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Nótulas em torno da ata notarial brasileira - Regnoberto Marques de Melo Júnior*
A Teoria Geral do Direito ensina que quando acontecimentos ocorrem e estão previstos em uma norma de Direito, nasce o que chamamos de Fato Jurídico. Quando o acontecimento é natural e normal, como a morte, dizemos que há um fato jurídico em sentido estrito e ordinário. Quando, apesar de natural, é um fato anormal, como um furacão etc., dizemos que há um fato jurídico em sentido estrito, mas extraordinário.
Tudo, bem entendido, ocorrido de fato e previsto em uma norma jurídica.
Mas, a tipologia do fato jurídico ainda comporta uma importante classificação. É quando entra em cena o ser humano.
O homem tem vontade e toma atitudes de acordo com a sua vontade. Tais atitudes, quando manifestadas no mundo real, produzem efeitos que são de acordo com a sua vontade, ou não. Quando os resultados das atitudes do indivíduo estão em conformidade com a sua vontade, dizemos que ocorreu um fato jurídico humano voluntário. Para ser mais preciso, dizemos que ocorreu um ato jurídico, no caso voluntário. Se a atitude humana tem correspondência com outra, ela é plural e produz o chamado ato jurídico em sentido lato, também chamado ato jurídico bilateral. São exemplos uma compra e venda, um casamento, um testamento.
Quando o ato jurídico é voluntário e unilateral, como uma promessa de recompensa, diz-se que ocorreu um ato jurídico em sentido estrito. Se o ato chega a regular interesses diferentes e contrários entre si, há o chamado negócio jurídico. Quando as coisas não saíram como previsto, teremos um fato jurídico humano involuntário, ou, mais apuradamente, um ato ilícito (contrário ao Direito).
É importante lembrar o ensino do grande Hans Kelsen sobre o ato ilícito. O ato ilícito não deixa de ser ato jurídico. O ato ilícito, afinal, está previsto em norma jurídica, funcionando não como negação do Direito, mas como sua condição. Desse modo, o ato ilícito suscita não um direito especificamente, mas um dever. O dever de prestar a sanção que a norma prevê para o caso de seu descumprimento (ato ilícito).
Os conceitos acima são indispensáveis para enquadrarmos um documento que está para o Direito como o conto para a literatura.
De fato, a ata é uma das primeiras formas de manifestação documental que o homem criou. Sua finalidade primacial e histórica é documentar fatos em todas as suas modalidades. Ao contrário do que possa sugerir a sua etimologia vocabular latina (ata vem de acta que daria no vernáculo "coisas feitas"), a ata não teve origem no Direito Romano. Seu nascimento se confunde com a própria origem da escrita. Mas, foi no Direito Romano que a ata passou ao seu uso popular.
No início, servia como registro das resoluções senatoriais. Era proibida de divulgação porque se considerava indignidade o conhecimento das tais decisões pelo povo. Mais tarde, o exato contrário aconteceu. A ata foi adotada para levar ao público as resoluções dessas instituições, virando como que um diário oficial. O tempo firmou mundialmente o uso histórico da ata: um escrito dos fatos de uma reunião.
A dogmática jurídica atual permite classificarmos com segurança a ata em duas espécies: a ata pública e a ata particular. A ata pública tem por objeto atos administrativos, judiciais e notariais. A ata particular, também chamada ata em sentido estrito ou ata comum, traz no seu bojo o registro de fatos de particulares, vale dizer, atos sem a interferência estatal.
Chamamos juridicamente de ata notarial a ata pública que é escrita por um notário ou tabelião, a pedido de alguém, que a doutrina estrangeira apelidou de requerente, na forma requerida pela lei. A ata notarial brasileira tem semelhança na França com o acte authentique; na Espanha com a acta legalizada ou ainda a escritura notarial; nos países do common law com o deed; e na Alemanha com o Akte ou Die öffentliche Urkunde.
A doutrina construída, sobretudo entre as décadas de 30 e 60 do século passado, na Europa, especialmente em Itália e Espanha, e na América do Sul, notadamente na Argentina, admitia e ainda admite a existência de três requisitos de validade para a ata notarial: 1) requerimento de parte intelectualmente capaz, 2) intervenção notarial, 3) interesse jurídico de conservação do fato em forma autêntica. Pode-se dizer que estes requisitos são universalmente aceitáveis até hoje.
Por outra parte, essa mesma doutrina manteve avivada disputa entre dois pontos: o objeto da ata notarial, que é fato jurídico, repeliria contratos, que é ato? E, ainda, este objeto (fato) poderia albergar ato ilícito? Se é certo que tais questões persistem em alguns países, por causa da imprecisão terminológica de suas leis, elas, em boa verdade, não tem mais sentido de existir do ponto de vista científico.
