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CESSÃO DE CRÉDITO IMOBILIÁRIO E ALIENAÇÃO FIDUCIÁRIA DE BEM IMÓVEL OBJETO DE COMPROMISSO DE COMPRA E VENDA REGISTRADO - Alienação fiduciária de imóvel por possuidor indireto do bem
Ao se examinar a alienação fiduciária de imóvel que tenha sido previamente objeto de compromisso de compra e venda, devidamente registrado no competente Registro de Imóveis, deve-se analisar cuidadosamente o parágrafo único do art. 23 da Lei 9.514 de 20 de novembro de 1997. Este dispositivo legal trata do efeito possessório da alienação fiduciária sobre o imóvel, no momento em que se constitui a propriedade fiduciária.
A alienação fiduciária, no presente contexto, tem a finalidade de garantir Cédula de Crédito Imobiliário emitida pelo promitente vendedor em favor de terceiro investidor, cessionário do crédito originado do compromisso de compra e venda.
O art. 23, parágrafo único, da Lei 9.514/97 dispõe: “Com a constituição da propriedade fiduciária, dá-se o desdobramento da posse, tornando-se o fiduciante possuidor direto e o fiduciário possuidor indireto da coisa imóvel”.
É preciso interpretar a norma de acordo com a essência do negócio fiduciário e, principalmente, de sua finalidade, integrando-a sistematicamente num contexto em que a alienação fiduciária é realizada em garantia de outra operação.
A alienação fiduciária em garantia é um negócio que se caracteriza pela transferência da propriedade de determinado bem ao credor de uma dívida, a fim de garantir o devido cumprimento desta obrigação. Este direito de propriedade que é transferido ao credor tem natureza peculiar, na medida em que é resolúvel.
Ou seja, cumprida a obrigação do devedor, a propriedade resolúvel resolve-se, consolidando-se novamente nas mãos do proprietário original. O credor fiduciário tem, portanto, uma propriedade com característica ímpar, qual seja, sua limitação no tempo, extinguindo-se quando verificada uma condição resolutiva. Nas palavras de José Carlos Moreira Alves, “(...) o negócio fiduciário, em sua estrutura íntima, resulta da conjugação de dois contratos: a) de contrato real positivo, em virtude do qual se dá a transferência normal do direito de propriedade ou de direito de crédito; e b) de contrato obrigatório negativo, pelo qual nasce para o fiduciário a obrigação de, após, utilizar-se de certa forma do direito que lhe foi transmitido, o restituir ao fiduciante ou o retransmitir a terceiro.”[i]1.
Pela essência do negócio, percebe-se que a questão possessória não é fundamental para a caracterização ou definição do que seja alienação fiduciária. O que se veda é o exercício da posse direta pelo próprio fiduciário, pois se isso ocorresse não haveria a fidúcia, apenas transferência pura e simples da propriedade plena.
Por outro lado, pouco importa se o fiduciante exerce efetivamente uma posse direta, ou se permite que terceiro o faça. O parágrafo único do art. 23 da Lei 9.514/97 apenas dispõe a respeito do efeito ordinário da alienação fiduciária sobre a posse do bem, vedando ao credor/fiduciário o exercício da posse direta e conferindo ao devedor/fiduciante a prerrogativa de exercê-la, podendo fazer uso desse direito pessoalmente, ou autorizando terceiro a fazê-lo.
Este ponto fica ainda mais evidente quando se analisa a questão da possibilidade de alienação fiduciária de bem locado, em que o proprietário-locador tem apenas a posse indireta do bem, enquanto a posse direta está com o locatário. O imóvel locado pode ser alienado fiduciariamente, até mesmo sem se dar direito de preferência ao locatário, da mesma forma que ocorre com a hipoteca, conforme autoriza o art. 32 da Lei 8.245 de 18 de outubro de 1991. Na medida em que as partes visam, nestes negócios, apenas a garantir o cumprimento de obrigação por meio de um bem imóvel, o objeto (tanto na alienação fiduciária, quanto na hipoteca) não é primordialmente alienar o bem[ii]2.
