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O registro como instrumento de proteção das garantias jurídicas - Do aproveitamento econômico das coisas - José Augusto Guimarães Mouteira Guerreiro
1 – Em todos os Congressos de Direito Registral tem sido possível – e, designadamente, quanto aos temas tratados – conseguir chegar a um conjunto de conclusões que representam significativo contributo para o aprofundamento das questões e a resolução dos problemas emergentes das relações jurídicas privadas, das suas conseqüências econômicas e da necessidade das correspondentes garantias.
Mas é agora proposto, como 1º tema deste XIV Congresso, que centremos a nossa atenção no essencial papel que o Registro pode - e quiçá deva – desempenhar como instrumento de proteção das garantias jurídicas no aproveitamento econômico das coisas.
Ora, dada a vastidão do tema (e a necessidade de cada delegação a tratar sucintamente) - na comunicação da delegação portuguesa procuramos apenas focar alguns dos pontos que se afiguram merecer especial atenção e que passamos a enunciar. Assim:
1 – A certeza do direito constitui um princípio jurídico básico e constitutivo de todas as relações sociais, mormente das que exigem maior crédito, segurança, concórdia e consistência.
Neste sentido, cabe notar que, nas sociedades contemporâneas, em que a insegurança das relações faz vacilar a generalidade dos cidadãos, das empresas e dos próprios governos, é sentida com crescente intensidade a exigência da certeza do direito como alicerce que possa permitir consolidar, harmonizar e pacificar toda a coletividade.
Sendo esta uma constatação genérica, é indubitável que, neste âmbito da certeza jurídica, existem diversos graus de exigibilidade e de carência, mas notório é também que a múltipla circulação dos bens aliada à diversidade de formas pelas quais podem constantemente ser transacionados e sobre eles constituídos novos e complexos direitos, torna forçoso que se desenvolvam os mecanismos aptos (vocacionados) para garantir tais transações.
2 - Esta necessidade emerge ainda do que um ilustre Jurista chamou a desarticulação dos contratos, processados através de sucessivas massas de regras, de filiação histórico-cultural diversa, tendo-se originado esquemas conceptuais afinal desligados da efetiva realidade humana e social implícita na contratação.[i]1
Todas estas características da rápida (insegura) mas hodierna manifestação da vontade de todos os indivíduos, em geral e, em especial dos agentes econômicos, supõe – exige mesmo – que, para a sua credível concretização, se desenvolvam sistemas aptos para a publicação dos direitos, para sua definição e hierarquização, num foro jurisdicional, mas extrajudicial, precisamente para que as hipóteses de conflitualidade diminuam drasticamente.
Esta indispensabilidade verifica-se, em tese, quanto a todos os ramos do direito, mas não há dúvida de que é no tocante aos direitos sobre as coisas que fundamental e acentuadamente se comprova tal necessidade, desde logo pelas reconhecidas características do direito real traduzido primacialmente como poder direto e imediato sobre essas mesmas coisas e, depois, pela comum obrigação passiva universal que molda e completa a configuração tendencialmente absoluta deste direito.
Trata-se, assim, do ramo da ciência jurídica que no domínio do direito substantivo supõe – exige mesmo, sobretudo nos ordenamentos denominados romano-germânicos – uma instrumentalidade adjetiva que permita tornar efetiva a possível oponibilidade erga omnes que estruturalmente caracteriza a essência do direito real.
Sobre a sua importância – e fundamental relevo na economia – não nos alongaremos aqui, até porque tem sido objeto de importantes estudos e comunicações, inclusive por parte do nosso prezado Decano do Colégio de Registradores da Espanha[ii]2 . Basta que se recorde o que, a este respeito, ficou demonstrado.
3 – A faculdade de qualquer interessado poder conhecer a situação jurídica dos bens – e em especial dos imóveis - é, como todos sabemos, missão elementar de qualquer sistema registral que, no mínimo, deverá possibilitar a universal oponibilidade dos direitos reais.
Ao falar dos sistemas de Registro, não esquecemos que existem procedimentos de mera publicidade, conhecidos como de recording que nem sequer deveriam, em nossa opinião, ser considerados entre os sistemas registrais, visto que estes serão, apenas, os que produzem efeitos jurídicos – e não simples ficheiros, depósitos ou arquivos – que têm mera natureza administrativa e não podem conferir direitos.
