BE434
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Registro Civil. Filho legítimo pode propor investigação de paternidade sem contestação do pai registral.
Há possibilidade jurídica de pedido de investigação de paternidade proposta por quem tem em seu registro civil de nascimento a declaração de ser filho legítimo, não havendo contestação do pai registral. Essa é a decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça na ação de investigação de paternidade "post mortem" movida pelo técnico em eletrônica V.N.M, 28 anos, contra R.M.V.C e seu marido, A.R.G.C., herdeiros de G.M.S.
V.N.M, cujo registro de nascimento o aponta como filho legítimo de O.M.J. e F.N.M., ajuizou a ação de investigação de paternidade apontando como seu pai consangüíneo G.M.S., falecido há cinco anos, em virtude de uma declaração da própria mãe, lavrada em 31 de agosto de 1993, no cartório do 2º Ofício de Notas de Juiz de Fora (MG), de que ela teve um relacionamento extraconjugal com G.M.S, do qual ele nasceu. Além disso, V.N.M. argumenta que R.M.V.C, herdeira de G.M.S. e M.C.M.S., é filha biológica de seus pais e que foi adotada posteriormente pelo casal, sendo, portanto, sua irmã unilateral (somente por parte de mãe).
R.M.V.C e o marido contestaram a ação, declarando que foi o próprio O.M.J. que registrou V.N.M, no Cartório de Registro Civil de Pessoas Naturais do Distrito de Goianá, Comarca de Rio Novo (MG), impossibilitando o pedido jurídico, uma vez que ele possui registro de nascimento válido e regular e a paternidade ali declarada nunca foi negada. "É uma aventura que objetiva, única e exclusivamente, receber parte dos bens deixados por G.M.S. Ele deveria, em primeiro lugar, anular o seu registro de nascimento para após, se procedente o pedido, promover a ação de investigação de paternidade", afirmou a defesa de G.M.S.
O Juiz de Direito da 1ª Vara de Família da Comarca de Juiz de Fora acolheu o pedido e determinou que fosse feita a exumação do corpo de G.M.S para, posteriormente, realizar-se o exame de DNA. O casal entrou com um agravo de instrumento perante o Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), afirmando que a prova pretendida era onerosa financeiramente e sentimentalmente angustiante.
A 5ª Câmara Cível do TJMG julgou procedente o agravo e julgou extinto o processo, baseado no artigo 348, do Código Civil, que diz: "Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade de registro". Inconformado, V.N.M. interpôs recurso especial para o STJ.
O ministro César Rocha, relator do processo, seguindo a firme orientação jurisprudencial do STJ, deu provimento ao recurso, a fim de que a ação prossiga como se entender de direito. O ministro considerou que "a ação de investigação de paternidade não depende da prévia propositura da ação anulatória do assento de nascimento de V.N.M e que o cancelamento do registro decorre da procedência da investigatória, sem necessidade de pedido expresso de cumulação de ações". (Notícias do STJ, 04/02/2002: STJ: Filho legítimo pode entrar com investigação de paternidade sem contestação do pai registral.)
Falência. Seqüestro de imóvel locado.
Processo civil. Recurso ordinário em mandado de segurança. Falência. Seqüestro de bem imóvel do falido. Direitos do locatário. Ausência de prejuízo.
- Denega-se o mandamus se o ato judicial não afrontou o direito líquido e certo do impetrante.
Decisão.
Cuida-se de recurso ordinário em mandado de segurança, interposto por Sigrid Automóveis Ltda., contra v. acórdão que denegou mandado de segurança impetrado com vistas a suspender ato do MM. Juízo a quo, que, em processo de falência, determinou o seqüestro do imóvel locado pelo falido em favor do impetrante, ora recorrente. O E. Tribunal a quo denegou o mandado de segurança, restando o v. acórdão assim ementado:
Mandado de segurança. Seqüestro de imóvel. Falência da litisconsorte passiva Malharia Santa Rosa Ltda. Revogação de liminar. Denegação da ordem.