Portanto, não há vedação legal alguma contra a possibilidade do locador, que tem apenas a posse indireta do imóvel, aliená-lo fiduciariamente para garantir obrigação contraída com terceiro. Aliás, seria ilógico supor que um imóvel locado pudesse ser alienado a terceiro, mas não pudesse ser alienado fiduciariamente. Se for facultado ao locador o poder máximo de disposição sobre um bem, que é a alienação plena, ainda com mais razão pode-se afirmar que ele pode dá-lo em garantia.
A mesma situação pode ser observada no caso do usufruto. O nu-proprietário de imóvel, que não tem a posse direta do bem, pode dispor do seu direito de propriedade, o que inclui a possibilidade de aliená-lo ou oferecê-lo em garantia. É evidente que o nu-proprietário pode dispor somente do seu direito de propriedade, que é caracterizado pelas delimitações impostas pelo usufruto, mas isto não significa que esse direito de propriedade é indisponível. O nu-proprietário de um determinado imóvel está legitimado a alienar fiduciariamente esse direito sobre o bem para garantir uma dívida, independente do fato de não exercer a posse direta sobre o imóvel, pertencente ao usufrutuário.
A impertinência da questão relativa à posse direta do bem pelo fiduciante fica ainda mais evidenciada quando se tem por objeto a fração ideal de terreno ou de imóvel em construção. Há situações em que o adquirente de imóvel, a fim de garantir o financiamento a ele concedido, aliena fiduciariamente a fração ideal do terreno, assim como a unidade autônoma a ela relacionada, a qual está sendo construída. Nessa situação, o fiduciante não tem a posse direta sobre o imóvel em construção, mas mesmo assim está expressamente autorizado a fazer a alienação fiduciária em garantia, ainda que também só exerça uma posse indireta sobre o bem.
Outro exemplo que poderia ser citado diz respeito à alienação fiduciária em garantia de bem de terceiro, fato bastante comum e pacificamente aceito pela jurisprudência. Muitas empresas utilizam equipamentos cuja propriedade é de terceiros, e podem perfeitamente contrair obrigações e garanti-las com a alienação fiduciária de tais bens, desde que, obviamente, o proprietário concorde com isso. Também nesses casos a posse direta do bem alienado fiduciariamente não é exercida pelo fiduciante, pois continuará a ser utilizado pela empresa, e nem por isso o negócio deixa de ser possível ou válido.
O fiduciante tem o direito de transferir a posse do bem a quem quer que seja. O que não pode ocorrer é o exercício da posse direta pelo próprio fiduciário, pois isso descaracterizaria o negócio ao se consolidar propriedade e posse nas mãos de mesma pessoa.
Na operação em que se faz a alienação fiduciária de um bem imóvel compromissado, o promitente vendedor transfere ao terceiro investidor a propriedade “residual” do imóvel. Ou seja, ele transfere ao terceiro um direito de propriedade caracterizado pela existência de limitações, direitos e obrigações decorrentes do compromisso de compra e venda.
Transfere-se ao fiduciário a propriedade então pertencente ao promitente vendedor, que já está afetada pela existência de compromisso de compra e venda registrado, da mesma forma que ocorreria na alienação fiduciária de bem imóvel locado ou cedido em usufruto.
Em um compromisso de compra e venda, as partes podem estabelecer livremente quem e em que momento haverá o exercício da posse direta por pessoa diversa do proprietário. Pode o promissário comprador entrar imediatamente na posse do imóvel, ou somente ser autorizado a fazê-lo quando terminar de pagar. Pode ainda o promissário comprador ser autorizado a alugar o imóvel desde logo, jamais exercendo a posse direta. Nenhuma dessas hipóteses modifica o direito de propriedade do promitente vendedor (que só se encerra com o cumprimento das obrigações assumidas no compromisso de compra e venda), nem serve de obstáculo à alienação fiduciária da propriedade residual.
Em síntese, no momento da alienação fiduciária efetuada para garantir a cessão do crédito originado do compromisso de compra e venda, o fiduciário tem conhecimento de quem exerce a posse direta sobre o bem, que usualmente é o promissário comprador, pois adquire a propriedade residual (também denominada resolúvel) do imóvel já reduzida aos contornos a ela dados pelo referido compromisso de compra e venda.