A partir do século XIX, a decisiva influência do positivismo jurídico e da concepção do Direito como um sistema, que reclama unidade e coerência, permitiu a construção de princípios hermenêuticos que enfrentam com segurança problemas de restrições interpretativas. Neste ponto, o primeiro e principal princípio se baseia na regra que qualquer norma restritiva deve ser interpretada restritivamente. Este princípio hermenêutico baseia-se, dentre outras, em duas premissas inafastáveis: (1) não havendo norma proibitiva expressa, não se deve proibir; e (2) mesmo não havendo norma proibitiva expressa, cabe a restrição se reclamada pela ordem jurídica. Exemplo mor da segunda premissa é a proteção jurídica à boa fé contratual. Como bem jurídico prestigiado por todo sistema jurídico nacional, notadamente no Direito Consumerista, não prosperará regra que, cortejando formalidades, o pretenda em segundo plano.
Voltando ao tema, se na narração dos fatos, o notário consigna na ata notarial atos ilícitos e contratos, estes fatos não inquinam a ata de nulidade. Nem são vazios de conseqüência tampouco, só porque vazados naquele instrumento. Ao contrário, sobre esta circunstância (constar atos ilícitos e contratos em ata) só por si não destruir a validade da ata notarial, antes a reforça, porquanto consulta à sua finalidade precípua, que é a de documentar, a de servir como documento ad probationem, e não ad substantiam ou ad solenitatem (CC/1916, arts. 135, 147, 148 e 152, § ún.; CPC, arts.. 364 e 367; CC/2002, arts. 171, 172, 177, 221). As exceções à regra — que não vejo existir no Brasil —, seriam as já citadas: a existência de norma proibitiva expressa, ou a contrariedade ao sistema jurídico, que elenca pressupostos de validade do ato jurídico. É consabido, todavia, que a boa técnica não aconselha formalizar negócio ou registrar ato ilícito em ata notarial. Mas, repito, não se pode juridicamente dizer que esse desvio pragmático a prejudica ao jaez da nulidade.
Vistos os dados acima, pode-se concluir que não perfaz a sanção de nulidade a constância de contrato e ato ilícito em ata. Finalizando o comento sobre o objeto da ata notarial, deve-se aduzir que estão naturalmente afastados de sua abrangência os atos judiciais ou administrativos, porque a forma de publicidade desses atos está disciplinada de modo especial pela lei. A propósito, é bem considerável a expressa previsão legal da instrumentalização de atos jurídicos por meio de ata, no direito positivo brasileiro. Encontramo-la no direito internacional público, nos atos de execução de acordos internacionais, como os decretos presidenciais, baixados na forma dos arts.. 49, I e 84, VIII, da Constituição Federal de 1988. O direito processual dispensa comentos. A ata é o instrumento historicamente consagrado para o registro de atos judiciários. Vemo-la expressamente destacada, por exemplo, no Código de Processo Civil de 1939 (Decreto-Lei nº 1.608 de 1939), parcialmente em vigor, nos arts.. 726 e 727; no vigente Código de Processo Penal, nos arts.. 103 e 106, 445 460, 479, 494, 495, 496 e 505; na Consolidação das Leis do Trabalho, nos arts.. 532, 851, 852-F; na Lei da Assistência Judiciária, Lei nº 1.060 de 1950, art. 16; no Código de Processo Penal Militar, Lei nº 1.002, de 1969, nos arts.. 303, p. ún., 358, 366, 395, 419, 424, 436, 448, 457 § 2º, 464 § 1º, 702 § 2º e 708; na Lei da assistência judiciária aos necessitados e outras normas, Lei nº 5.584 de 1970, art. 2º; na Lei nº 8.560 de 1992, art. 3º; na Lei dos Juizados Especiais, Lei nº 9.099 de 1995, art. 46; Lei nº 9.271 de 1996, art. 1º (modificou o CPP).