É ainda necessário recordar que também as técnicas de simples segurança econômica – como é o caso dos seguros – não têm, evidentemente, quaisquer efeitos jurídicos, nem sobre os bens, nem no domínio da publicitação dos direitos reais.
Sabido, como é, que esta matéria não é compatível com uma vetusta publicidade da torre do campanário, nem tampouco jornalística, mas antes a que permite tornar efetiva a própria natureza intrínseca do direito real, tendencialmente oponível erga omnes, cremos que é necessário atualmente fazer esta pequena precisão: sistemas registrais serão apenas os que, como mínimo, tenham o denominado efeito de mera oponibilidade e, em sentido ainda mais rigoroso, os que permitam conferir aos cidadãos (e aos agentes econômicos) uma fé pública do direito inscrito.
Será, assim, lícito considerar que são estes últimos (de fé pública) os sistemas que, efetiva e concretamente, garantem a definida existência, eficácia e hierarquização dos direitos inscritos.
4 – O conhecimento exato, determinado e publicamente oponível da situação jurídica dos bens é suposto e pressuposto da própria tutela da confiança[iii]3 e da certeza do direito.
Dir-se-á, mesmo, que sendo o direito a negação do arbítrio, da inexatidão e da ilicitude o valor da certeza é (como se deve sublinhar) estruturante do seu próprio conceito[iv]4 e tem reflexos vários, que vão da tutela da boa-fé, [v]5 da verdade, da segurança e da intenção normativa [vi]6 à proibição da diminuição de garantias e de prejuízos ilegítimos.
A fidedignidade é também elemento da boa-fé, vetor indispensável na contratação e na elementar confiança – e suporte, mesmo à luz do direito comparado – de qualquer relação econômico-social.
É que todos os investimentos, “sejam eles econômicos ou meramente pessoais, postulam a credibilidade das situações “,[vii]7 sendo a confiança “o maior dos desiderata da vida jurídica e social “ [viii]8.
Afigura-se que esta necessidade de segurança jurídica está tão fortemente solidificada na Doutrina que nem haverá mesmo quem seriamente a conteste. E, dir-se-á até, face ao sumariamente referido, que a exigibilidade da confiança e da certeza são ainda valores mais imperativos quando as relações ocorrem – como atualmente é regra – no âmbito internacional, ou seja, quando se tocam ordenamentos jurídicos distintos e, além disso, os mesmos fatos e direitos em causa são por vezes dessemelhantes, como consabidamente acontece no domínio dos ius in re, e quando se trata dos imóveis.
5 – Sendo o Registro a instituição ao serviço do público estruturada e indicada para organizar e publicitar os direitos – as titularidades – dos imóveis (e dos móveis se dele forem passíveis) através da inserção dos fatos que geram tais direitos e a graduá-los eficaz e prioritariamente tem, por definição e efeito próprio, a segurança e garantia jurídicas, nomeadamente no que concerne às transações imobiliárias, como objetivo essencial.
O artigo 1º do Código do Registro Predial Português diz expressamente que o Registro se destina “a dar publicidade à situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comércio jurídico imobiliário”.
E este objetivo é, realmente, comum à generalidade dos países que dispõem de um Registro. Aliás, como ficou exaustivamente demonstrado nas teses e conclusões do XII Congresso Internacional de Direito Registral, mesmo aqueles países que ainda não dispõem de um sistema registral só teriam a lucrar, inclusive no tocante à sua vida econômica, se o instituíssem.
Sendo esta uma matéria não só sobejamente conhecida e tratada, como ainda facilmente demonstrável, será para nós supérfluo desenvolvê-la no contexto da presente exposição. Todavia, é propositado recordar que vivemos na chamada sociedade de informação que contribui para a economia aberta em que todos, acelerada e constantemente, intercambiam com todos. E terão de o fazer para se manterem social e economicamente capazes e atualizados.[ix]9
É sabido que a contratação eletrônica faz parte intrínseca desta realidade atual, tornando-se igualmente manifesto que a publicitação Registral é, então, o instrumento que permitirá fornecer os dados credíveis sobre a situação jurídica dos bens (em especial sobre as suas titularidade e encargos) e simultaneamente garantir que a negociação se faça com o necessário conhecimento sobre tal situação. Além disso, se efetuada obedecendo aos imperativos legais, podendo merecer favorável qualificação por parte do Registrador, poderá, outrossim, ter ingresso no Registro e conferir, então, os direitos que o próprio sistema consagre.
