadas para o equacionamenteo de tão complexo problema urbano, que em nosso entendimento terão maior eficácia se aplicadas de maneira ampla, constituindo-se então uma verdadeira política nacional de recuperação urbana e ambiental em áreas urbanas consolidadas:
Acompanhamento pelo Ministério Público das ações do Executivo Municipal, definindo-se em Termos de Aditamento de Conduta por sub-bacia hidrográfica as responsabilidades dos diferentes atores e agentes da irregularidade – ex-proprietários, poder público com poder de polícia sobre o uso do solo na área e a associação de moradores beneficiada;
Deve-se exigir obras de adequação urbana e recuperação ambiental para a regularização fundiária (para que não se corra o perigo de formalizar titulação sem viabilizar recursos para obras);
Exigência de delimitação das áreas em regularização como ZEIS/AEIS, como forma do poder público municipal (legislativo e executivo) formalizar interesse e compromisso pela regularização e de Plano de gestão da ZEIS/AEIS aprovado pelo Executivo (execução de obras, registro e manutenção urbana) para formalização das titulações;
Em assentamentos precários não contínuos à mancha urbana existente, exigência de Parecer do orgão público responsável por saneamento ambiental e transporte público sobre adequação e viabilidade de atendimento;
Apresentação de projeto urbanístico em meio digital, de forma a aprimorar e modernizar a gestão municipal;
Apresentação de cadastro das famílias e das edificações a regularizar, com envio dos cadastros aos setores responsáveis por fiscalização de políticas sociais (interesse social) e uso, ocupação do solo e tributação;
Em áreas de proteção dos mananciais, exigência de monitoramento do impacto das obras de adequação urbana e recuperação ambiental em relação a permeabilidade e controle da poluição difusa;
Aprimoramento e aprovação de resolução do CONAMA com explicitação de critérios para tratamento das áreas de preservação permanente em área urbana para fins de interesse social, definindo-se procedimentos para regularização de assentamento precários.
Referências Bibliográficas
ALFONSIN, Betânia, palestra no Seminário de Regularização Fundiária, organizado pelo Instituto de Registro Imobiliário do Brasil e o Ministério Público do Estado de São Paulo, São Paulo, julho de 2003.
ANAMMA, Associação Nacional de Municípios e Meio Ambiente “Ata do 4o. Encontro Regional/sudeste da ANAMMA”, São Carlos, ESP, 31/7/2002
BUENO, Laura Machado de Mello, “Projeto e Favelas: metodologia para projetos de urbanização”, tese de doutorado apresentada à FAUUSP, São Paulo, 2000.
- “Gestão Ambiental Urbana: o que e como fazer ?” Palestra na Faculdade de Saúde Pública da USDP, São Paulo, Setembro de 2001
- “O saneamento na urbanização de São Paulo”, dissertação de mestrado apresentada à FAUUSP, São Paulo, 1994.
- “Proteção de mananciais: porque regulamentação e gestão não andam juntas?” IN Cadernos Técnicos AUT n. 4, Departamento de Tecnologia da Arquitetura da FAUUSP, São Paulo, 1998.
CUNHA, Marcos, “Reuso da água”, Anais do Seminário Água no Meio Urbano, PUCCampinas, Campinas, no prelo, dezembro de 2002.
L’HABITAT - Laboratório do Habitat da FAU PUCCampinas, “Plano de Ação para Recuperação sócio-ambiental de Bacia Hidrográfica Urbana: Estudo do caso do córrego Taubaté – Campinas, SP”, CD ROM dos Anais do Seminário Internacional Gestão da Terra Urbana e Habitação Social, Campinas, dezembro de 2000
LABHAB/FAUUSP - Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos do Departamento de Projetos da FAUUSP, “Segundo relatório da pesquisa Parâmetros para urbanização de favelas”, FAUUSP, xerox, 1999a.
LABHAB/FAUUSP - Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos do Departamento de Projetos da FAUUSP, “Relatório final da pesquisa Parâmetros para urbanização de favelas”, 1999b.
Ministério do Meio ambiente, Conselho Nacional do Meio Ambiente, “Proposta de resolução – dispões sobre parâmetros, critérios e explicitações técnicas para áreas de Preservação Permanente em área urbana consolidada – proc no. 02000.001362/2002-13”, www. Mma.gov.Br
PRADELLA, Décio, “Estudo das condições da interface entre as áreas urbanas de Cabreúva e Jundiaí e a Serra do Japi” trabalho final apresentado no Curso de Especialização Desenho e Gestão do território Municipal, PUCCampinas, 2003.
[i][1] Esse texto baseia-se em palestra apresentada na Sessão Temática sobre regularização em áreas de proteção ambiental no Seminário Nacional de Regularização Fundiária Sustentável, promovido pelo Ministério das Cidades, em Brasília, a 28 e 29 de julho de 2003.
[ii][2] As faixas são: rios com menos de 10 metros de largura – faixa de 5 para 30 metros; de metade da largura para os rios entre 10 e 200 metros, para 50 metros de faixa para rios entre 10 e 50 metros de largura, de 100 metros de faixa para rios que tenham de 50 a 100 metros de largura e de 150 metros de faixa para rios que tenham de 100 a 200 metros; e para os rios com largura superior a 200 metros, faixa igual à sua largura.
[iii][3] Conforme o relatório da pesquisa LABHAB, 1999: 9), “...trata-se de antiga vila de pescadores com poucas famílias, onde todos se conheciam. A ocupação se expande pôr influência do porto do Mucuripe em meados da década de 50, com a migração de pescadores de outras áreas do estado e do nordeste do país...e um loteamento clandestino ...foram vendidos terrenos na parte superior da duna”.
[iv][4] Alfonsin desenvolve o paralelo sobre cidade e moradia a partir da proposição de Boaventura Sousa Santos
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BE 5737 - 16/12/2024
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