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Debêntures – Atribuição para o registro - Marcelo Melo*
Na definição de WALDIRIO BULGARELLI “debêntures (que deriva da palavra latina debentur, dever) são títulos de crédito causais, representativos de frações de mútuo, com privilégio geral sobre os bens sociais ou garantia real sobre determinados bens, emitidos por sociedades anônimas, no mercado de capitais” (Manual das Sociedades Anônimas, ed. Atlas, 8ª edição, pág. 130).
A Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404, de 15.12.1976), enumerava, como requisito obrigatório, a inscrição da escritura de emissão de debêntures no registro de imóveis do lugar da sede da companhia (artigo 62, inciso II).
Observe-se que a Lei de Registros Públicos, publicada anteriormente à Lei das Sociedades Anônimas, nos artigos 167, I, 16 e 178, I, já previa o registro da escritura de emissão de debêntures no Livro 3 – Registro Auxiliar, com base na legislação vigente à época (art. 40 do Dec.-Lei 4.857, de 1939 e Lei nº 4.728, de 14 de julho de 1965).
A intenção do legislador era garantir maior publicidade à emissão de referidos valores mobiliários incumbindo sua inscrição a um órgão autônomo e externo às práticas comerciais, de sorte que para constatação da emissão ou eventuais alterações deveria o interessado requerer uma certidão no Registro de Imóveis da sede da empresa.
A Lei 10.303, de 31.10.2001, que a alterou a Lei das Sociedades Anônimas, deu nova redação ao inciso II do artigo 62 (emissão de debêntures), atribuindo a inscrição da escritura de emissão de debêntures ao registro do comércio. Além disso, foi acrescentado o parágrafo 4º criando um livro especial para inscrição das emissões de debêntures, no qual serão anotadas as condições essenciais de cada emissão.
Ressalte-se que existe impropriedade em se afirmar “registro do comércio”, pois este foi substituído pelo Registro Público de Empresas Mercantis (artigo 1º da Lei 8.935/94) que é exercido no âmbito estadual pelas Juntas Comerciais.
Não há maiores dificuldades ao intérprete para se chegar à conclusão que os Registros de Imóveis perderam a atribuição para o registro da escritura de emissão de debêntures (in claris legis cessat interpretatio), ocorrendo, por conseguinte, a derrogação tácita da Lei 6.015/73, nos artigos 167, I, 16 e 178, I, por absoluta incompatibilidade com a nova legislação, que transferiu a atribuição de determinado ato de um órgão para outro.
Nesse sentido, a lição de MARCELO M. BERTOLDI: “A nova redação determina a inscrição da escritura no Registro do Comércio em substituição à inscrição no Registro de Imóveis. (...) A inscrição da escritura de debêntures no texto anterior se fazia apenas necessária no Registro de Imóveis em razão da Lei de Registros Públicos. (...) Se havia a obrigatoriedade de arquivamento da ata que deliberou sobre a emissão no Registro do Comércio, procurou o legislador adotar o mesmo procedimento para simplificar o processo de registro da escritura de emissão, eliminando, assim, a necessidade de inscrição no Registro de Imóveis da sede da emissora que representava um ônus a mais para o emissor” (Reforma da Lei das Sociedades Anônimas, Comentários à Lei 10.303, de 31.10.2001, Ed. Revista dos Tribunais).
De forma semelhante, THEMISTOCLES PINHO e ÁLVARO PEIXOTO afirmam que a alteração da atribuição “representa uma mudança sensível, mas plenamente justificável, em face da Lei nº 8.934, de 18.11.1994, transferindo a competência em relação à inscrição da escritura de emissão de debêntures do registro de imóveis, para o registro do comércio, cessando a ingerência de órgãos estranhos à matéria societária, além de dar à debênture sua real definição” (A Reforma da Lei das S.A. através da Lei nº 10.303, de 31.10.2001, Freitas Bastos Editora).
AFRÂNIO DE CARVALHO já advertia sobre a recepção de títulos que colidiam com a natureza do Registro de Imóveis, aduzindo que o Registro de Imóveis “não é o desaguadouro comum de todos e quaisquer títulos, senão apenas daqueles que confiram uma posição jurídico-real e sejam previstos em lei como registráveis” (Registro de Imóveis. Rio de Janeiro, Forense, 1976, pág 263), relatando, ainda, que a inscrição da escritura de emissão de debêntures ocorreu por erro de destinatário, pois seria o registro do comércio ou o registro de títulos e documentos, o órgão incumbido.
Com efeito, o Registro de Imóveis é órgão auxiliar do Direito Civil destinado ao assentamento de títulos públicos e privados, incumbindo-lhe o controle, cadastro, eficácia, segurança e autenticidade das relações jurídicas envolvendo imóveis, garantindo-lhes presunção relativa da prova da propriedade, não se justificando, assim, a utilização da publicidade de seus atos para suprir deficiências de outros órgãos públicos. O que fez o legislador foi simplesmente corrigir erro que perdurava décadas em nosso direito, erro esse endossado por cada diploma legal que lhe ia sucedendo.
Problema sério a ser resolvido é o decorrente da fase de transição das leis. A Lei 10.303 entrará em vigor 120 (cento e vinte) dias da data da publicação (art. 9º), o que ocorrerá em 01.03.2002, em virtude de ter sido publicada em 01.11.2001. Ocorre que as Juntas Comerciais, malgrado o extenso prazo de vacatio legis, ainda não estão preparadas para recepcionar as escritura de emissão de debêntures, não existindo, até o momento, nenhuma orientação do Departamento Nacional de Registro do Comércio – DNRC, órgão federal que organiza e regulamenta os funcionamentos das juntas comerciais no Brasil.
A Junta Comercial do Estado de São Paulo, em consulta formulada via e-mail em 27.02.2002, informou que até o presente momento não lhe foi enviada nenhuma determinação para tal arquivamento, o que ocasionará uma inevitável procura das companhias ao Registro de Imóveis, aflitas para concretizar suas debêntures.
Não podemos olvidar que os Registros de Imóveis são obrigados a seguir a legislação federal, haja vista, estarem sujeitos às sanções disciplinares constantes da Lei 8.935/94 no caso de descumprindo de suas funções ou em atos que exorbitem as atribuições outorgadas por lei. In casu, existe lei federal que retirou do Registro de Imóveis a atribuição de registrar as escritura de emissão de debêntures, o que inviabiliza qualquer interpretação no sentido do registro, mormente pelo fato de flagrante omissão de órgãos administrativos que não observaram com o rigor necessário a alteração legislativa.
Assim sendo, apresentada escritura de emissão de debêntures a partir de 01.03.2002, deve o Oficial Registrador formular nota devolutiva rejeitando-a por lhe faltar atribuição para o registro nos termos da Lei 10.303, de 31.10.2001. Não se conformando, o interessado poderá se valer do procedimento de dúvida (artigo 198 da Lei 6.015/73) no qual o Juiz Corregedor disciplinará normativamente a matéria.
Salienta-se que os valores das custas e emolumentos decorrentes de registro indevido de emissão de debêntures, ou seja, posteriores à entrada em vigor da lei, poderão ser objeto de pedidos de restituição, agravando ainda mais as inconveniências decorrentes do ato.
Trata-se de solução jurídica adequada à espécie, alicerçada em argumentos de difícil superação que respeitam a natureza do Registro de Imóveis e o ordenamento jurídico, valorizando a confiança e a probabilidade de certeza de que devem ser revestidos seus atos.
* Marcelo Melo é Escrevente do 4º Registro de Imóveis de São Paulo
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