É interessante notar que o legislador processual de 1973, bem como os da reforma do CPC, frutificada a partir da década de 90 e ainda em processamento, não contemplaram expressamente o emprego da ata como forma de escritura das audiências judiciais, certamente porque absolutamente desnecessário, vez que consagrada pela praxe forense. No direito substantivo nacional, a ata está textualmente prevista em um sem número de diplomas legais. São exemplos o Código Comercial, Lei nº 556, de 1850, art. 770; a Lei de falências e concordatas, Decreto-Lei nº 7.661, de 1945, arts. 95 e 122; o Decreto nº 52.795, de 1963, arts. 15, 94, 96 e 104; a Lei do Condomínio e Incorporação, Lei nº 4.591, de 1964, art. 50, § 1º; a Lei da Reforma Bancária, Lei nº 4.595, de 1964, art. 6º; a Lei do Mercado de Capitais, Lei nº 4.728, de 1965, arts. 34 e 44; o Código Eleitoral, Lei nº 4.737, de 1965, arts. 94, § 1º, 123, 128, 133, XII, 146, XII, 147, IV, 154, 163, 168, 184, 186, 192 a 195, 199, 202, 203, 204 e 221; o Decreto-Lei nº 201, de 1967, arts.. 5º, VI, 6º e 8º; o Decreto nº 60.459, de 1967, art. 26; a lei 5.589, de 1970, art. 3º (que modificou o § 2º do art. 13 do Decreto-Lei nº 401 de 1968); a Lei nº 5.764, de 1971, arts. 14, 68, 74 e 76; a Lei nº 5.991, de 1973, art. 49; a Lei das Sociedades por Ações, Lei nº 6.404, de 1976, arts. 45, §§ 6º e 7º, 62, 64, 95, 97, 98, 129 a 131, 134, 136, 137, 146, 156, 158, 165, 166, 174, 210, 216, 230, 236, 287, 289, 294 e 298; o Decreto 86.955, de 1982, art. 23; a Lei nº 7.394, de 1985, art. 7º; o Código Brasileiro de Aeronáutica, Lei nº 7.565, de 1986, art. 203 e 206; o Decreto nº 98.816, de 1990, art. 69; o Decreto nº 408, de 1991, art. 4º (regulamenta o art. 3º da Lei nº 8.242, de 1991); a Lei nº 8.457, de 1992, arts. 22 e 29; a Lei nº 8.666, de 1993, arts. 43, 51, 53 e 109; a Lei nº 8.713, de 1993, arts. 8º e 11; a Lei Antidumping, Lei nº 9019, de 1995, art. 1º; a Lei nº 9.096, de 1995, art. 8º; a Lei nº 9.100, de 1995, art. 9º e 12; o Decreto nº 1.572, de 1995, art. 6º; a Lei nº 9.292, de 1996, art. 1º; o Decreto nº 1.800, de 1996, art. 43, II, 77, p. ún.; a Lei nº 9.494, de 1997, art. 2º-A e parágrafo único; a Lei nº 9.504, de 1997, arts. 8º, 11 e 70; o Decreto nº 2.314, de 1997, art. 123; a Lei nº 9.612, de 1998, art. 9º; o Decreto nº 2.574, de 1998, art. 96; o Decreto nº 2.615, de 1998, art. 14; o Decreto nº 2.743, de 1998, arts. 10, 11 e 13; a Lei nº 9.784, de 1999, arts. 35 e 50; a Lei nº 9.790, de 1999, art. 5º; o Regulamento da Previdência Social, Decreto nº 3.048, de 1999, arts. 62 e 208; e o Decreto nº 3.100, de 1999, art. 1º, II. Não prevendo a lei a intervenção doutro agente público, é perfeitamente cabível, e até aconselhável, a intervenção notarial nos atos que reclamem a formalização de ata. Daí se vê a imensa aplicabilidade desse instrumento jurídico.
Encerrando, é mister uma observação sobre a autorização notarial e a cobrança de emolumentos em ata notarial. Autorização é termo plurívoco, comumente designado no direito hispânico como o ato, praticado por oficial público, de portar por fé (pública), confirmar, comprovar com autoridade, abonar ou atestar publicamente a legalidade, legitimidade e juridicidade de determinado ato ou documento. Particularmente ao Direito Notarial, a autorização toma o sentido de ato notarial de autenticação documental, por restarem cabalmente preenchidos os requisitos legais à sua perfectibilização. Este instituto, sem precedentes no nosso sistema jurídico, e inovadoramente introduzido pelo inciso II do artigo 6º da Lei nº 8.935/94, apresenta certa analogia com a previsão do artigo 1.638, inciso VI, do nosso Código Civil. Na autorização, o notário não formaliza o ato jurídico. Destarte, autorização não é caso de ata notarial. Como dito acima, na facção da ata notarial o notário não apenas escreve fatos roboticamente. Ele efetivamente constrói ato narrativo de fatos por si presenciados a convite de assembléia adrede formada. Sua vinculação ao instrumento ata é pessoal, oriunda de dever de ofício. Transcende, portanto, a simples autorização notarial.
Quanto à cobrança de emolumentos pela lavratura de atas notariais, o critério é a lei. Lei em sentido estrito. Falta legitimidade ao Poder Judiciário para inserir norma para esta cobrança, por atos administrativos (como Provimentos, Portarias, Assentos etc.). Faltando eventualmente lei, vez que a ata notarial é novidade no Brasil, é caso de o Poder Legislativo elaborá-la, não cabendo a reserva da iniciativa Executiva, e muito menos Judiciária.
Aliás, é bom que sempre se repita: notário e registrador não são órgãos do Judiciário, nem lhe devem obediência hierárquica, apesar da coeva política judiciária (parte do próprio STJ) dizer o contrário. O notário é agente público que goza de independência no exercício de suas funções, e merece todo o respeito devido a qualquer profissional do Direito (Lei nº 8.935/94, arts. 3º e 28). O Judiciário detém tão somente o poder constitucional de fiscalização das atividades notariais e registrais, que deve ser exercido através de atos vinculados (nunca discricionários) de polícia, para apuração de desvios, obedecidos os direitos e garantias fundamentais da Carta Magna (CF, art. 5º, II, 236, § 1º; Lei nº 8.935/94, arts. 37 e ss.). Poder disciplinar não se coaduna com o poder de fiscalizar.
Regnoberto Marques de Melo Júnior é especialista em direito registral e notarial e autor do livro Lei de Registros Públicos comentada, Ed. Freitas Bastos, 2003.
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