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CRÍTICAS À USUCAPIÃO URBANA COLETIVA - Benedito Silvério Ribeiro, Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo


A primeira crítica que se faz à usucapião urbana coletiva é a referente à sua inconstitucionalidade, uma vez que a Lei n. 10.257, de 10 de julho de 2001, denominada Estatuto da Cidade, fala em "áreas urbanas com mais de 250 m²" (art. 10), enquanto a Constituição Federal faz referência a "área urbana de até 250 m²" (art. 183).

Outro ponto, no campo constitucional, diz respeito ao referido Estatuto, que não poderia instituir nenhuma modalidade de usucapião, norma de direito material, já que o art. 182 da CF, tratando "DA POLÍTICA URBANA", dispõe que "a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes".

Preceitua o § 1. do citado artigo que o plano diretor, aprovado pela Câmara Municipal, obrigatório para cidades com mais de 20 mil habitantes, é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana.

Diz o § 2. que "a propriedade urbana cumpre sua função social quando atende às exigências fundamentais de ordenação da cidade expressas no plano diretor".

Assim, as diretrizes fixadas em lei, como normas gerais de conduta, não abrangeriam nova modalidade de usucapião.

Outras críticas, fora do âmbito da Constituição, incidem tanto sobre normas de direito material quanto de direito processual.

A usucapião coletiva constitui direito novo, não podendo ser contado tempo anterior de posse, conforme antes assinalado (Tribuna do Direito, julho/20002).

Não há previsão legal de nenhuma reserva de áreas para ruas nem vielas, nem mesmo para algum serviço público, a fim de que seja permitida urbanização ou reurbanização a posteriori, como que um preparo dessa viabilidade.

Problema sério que emerge é o referente ao título de propriedade, conferido numa circunstância de co-propriedade, já que a lei institui uma modalidade nova de condomínio não passível de extinção.

É sabido e consabido ser no condomínio que ocorrem as maiores divergências entre consócios, sendo fonte de desavenças, ainda mais entre pessoas de nível cultural baixo.

Assim, dependendo o condomínio de quorum especial, para que se viabilize urbanização da área objeto de usucapião (§4. do art. 10 do Estatuto da Cidade), pode ocorrer que não se chegue a isso, como no caso de favela controlada por quadrilha de traficantes de drogas, em que não se queira abertura de ruas, preferindo-se caminhos tortuosos que impeçam a livre passagem da polícia.

A outorga de domínio, embora em frações ideais, trará problemas sérios e de grande conseqüência para o Poder Público, no caso de não se resolver fazer a urbanização da área usucapida, podendo ocorrer que se tenha de abrir caminho de acesso a núcleo habitacional criado próximo, quando eventual desapropriação exigirá a citação da totalidade dos condôminos.

Cabe ressaltar que o ingresso de pessoas de baixa renda em áreas urbanas quase sempre resultou de invasões, muitas vezes com excesso de gente, constituindo um aglomerado de moradias acanhadas e levantadas de forma desordenada, sem reserva de espaços para passagem, restando até mesmo encravamento da gleba irregularmente ocupada.

Não subsiste dúvida de que poderão ser aumentadas as invasões, com o crescimento de favelas, até mesmo erguidas em áreas impróprias e perigosas, com riscos à população ou à saúde dela (terrenos marginais a rios, mangues, encostas de morros, também sujeitos a enchentes ou a desmoronamentos).

Daí a importância de leis vedatórias de usucapião ou de urbanização de áreas em locais inapropriados e de altíssimo custo para serem regularizadas.

O legislador, quando das discussões que mais tarde resultaram na usucapião especial de imóvel rural, não levou avante projeto do Ministério do Interior, com estudos do CNDU (Conselho Nacional de Desenvolvimento Urbano) para regularização dos imóveis urbanos (problema já consolidado de favelas que constituíam fatos consumados) em vista do estímulo que se daria a novas invasões.

A forma flexível de urbanização ou reurbanização fere, em tese, os princípios constitucionais de igualdade e isonomia, uma vez que trata de modo diferente situações iguais.

O cidadão pobre, mas que com sacrifício adquire um lote e constrói sua moradia longe do centro das cidades, tem de observar as posturas municipais, pagar pelos serviços públicos que necessita, enquanto aqueles que invadem imóvel alheio, adquirindo-o mediante usucapião coletiva, recebem benesses legais, por meio de tratamento diferenciado.

O art. 2. do Estatuto da Cidade prevê, dentre as diretrizes para o ordenamento do pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, "regularização fundiária e urbanização de áreas ocupadas por população de baixa renda mediante o estabelecimento de normas especiais de urbanização, uso e ocupação do solo e edificação, consideradas a situação socioeconômica da população e as normas ambientais" (XIV).

Há previsão de assistência técnica e jurídica gratuita para as comunidades e para os grupos sociais menos favorecidos (Estatuto, art. 4., V, I).

A sentença declaratória de usucapião coletiva é passível de registro, independente da regularidade do parcelamento do solo dou da edificação (art. 167, I, 28, da LRP, com a modificação introduzida pelo art. 55 do Estatuto).

De igual forma os termos administrativos ou sentenças declaratórias da concessão de uso especial para fins de moradia (art. 167, I, 37).

O particular, para fazer loteamento, observa rigoroso procedimento da Lei n. 6.766/79 e arca com todos os pagamentos relativos aos serviços públicos, observando área mínima de parcelamento e, enfim, as posturas do município.

Em suma, a denominada cidade ilegal* exige providências por parte do Poder Público, fugindo às diretrizes do plano diretor, cujo objetivo primordial é o planejamento e o ordenamento das cidades.

No âmbito processual, é sabido que um número elevado de pessoas no pólo ativo da ação de usucapião coletiva dificulta sobremaneira o andamento do processo.

A posse por cinco anos de cada um dos autores, ininterrupta e sem oposição, deve ser provada. E caso não o seja, estará o possuidor (a lei o chama ocupante) alijado da ação, o que poderá gerar um denominado buraco negro, até impeditivo de usucapião.

Caber frisar que, embora o diga o art. 12, inciso III, do Estatuto da Cidade, não pode a associação de moradores ocupar o pólo ativo, que é privativo de pessoas que necessitam de um teto para moradia.

Em suma, a vingar a permanência do art. 10 do Estatuto, dever-se-ia fazer correção ou explicitação, acrescentando-se ao § 3., no seu final, a expressão "de modo que a cada possuidor não seja atribuída área superior a 250 m² (duzentos e cinqüenta metros quadrados)".

O legislador deveria impor restrições à possibilidade de usucapião coletiva em áreas de risco (próximas a encostas, rios ou mangues etc.) e naquelas em que o custo de urbanização seja muito alto, remetendo à lei municipal (quanto ao que não está impossibilitado o município de fazê-lo, dada a sua autonomia legislativa) a especificação das áreas que não podem ser objeto de ocupação ou urbanização.

Na medida provisória n. 2.220/01, referente à concessão de uso especial de imóvel público, há vedação no caso de a ocupação acarretar risco à vida ou à saúde dos ocupantes, garantindo o Poder Público o exercício do direito em outro local (art. 4.).

* Antítese entre a ordem formal e a informal, entre a cidade que obedece aos cânones de respeito ao ato de propriedade privada e às regras de urbanismo e a cidade que invade a propriedade privada e ignora a ordem urbanística (Edésio Fernandes, Direito Urbanístico, Del Rey, 1998, p.4-14).



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