6 – Dissemos que a (crescentemente utilizada) contratação eletrônica carecia – até por definição da sua inerente instantaneidade – de acesso à publicidade registral como meio cognoscitivo da situação dos imóveis, mormente de suas titularidades e encargos.
Esta afirmação, contudo, não é verdadeira quando, no país de que se trate, vigore um Registro que assim, não se possa designar. E, dissemo-lo já, não é merecedor desta denominação qualquer simples ficheiro ou arquivo em que seja permitido introduzir tudo quanto se queira, sem qualquer idônea análise ou crítica isenta, tenha ou não validade substancial.Pretender-se-á, afinal, o quê? Contribuir para certeza do direito? Para a segurança do comércio jurídico imobiliário? Por certo que não. Seria tudo o contrário. Quem pensasse que o prédio era de A viria, depois, a ser surpreendido por ele ser de B. Tinha-se pressuposto que o prédio não tinha quaisquer ônus ou encargos e, afinal, descobria-se que só os exeqüíveis eram superiores ao próprio valor do imóvel.
Não precisamos de exemplificar muito ou sequer de desenvolver o tema para facilmente (e tendo presente a indispensável boa-fé) se verificar que a hodierna contratação eletrônica e demais meios técnicos – protagonistas dos novos tempos – tornam ainda mais premente e urgente a necessidade dos atos e contratos ingressarem num Registro digno desse nome. Ou seja, naquele em que se publicitam direitos, com os correspondentes efeitos de garantia, eficácia, grau prioritário, presunção de verdade e validade. E, para tal, indispensável é que os atos e contratos inscritos tenham sido submetidos ao devido controle da legalidade sobre a égide, responsabilidade, independência e autoridade própria do Registrador.
7 – Para que esta função possa ser cumprida é, pois, necessário que a competência, a alçada e a liberdade decisória do Registrador sejam pressupostos que não possam estar condicionados ou ser exercidos ao sabor dos interesses – sejam eles de quem forem, mesmo os que derivam do poder político, isto é, dos governos.
Nos sistemas democráticos os governos emergem de eleições disputadas entre os diversos partidos políticos e os que triunfam passam a assumir o governo. Como se sabe (e a experiência concreta confirma) vão pretender controlar a administração pública – o que, aliás, nem é de estranhar, já que esta passa a estar dependente de quem governa. Só que, no domínio dos direitos individuais, máxime os de propriedade – e demais de caráter real – nunca podem estar vulneráveis aos interesses de grupos e de partidos. Aliás, acham-se garantidos pela generalidade das próprias constituições. Isto é, trata-se de direitos cujas titularidades não devem ser alteradas ou comandadas pelo poder (v.g. político) – ou através dele – sob pena de nem sequer se pode falar de um Estado de Direito.
É igualmente manifesto que não poderá haver qualquer tipo de justiça, incluindo, nesta, o juízo de qualificação registral, que deva obediência ou esteja vinculada aos fins e interesses de qualquer tipo – sejam eles os partidários (de governos ou oposições), sejam os corporativos sejam os de quaisquer facções ou seitas[x]10.
Trata-se de uma verdade – que se crê elementar – mas que é por vezes ignorada, principalmente porque se confunde Registro com mero arquivo e a inscrição registral com um ato administrativo. Sendo um tema freqüentemente abordado, não será, no entanto, descabido recordar, uma vez mais, que tratamos de relações jurídicas privadas, de bens do domínio privado e, mesmo quando um dos intervenientes é o Estado, não deverá prevalecer-se do seu ius imperii, (como acontece no ato administrativo), mas antes figurar em pé de igualdade com os demais cidadãos. Até por isso, seria iníquo que se aproveitasse de quaisquer vantagens face às relações privadas individuais - incluindo as de natureza emolumentar – ou pretendesse, autoritariamente, que fosse inscrito um determinado direito individual à revelia do responsável pelo Registro.
É que a função qualificadora do Registrador, como a Doutrina tem entendido, “é bem mais própria dos atos de jurisdição voluntária e não participa da natureza do ato administrativo”. Logo, aquele não deve ser um mero serventuário administrativo, burocrata sujeito aos ditames de oportunidade do poder ou da conveniência administrativa. O Registrador tem de ser um julgador, um árbitro super partes, independente, detentor de um mandato social na sua área de jurisdição e a quem cabe uma parcela da função legitimadora do Estado, pelo que se lhe exige ser um jurista competente e especializado, responsável pelo atos que admite inscrever, de tal sorte que Registros possam constituir uma eficaz garantia dos direitos publicados com a inerente segurança jurídica.
