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Segurança jurídica e o valor da jurisprudência - Ricardo Dip


1. Desde a célebre obra com que López de Oñate, em meados do século XX, firmou a idéia de que a crise do direito é antes uma crise de segurança — ou, por outro ângulo, de certeza —, tornou–se tópica a afirmação de que uma crise jurídica não é preferencialmente uma crise de justiça. Não que possa estar a crise do direito inteiramente alheia de algum desprezo da busca da res justa. Compreendeu–se, porém, que sem segurança jurídica não se pode cogitar de uma justiça estável.

Designou–se como crise algo que seria melhor nomear como uma situação. A crise — veio lembrar–nos com excelentes razões o excelente Romano Amerio — é um fato pontual, não um fenômeno diacrônico. Algo que é um kairós, não uma continuidade. Mas, enfim, há termos que são da moda. Pois, também o adotemos (com perdão…).

O fato aqui relevante é que se segue falando em crise do direito como fenômeno de falsa antinomia entre uma aparente persecução incessante — mas lastimavelmente incerta — de uma res justa que ora não vem sinalizada por critérios objetivos, ora se busca à margem de segurança. Pensa–se combater o direito de escravos — extraível do kantismo — por um direito de deuses (seculares, bien sûr…), inspirado em outros devaneios iluminísticos e pós–iluministas: ao fim, o vudú do direito primitivo guarda hoje certa correspondência com o simples poder de normatividade.

2. O direito não pode ser objeto da virtude da justiça e, ao mesmo tempo — e, por certo, sob o mesmo aspecto — ter a justiça como fim. Da mesma sorte, quando se pensa que a saúde é o objeto da medicina, ninguém concluirá que o fim da saúde é a medicina.

 É preciso reencontrar a noção de bem comum, como fim do direito. Só a partir dessa visualização, cabe compaginar justiça e segurança jurídica, confirmando–se a proclamação de Le Fur, quando, em 1937, na abertura dos trabalhos da terceira sessão do Instituto Internacional de Filosofia do Direito e Sociologia Jurídica, advertiu que o bem comum e a justiça não são verdadeiramente antinômicos, senão que constituem, antes, les deux éléments, les deux faces du bien commun ou de l’ordre public.

3. Não se poderia, não se saberia apreender adequadamente o bem comum sem percepcioná–lo à luz da rerum natura e da natura rei, como salientou não faz muito Vallet de Goytisolo, até chegar a aquela misteriosa luminosidade obscura que ao tempo em que se capta e escapa, que ao evadir, compreende–se, que se intui e então refoge, que se lê arduamente como lex naturae porque impera como lex aeternae. O bem comum que conclama a instituir a paz na cidade dos homens, só se pode executar por meio de um projeto concretizável humanamente. Essa concreção — que consiste em estabelecer a tranqüilidade na ordem — exige inevitavelmente a lei humana e sua compreensão, interpretação, integração e aplicação. A lei humana lê — que lex pode provir de legere, isso já ensinava Suárez —, a lei humana — e por algo Platão a designava como lóVog — que deduz, sobretudo, os elementos permanentes da cidade, mas que, nesse prisma de razão se arrisca a deixar escapar seus elementos instáveis. E por isso lex, que também pode derivar de ligare — ainda na lição suaresiana —, obrigando–se às leis superiores, é indispensavelmente fruto da prudência, de modo que a lei humana, honesta e justa, conforme à natureza das coisas e ditada em ordem ao bem comum, é também, na conhecida lição das Etimologias de Santo Isidoro, amoldada aos costumes de cada cidade: secundum consuetudinem patriae. Está–se em busca do legislador que seja legisprudente, aquele, como disse Michel Bastit, que sabe fazer obra de justiça e de prudência, lendo, repartindo e obrigando.

4. Um estudioso norte–americano contou o número de palavras do Decálogo — por suposto, em versão inglesa — e encontrou o total de 297. Fez a mesma coisa com a Declaração da Independência dos Estados Unidos: 1.500 palavras. Por fim, contabilizou um decreto relativo à estabilização de preços do carvão no ano de 1959: 26.911 palavras.

A esses dados, acrescentou Nicolas Nitsch que os instrumentos jurídicos publicados em 1881 no Journal officiel, em França, se estendiam por 7.264 páginas. Cem anos mais tarde, esparramavam–se por 15.156 páginas.

O crescimento legislativo é vultoso em toda parte. A inflação legislativa difunde–se por todo o mundo, como que por um fenômeno de osmose.

E gera uma outra inflação: a do direito jurisprudencial. Uma e outra formam o gênero inflação jurídica. Por direito jurisprudencial, cabe entender — em perdurável acepção, reafirmada por Lombardi — a jurisprudência doutrinária e a jurisprudência dos tribunais.