Denega-se a ordem e revoga-se a liminar antes deferida, por entender não vislumbrar direito líquido e certo em favor do impetrante e dos litisconsortes passivos.
Em suas razões de recurso ordinário, pugna o recorrente pela reforma do v. acórdão, uma vez que:
I- a r. decisão do MM. Juízo a quo, ao determinar o seqüestro do bem, não observando a existência do contrato de locação, afrontou o direito líquido e certo do impetrante, consistente na posse direta do bem.
Os pareceres dos I. representantes do Ministério Público do Estado do Espírito Santo e do Ministério Público Federal opinam pelo não provimento do recurso ordinário.
O presente recurso ordinário foi a mim atribuído em 10/5/2001.
Relatado o processo, decide-se.
I- Da inexistência de direito líquido e certo do recorrente
O ato do MM. Juízo a quo, acoimado de abusivo e ilegal, está assim transcrito, in verbis:
"Chamo o feito à ordem para adotar as seguintes providências:
Dessume-se dos autos que o único bem pertencente à massa falida (oferecido em garantia hipotecária ao BNDES) é o imóvel descrito no documento fls. 139/140, que, segundo o Síndico, não arrecadado (nos autos da falência); sabe-se mais que a construção existente foi totalmente destruída, e do maquinário nada sobrou. Com isso, dada a irresponsabilidade dos proprietários da firma falida, prejudicados foram os credores.
Diga-se de passagem, quando os Srs. Oficiais de Justiça compareceram ao local, todo o maquinário já havia desaparecido, quase que num passe de mágica.
Agora, aparece um terceiro (...), e passa a construir no imóvel. Está evidenciado o nítido interesse em afetar a massa e o direito dos credores, por ser este o único bem para salvaguardar os créditos habilitados, além da garantia real, já em execução.
Assim, por força do art. 56, §3º, da Lei Falimentar, determino o seqüestro do bem supramencionado, expedindo-se o competente mandado, paralisando-se qualquer obra, se houver, em andamento.
Comunique-se à 1ª Vara Cível de Vitória quanto à falência e ao Cartório Imobiliário desta Comarca para que se abstenha de efetuar qualquer registro de transcrição acerca do imóvel em tela. Cumpra-se."
Depreende-se, de seu conteúdo, que o MM. Juízo visou salvaguardar os direitos dos credores da massa falida através do seqüestro do bem, nos termos do art. 56, § 3º da Lei de Falências, buscando tão-somente impedir a transferência de propriedade do imóvel pelo falido a terceiros.
A referida determinação judicial, em momento algum, determinou a desocupação do imóvel pelo recorrente, não atacando, assim, o seu direito de posse, decorrente do contrato de locação comercial firmado com o falido.
Inexiste, assim, afronta ao direito líquido e certo do recorrente.
Forte em tais razões, com fundamento no art. 557, caput, do CPC, nego seguimento ao recurso ordinário.
Brasília 18/5/2001. Relatora: Ministra Nancy Andrighi. (Recurso Ordinário em MS nº 7.445/ES; DJU 18/6/2001; pg. 507)
Execução. Imóvel nomeado à penhora - parte ideal. Ineficácia. Inobservância da gradação legal.
Decisão. Cuida-se de agravo de instrumento tendente a viabilizar subida a esta Corte de recurso especial interposto por Rodrigues Trevisan Empreendimentos S/A, com fulcro no art. 105, III, alíneas "a" e "c", da Constituição Federal, contra acórdão proferido pelo Tribunal de Alçada do Estado do Paraná, que restou assim ementado:
"Execução fiscal. Bem nomeado à penhora correspondente a 10% da área do lote de terreno. Parte ideal. Inobservância da gradação legal prevista no art. 11 da Lei 6.830/80, além de se tratar de bem de difícil alienação. Inocorrência da vulneração ao art. 620 do CPC. Prevalência de preferência da penhora sobre os bens que mais facilmente sejam transformados em dinheiro sobre os bens de difícil alienação. Devolução ao credor o direito de designar bens à penhora.
É inequívoco, que o objetivo da execução é satisfazer o direito do credor de maneira mais rápida possível, desde que não importe em sacrifício injustificável para o devedor.