Trata-se, como escreveram LACRUZ BERDEJO e SANCHO REBULLIDA de uma função que não sendo judicial (não lhe cabe decidir conflitos), no entanto “se exerce com independência semelhante, já que visa “incorporar, ou não, no Registro, uma nova situação jurídica imobiliária”[xi]11.
8 – A vida econômica em geral, demandando imediatas respostas em todas as sua conhecidas vertentes empresariais, jurídicas e sociais, exige hoje, até por parte do poder público, que as instituições lhe facultem mecanismos de eficaz garantia e controlo.[xii]12
A globalização dos mercados – ou mundialização, como igualmente se diz – surge como fenômeno incontível que requer prontos canais de informação e comunicação e de que o próprio correio eletrônico é apenas um exemplo.
Estes novas realidades supõem, em especial no nosso tema do direito imobiliário (de todo ele, incluindo as garantias contratuais sobre os bens), que o substrato jurídico da publicidade registral ofereça e forneça as credíveis respostas de que a atual situação carece. É que não há que contrariar o fenômeno – aliás, com aspectos proveitosos – da mundialização econômica e do comércio eletrônico. Há, sim, que o dotar de uma indispensável “segurança técnica e confiança jurídica” [xiii]13 pelo que ao Registro, visando precisamente tal segurança do comércio jurídico, designadamente imobiliário, cabe um relevante papel neste domínio, máxime no que toca às cauções e garantias reais. É óbvio que o interesse dos contraentes que queiram precaver-se-ão só de eventuais encargos sobre a coisa (que até se pretendam ocultar), como de que a sua própria garantia real venha a ter o esperado grau prioritário – não podem deixar de ambicionar que sistema de Registro lhes assegure o seu direito.
E este – por rudimentar que seja – tem exatamente esse objetivo. Logo, há que daí tirar as necessárias conseqüências, parecendo elementar que todos – juristas, governantes, agentes econômicos e demais responsáveis dos diversos setores e comunidades – reconheçam estas realidades, de sorte que possamos colaborar (sem menosprezar o capital de experiência jurídica dos próprios Registradores) no sentido de facultar aos cidadãos e à sociedade a necessária cognoscibilidade das situações jurídicas, bem como a definição, eficácia e hierarquização extralitigiosa dos atos celebrados e dos direitos constituídos.
O resultado não pode ser outro que não seja a concretização do império do direito[xiv]14 com o ideal comum da verdade e da justiça e, no caso, o maior crédito e avanço nas transações imobiliárias, o seu incremento, a diminuição da conflitualidade e, portanto, a desejável harmonização da vida social.
9 – Decorre do referido que, por antonímia com a interpretação desenvolvida, as situações imobiliárias passíveis de Registro, mas que nele não tenham ingressado, acabam por ser fonte de perturbação da transparência do mercado e de prejuízo para todos, inclusive para os próprios interessados diretos que apenas tenham titulado o direito – inclusive por via judicial – e não promovido, como deveriam, o correspondente assento registral.
De sorte que pensamos que devem ser incrementados os processos, tecnicamente eficientes, de confirmar a descrição de todos os imóveis no Registro, bem como de comprovar – ainda que por via indireta – que os direitos sobre os mesmos sejam objeto das respectivas inscrições. E assim se evitariam errôneas e abusivas situações, contribuindo-se, assim, para uma íntegra e fidedigna publicitação dos dados.
A vida econômica exige – e, como dissemos, este tema foi já amplamente estudado e demonstrado, - que se proporcionem adequados níveis de segurança e de caucionamento dos contratos, e, em geral, de todos os atos, se possível com baixos custos e menores encargos. Ora, tudo isto se obtém, em melhores condições, através das denominadas garantias reais que só subsistem (ou só subsistem eficazmente) [xv]15 se registradas.
10 – Acentuamos já que para a fiabilidade das transações imobiliárias, bem como para quaisquer cauções ou garantias sobre os imóveis (e móveis sujeitos a idêntico regime e quando o sejam) é indispensável que exista um Registro jurídico útil, isto é, gerador de efeitos concretos válidos, publicando titularidades - e não títulos - e, assim, tornando eficazes, definindo e hierarquizando os direitos inscritos com geral oponibilidade erga omnes.