Um outro aspecto relevante que merece destaque diz respeito à própria tributação do negócio fiduciário. Ocorrendo a alienação fiduciária, o direito de propriedade do credor/fiduciário, sobre o imóvel dado em garantia, subordina-se a uma condição resolutiva, na medida em que ele fica condicionado ao adimplemento da dívida. No momento em que houver o cumprimento da obrigação (pagamento), o direito de propriedade do fiduciário resolve-se em favor do fiduciante, extinguindo-se a propriedade fiduciária. Por outro lado, ocorrendo o inadimplemento da obrigação principal, a garantia pode ser executada, na forma da lei.
Nesse contexto, de acordo com o §1º do art. 25 da Lei 9.514/97, o fiduciário deve fornecer ao fiduciante termo de quitação da dívida, sendo que o oficial do competente Registro de Imóveis, à vista deste termo, deverá efetuar o cancelamento da propriedade fiduciária.
Assim, a propriedade do bem, que antes era do fiduciário (sob condição resolutiva), volta para o fiduciante, não sendo necessário para tal ato o pagamento do imposto de transmissão inter vivos, mas somente os emolumentos referentes ao cancelamento da propriedade fiduciária.
Todavia, caso o fiduciante não cumpra com a sua dívida, a propriedade do bem dado em garantia consolidar-se-á nas mãos do fiduciário. Uma vez transcorrido o prazo para a purgação da mora pelo devedor e à vista da prova do pagamento do imposto de transmissão inter vivos pelo fiduciário, o oficial do competente Registro de Imóveis irá registrar na matrícula do imóvel a consolidação da propriedade em nome deste (art. 26, §7º).
Somente neste caso há uma efetiva transmissão da propriedade do imóvel dado em garantia e, portanto, há o pagamento do imposto de transmissão referente a este ato. Desse modo, a transmissão da propriedade fiduciária do imóvel objeto da garantia ao fiduciário, não é fato gerador do imposto de transmissão inter vivos. Contudo, a consolidação da propriedade deste bem nas mãos do fiduciário configura tal fato gerador.
Na situação concreta, duas coisas podem acontecer:
a) há o pagamento das obrigações assumidas no compromisso de compra e venda: nesse caso, a propriedade do bem imóvel volta para o promitente vendedor original, que será o responsável por lavrar a escritura definitiva ao promissário comprador, pagando-se apenas o imposto inter vivos nessa transferência;
b) não há o pagamento das obrigações assumidas no compromisso de compra e venda: nessa situação, a propriedade “residual” consolida-se nas mãos do fiduciário, que deve executar a garantia vendendo o bem, na forma da lei. Haverá o pagamento de imposto inter vivos duas vezes: no momento da transferência da propriedade plena ao fiduciário, e tão logo seja realizada a venda do bem a terceiros.
Conclui-se, portanto, que o art. 23, parágrafo único, da Lei 9.514/97 refere-se apenas ao efeito ordinário da alienação fiduciária, com o desdobramento da posse em direta e indireta. Não se trata de estabelecimento de requisitos para a constituição de alienação fiduciária, pois apenas confere-se uma prerrogativa ao fiduciante - a de ter o direito de continuar com a posse direta do bem mesmo tendo o seu direito de propriedade sido transferido ao fiduciário - e, ao mesmo tempo, determina-se que a posse direta do bem não fique com o fiduciário.
E, o que é mais importante, não se pode deixar de ter em mente que o que é objeto da alienação fiduciária é o imóvel já compromissado à venda, ou seja, faz-se a transferência da propriedade residual de titularidade do promitente vendedor. Da mesma forma que ocorre com imóveis locados ou cedidos em usufruto, o exercício de posse “direta” sobre esse direito é inviável, assim como não se pode falar em posse “direta” sobre fração ideal de terreno ou de unidade em construção, que igualmente podem ser objeto de alienação fiduciária.
São Paulo, 11 de agosto de 2003.
Carlos Eduardo da Costa Pires Steiner
OAB/SP 139.138
Michael Altit
OAB/SP 126.785
Eduardo Messias Altemani
OAB/SP 121.647-E
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