O problema desborda o plano da mera quantidade de normas, de doutrinas e decisões. A avulsão de regras termina por afetar uma possível unidade de sentido no direito jurisprudencial. O que, para mais, sofre não raro o influxo de um outro complicador: a polarização dos órgãos decisórios.

5. Em toda parte, o campo do direito registrário e do direito notarial — ou, se se admitir uma unidade formalizada, seu campo unificado — não ficou imune à crise de segurança provocada pela inflação jurídica.

No caso do Brasil, com duas agravantes específicas: a novidade de uma inscrição anfibológica de corte constitucional (art. 236, CF de 1988) e a federalização de uma normativa de regência (Lei n. 8.935/94) antes referida à atribuição legislativa de cada estado–membro.

Se, de maneira estendida, a pluralização de sentidos decisórios tem já o efeito de afrouxar a força constritiva das regras jurídicas — contribuindo para a desvalorização da moeda legislativa —, tem ademais, no plano registrário–notarial, o conseqüente de frustrar uma desnvolução estável das instituições dos registros e das notas, em muito condicionadas à jurisprudência administrativa.

6. Parte do problema pode ser atenuada com a recuperação dos precedentes.

A documentação veiculada do direito jurisprudencial é costumeiramente fragmentária — difusão segmentada — e nisso submetida a um critério seletivo — não raro com matiz ideológico. Alguma vez se propicia a difusão do peculiar, do inédito, e outra vez a do que só tem fugaz importância num contexto político limitado: é o critério do espetáculo. Assim, uma sociedade do espetáculo (Guy Debord), um estado–espetáculo (Schwarzenberg) e uma lei–espetáculo (Nicolas Nitsch) reúnem–se agora com um julgado–espetáculo. Um julgado que brilha e se isola. Algo que tanto mais parece valorizável quanto mais incomum e enfocável pelo efeito mistérico da novidade.

A fragmentação e seleção dos precedentes implica não só uma possível desvirtuação do conjunto tradicional das decisões, mas importa ainda numa instabilidade hermenêutica. Uma das vantagens do alicerçamento seguro do direito jurisprudencial é de caráter argumentativo: diz respeito à chamada carga da argumentação: “um direito de precedentes é um direito de normas”, disse um autor de nossos tempos. A divergência — suposta a refutabilidade ínsita aos discursos racionais, que não constituem intuições de princípios — tem o ônus da contra–argumentação: seja no distinguishing, em que o precedente (i.e., a norma) é especificada na discrepância, seja no overruling, em que se rechaça de modo amplo o antecedente, a divergência é que reclama razões jurídicas em contrário da norma já estabelecida (Robert Alexy). Quando, entretanto, desaparece a possibilidade de afirmar–se uma doutrina legal — ainda que ela não se formalize como assento ou súmula, o que, de resto, não lhe é essencial —, todas as decisões passam a ter a mesma valoração originária, com que o precedente se vê destituído de força, implicando a ignorância da tradição e o robustecimento do nominalismo. É o epílogo do direito jurisprudencial.

7. A informática jurídica é um dos efetivos remédios possíveis para a conservação fiel e a recuperação das informações de direito jurisprudencial. Suposta a lealdade na estocagem de dados. Mais grave, com efeito, do que a fragmentariedade do direito jurisprudencial imposta pela mais vistosa limitação do papel, é a seletividade ideológica: “Dai–me uma revista de apoio e eu arruinarei vossa jurisprudência”.

É paradoxal que, ainda sob o império do efêmero — essa admirável expressão de Gilles Lipovetsky —, a informática, com a rapidez de transformações vertiginosas, seja, em contrapartida, possivelmente, a mais conservadora das invenções contemporâneas. Por algo, pois, entendemos de radicá–la na lógica magistral de Raimundo Lúlio, em pleno apogeu da Idade Média. Uma conservação útil, porque atualizável — mais significativamente: atuável.

8. O tratamento informático das decisões judiciário–administrativas paulistas em matéria de registros públicos e de notas é, pois, um remédio de extraordinário valor para a retomada da tradição.

Uma retomada acaso crítica, como a própria tradição — colimando o progresso — traz ínsita em seu conceito objetivo. O papel do progresso — disse Galéot — é preparar melhores tradições.

As decisões que se reúnem neste site são por certo de muita importância para os registradores e notários, advogados, promotores de justiça e acadêmicos, mas, induvidosamente, são ainda mais importantes para os juízes, cujo dever de estado é o de preparar melhores tradições de direito jurisprudencial. E essa tarefa passa pelo conhecimento dos precedentes.

Aplaudível, portanto, em toda linha, a obra do IRIB – Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, efetuada com o descortino do registrador Sérgio Jacomino.

* Ricardo Henry Marques Dip é Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo e Titular da Academia Paulista de Direito.



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