Contudo, tal só é possível, nas condições descritas, após a prévia qualificação dos títulos – de qualquer espécie, pesem embora os legais limites[xvi]16 - fixando-se assim “a validade e eficácia do ato sujeito à inscrição” [xvii]17. E nisso estaremos todos de acordo.
Mas quanto à descrição e à composição do prédio?
São, a este respeito, diversas as posições: no que toca à alemã parece que, para certos efeitos (v.g. da usucapião) a presunção registral também se pode estender às indicações da descrição e “ampará-las, assim, a fé pública”.[xviii]18 No entanto, a descrição “não modifica a individualização do prédio” e as eventuais faltas carecem de importância para a verdadeira situação jurídica: os direitos reais recaem sobre o fundo – tal como é, e não tal como se tenha descrito[xix]19.
Quer dizer: mesmo num sistema tão vinculante (como é o alemão) a descrição dos prédios tem (fundamentalmente) tão-só importância referencial.
É a identidade do prédio o que releva, não tanto as indicações que a descrição possa conter. Ora, tal identidade poderá ser dada apenas por menções simplificadas – num absoluto extremo até através de mero número topográfico – pelo que não pode confundir-se a importância essencial da inscrição dos fatos como as referências à descrição do prédio.
Não queremos, como é óbvio, significar que se descure a atualização descritiva ou que se admita a inscrição respeitante a parcelas que excedam os limites fundiários. Nem tampouco que não se deva qualificar o pedido “reportado” à descrição do prédio ou ao modo como este é mencionado nos títulos.
Queremos, sim, dizer, que é útil, que é conveniente, e até importante, que todos os dados relativos às descrições prediais sejam conectados, apurados e referenciados conjuntamente com os elementos cadastrais, administrativos, ambientais, e até com os declarados nos títulos. Todavia, não será pelo fato de isso não se fazer que o sistema de Registro deixará de ter eficácia quanto aos direitos inscritos (sua missão essencial) – e, com isso, presta já a sua importante colaboração com todas as demais instituições, tais como as judiciais, notariais, administrativas, fiscais e cadastrais.
11 – Seja-nos relevado que terminemos as nossas reflexões citando a parte final de um importante trabalho sobre a moderna história do direito privado. Dizia FRANZ WIEACCKER: “Como todas as ciências, também a história do direito privado é uma doutrina, no vasto sentido artesanal – informação sobre o que outrora foi descoberto, a fim de que os vindouros possam evitar caminhos errados ou mais longos”. E a concluir, refletindo sobre as “condições fundamentais de uma civilística capaz” , acentuava que era necessária “uma consciência geral do direito desprovido de dúvidas, uma plena percepção e colaboração do conjunto da realidade social e uma metodologia segura que acerte o passo com o pensamento da sua época”[xx]20. Dir-se-ia ainda: com o pensamento e também com a prática de um Mundo em permanente aceleração e mutação, com a conseqüente necessidade de uma cada vez maior segurança jurídica.
12 – Resumindo as precedentes considerações, salientamos apenas as seguintes idéias como:
Proposta de Conclusões
1 – A certeza do direito constitui um princípio jurídico básico e constitutivo de todas as relações sociais: mormente das que exigem maior crédito, segurança, e consistência.
2 – Tais exigências verificam-se predominante e estruturalmente no domínio dos direitos reais, não só por atribuírem ao titular poderes diretos e imediatos sobre as coisas que deles são objeto, mas também por exigirem da coletividade um dever geral de respeito pelo correspondente exercício carecendo, pois, para a sua própria subsistência, de uma oponibilidade erga onnes.
3 – Os sistemas registrais são os instrumentos jurídicos que permitem concretizar essas predominantes características dos direitos reais e, além disso, publicitá-los, hierarquizá-los e torná-los eficazes perante todos.
4 – A mencionada certeza do direito é, outrossim, um valor essencial no domínio da contratação, do comércio internacional e da garantia das transações sobre quaisquer bens, designadamente sobre os imóveis.
5 – Também por isso o Registro – seja sobre os móveis quando a ele sujeitos, seja principalmente sobre os imóveis – como organismo público que é e que permite definir a situação jurídica de tais bens, continua a ser o meio que tornará possível assegurar os respectivos contratos, graduando e definindo os fatos titulados.
6 – Estas possibilidades que o Registro oferece tornam-se ainda mais evidentes face à atual exuberância do mercado, à aceleração da vida econômica e às próprias possibilidades oferecidas pela diversidade da contratação, incluindo a eletrônica.
7 – É, todavia, necessário ter presente que nunca será um mero arquivo de documentos – que acriticamente os receba – que merece a designação de Registro. Este é só o juridicamente fiável, em que são apenas inscritos os atos validamente titulados e se mostram conformes com a situação tabular; isto é, aqueles que hajam sido submetidos a um prévio controle de legalidade, mediante um juízo de qualificação sob a égide e responsabilidade do Registrador.
8 – O Registrador terá, portanto, de ser um jurista idôneo, responsável independente face a qualquer poder – incluindo o poder político – e que, conseqüentemente, nos atos que decida levar às tábuas apenas deve obediência à lei.
9 – Todas as precedentes considerações são evidenciadas na atualidade em que, a par do fenômeno da globalização, sobretudo da vida econômica, se torna necessário que não se verifiquem perturbações anômalas e não inscritas situações jurídicas, sujeitas a diversos erros, abusos e desvios - que têm de ser evitados.
10 – A par disso, é cada vez mais necessário caucionar as transações, preferencialmente com menores custos e juros – o que melhor se obtém através dos direitos reais de garantia - obvia e necessariamente levados a Registro.
11 – É útil que os órgãos fiscais, cadastrais e técnicos e os que podem elaborar atos autênticos – como é caso de notários, autoridades administrativas e judiciais -intercooperem com o Registro, mesmo dando informações descritivas sobre o imóvel, mas ainda quando tal não se verifique, estando a inscrição registral no final do processo que visa servir e tornar eficaz o direito, não é por falta de tais informações que deixará de cumprir a sua essencial missão.
12 – Por conseguinte, e também tendo em atenção que é através do assento registral que se incorporam no Registro os fatos e situações jurídicas inscritíveis, também não é pelo fato de inexistirem outros elementos quanto à descrição dos bens, (o que é meramente referencial) que o assento deixará de produzir, erga omnes, todos os efeitos que lhe são inerentes – e, evidentemente, de prestar credível informação a todas as referidas instituições.
José Augusto Guimarães Mouteira Guerreiro é registrador aposentado e ex Vogal do Conselho Técnico da Direção Geral dos Registros e do Notariado português.
[i][1] Cf. ANTÓNIO MENEZES CORDEIRO, “Tratado do Direito Civil Português”, I, Parte Geral, Tomo I, 1999, pág. 350.
[ii][2] São múltiplas as intervenções que FERNANDO P. MENDEZ GONZÁLEZ tem feito, desde a exposição preparada para o XII Congresso do CINDER aos mais recentes trabalhos, da Universidade do Minho ao Clube Siglo XXI (Madrid 21/Março/2002), pelo que os referimos como paradigma destas ideias.
[iii][3]À “Tutela da Confiança” têm os Autores dedicado múltiplos estudos: v.g o de BATISTA MACHADO (in “Obra Dispersa”, Vol. I pág. 345 e segs.) no qual também chama a atenção que na “economia de mercado” a sofisticação técnica e outros fatores têm acentuado uma maior preocupação com a “tutela da confiança” (pág. 36).
[iv][4] CARNELUTI (in “Studi di Diritto Procesuale”, 1925, pág 244) refere que foi a “necessidade de certeza jurídica” que gerou a atual consertação normativa.
[v][5] Cf. o profundo estudo de MENEZES CORDEIRO “Da Boa fé no Direito Civil”, sobretudo pág. 1235 e segs.
[vi][6] Não se põe em causa a douta posição de CASTANHEIRA NEVES de que a “intenção normativa” da realização do direito não se pode alhear de uma “interpretação judicativa”, no sentido de que todos os elementos se terão de configurar, v.g. com vista à decisão.
[vii][7] Vide: “Citado Autor in “Tratado de Direito Civil Português”, pág. 188.
[viii][8] Cf. DEMOGUE – “Les Notions Fondamentales du Droit Privé”, pág. 63
[ix][9] Permita-se que citemos a clara referência que OLIVEIRA ASCENSÃO fez no Colóquio sobre “Globalização e Direito”, na Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra (7 a 9 de Março de 2002) sobre o tema da “Sociedade de Informação”, e onde depois de observar que a informação “passa a ter um papel cada vez mais importante”, afirmou: “As repercussões no plano econômico são muito claras. Se a vantagem é de quem oferece as melhores prestações, num mundo de concorrência globalizada, só pode oferecê-las quem dispõe constantemente de conhecimento atualizado e de meios de comunicação imediata. Quem partir com avanço na sociedade de informação tem condições para estar universalmente, e manter-se, em posição de vantagem” (publicado in “Revista Brasileira de Direito Comparado”, nº 22, pág. 167).
[x][10] Ao utilizar esta expressão não nos queremos referir apenas às marginais ou ilícitas. Todas, incluindo as mais respeitadas organizações não podem pretender interferir no juízo de qualificação já que isso é sempre ilícito.
[xi][11] cf. “Derecho Inmobiliario Registral”, reimp. 1990, pág. 305.
[xii][12] O legislador português esteve atento a este problema, designadamente no que respeita ao “regime jurídico aplicável aos documentos eletrônicos e assinatura digital”, tendo publicado o Decreto-Lei nº 290-D/ 99, de 2 de Agosto, no qual regula a respectiva “validade, eficácia e valor probatório”.
[xiii][13] ALEXANDRE DIAS PEREIRA publicou um estudo (Almedina, 1998) precisamente intitulado. “Comércio Eletrônico na Sociedade de Informação: da Segurança Técnica à Confiança Jurídica”. E, notar-se-á ainda, mesmo à face dos princípios gerais, parece que a base normativa para a proteção jurídica será indispensável.
A simplificação da forma (decorrente da globalização) mais centrada nas exigências do “mercado” e na celeridade, implica, também, um devido controle legislativo e a “um repensar da inserção sistemática mais adequada das disposições especiais de tutela”, como a dado passo bem lembrava JOAQUIM DE SOUSA RIBEIRO na sua conferência “Direito dos Contratos e Regulação do Mercado” (Rev. Brasileira de Direito Comparado, pág. 203 e segs, designadamente pág. 221). Por outro lado, a ressalva que quanto aos direitos sobre imóveis se perspectiva na Diretiva relativa ao comércio eletrônico tem sobretudo a ver com as eventuais dificuldades da respectiva legislação interna dos Estados-Membros, não com as óbvias necessidades do seu ordenamento e publicitação.
[xiv][14] Essa é finalidade última nos sistemas “da família romano-germânica” (cf. a propósito entre outros, o capítulo sobre os “principio gerais” da 1ª parte da obra de RENÉ DAVID “Les Grands Systémes de Droit Contemporains (Droit Comparé)”, 1972.
[xv][15] O Código Civil português contém a disposição expressa do art. 687, segundo a qual, a hipoteca, sem ser registrada, não produz efeitos mesmo em relação às partes. Tivemos ensejo de participar em diversos encontros internacionais, no âmbito da UNIDROIT, em que consensualmente, entre os países participantes, se entendia dever ser exigível o registro também quanto às aeronaves e outros bens móveis de elevado valor.
[xvi][16] Tem-nos parecido que essas limitações correspondem, basicamente, às decisões (v.g. judiciais) quando há caso julgado entre aquelas partes. É por isso que, mesmo nos casos da sentença, sendooutros os interessados, a qualificação pode (e deve) apreciar o próprio fato registável. E é também por essa razão de não haver uma “decisão transitada em julgado” que a maioria dos atos notariais e registrais é passível de “nova instância” e, consequentemente, de qualificação quanto à substância do ato.
[xvii][17] Esta é a expressão de CHICO Y ORTIZ que, muito sugestivamente, refere que o Registador “nesse momento supremo não pode duvidar, não deve vacilar, não pode elidir o seu juízo decisivo, tem de pronunciar-se e fixar com o seu critério a validade e eficácia do ato sujeito à inscrição “ (cf. “Calificación Jurídica, Conceptos Básicos e Formulários Registrales” pag. 23/24).
[xviii][18] Cf. MARTIN WOLF, “Sachenrecht” (tradução espanhola “Derecho de Cosas” – do Tratado “ENNECCERUS – KIPP-WOLF” – Bosch, 1971, pág. 218).
[xix][19] Aliás, acrescenta este Autor as inexatidões descritivas “carecem de importância para a verdadeira situação jurídica” (op. cit. pág. 217).
[xx][20] cf. FRANZ WIEACKER, “História do Direito Privado Moderno”, Tradução do original alemão por A M. Hespanha ed. Fundação Caloust Gulbenkian, págs. 716/722.
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