É ineficaz a nomeação de 10% da área de lote de terreno, pois foi inobservado a gradação legal prevista no art. 11 da Lei 6.830/80, e também pelo fato de que se trata de bem de difícil alienação, acrescida da circunstância de que o mesmo não se mostra suficiente para garantir a execução.
‘Execução. Penhora. Nomeação de bens. Justifica-se a recusa de bens nomeados à penhora que se revelem de difícil alienação, outros havendo que ensejariam mais eficaz’ (Resp nº 35.619/SP, rel. Min. Eduardo Ribeiro.)
Recurso desprovido".
Opostos embargos de declaração ao acórdão, foram estes rejeitados, conforme transcrição da ementa, verbis:
"Embargos de declaração. Contradição. Erro material. Inocorrência. Caráter manifestamente infringente. Clara pretensão de rediscussão de matéria já decidida. Inadmissibilidade de tal prática em sede de embargos de declaração. Multa devida. Efeito protelatório."
Sustenta a agravante violação a diversos dispositivos de lei e divergência jurisprudencial.
Para melhor exame da matéria, dou provimento ao presente agravo, determinando a subida do recurso especial.
Brasília 31/5/2001. Ministro Francisco Falcão, Relator. (Agravo de Instrumento nº 384.494/PR; DJU 19/6/2001; pg. 615/616)
Rescisão contratual e reintegração de posse. Promessa de c/v. Devolução do sinal.
Despacho. Carmen Borges Moraes interpõe agravo de instrumento contra o despacho que não admitiu recurso especial assentado em ofensa aos artigos 1094, 1095, 1096 e 1097 do Código Civil, além de dissídio jurisprudencial.
Insurge-se, no apelo extremo, contra o acórdão assim ementado:
"Ações ordinárias. Rescisão de contrato e reintegração de posse. Desfazimento do negócio e retorno das partes ao ‘statu quo ante’, respondendo o culpado por perdas e danos. Recursos conhecidos e providos, em parte. A inadimplência contratual, por si é motivo justificador para rescisão do contrato de compra e venda e as partes hão de retornar ao ‘statu quo’. O sinal de negócio, em sendo tão-só como princípio de pagamento, não demanda interpretação e assim, desfeito o negócio, essa quantia haverá de ser devolvida, respondendo o culpado, entretanto, por perdas e danos, quando for o caso."
Decido.
Argumenta a recorrente que o contrato foi firmado sem cláusula de arrependimento, tendo as arras caráter penitencial. Assim, sustenta que não poderia ser devolvido o sinal. Interpretando o contrato, concluíram os julgadores, verbis:
"...o ‘sinal’ como restou explicado, sem dúvida, considera-se e foi considerado ‘como princípio de pagamento’ (não demanda outra interpretação) e nos termos do artigo 1096, do Código Civil, desfeito o negócio, sem cláusula de arrependimento, haverá de ser restituído, vedada, pois, similitude com as arras penitenciais. Os dois outros pagamentos, complementação do preço, conquanto inserido o caráter ‘prosolvendo (artigo 1095 do CCB)’não têm esta conotação porque somente o sinal é que pode ser perdido, segundo o perfil do artigo 1095, do citado Código Civil, e não o ‘quantum’ destinado a complementar o pagamento. A intenção das partes tem de estar, no consoante, com o roteiro legal, sendo o mais despropositado e passível de nulidade ‘ex radice.’"
"(...)
No preâmbulo do instrumento consta que ‘a quantia de R$ 50.000,00 (cinqüenta mil reais), em moeda corrente do país, a título de sinal e princípio de pagamento’. Portanto, contrato sob a égide das arras confirmatórias.
Também não é possível acolher a tese da apelante de admitir o valor de R$ 50.000,00 como arras penitenciais. Não é isto que está expresso no contrato, nem dele se pode deduzir com segurança. Por outro lado, o valor dado a título de princípio de pagamento (art. 1094, CC) atinge o percentual de 75% do valor total do bem, o que não atende aos objetivos da simples sanção pelo exercício do direito de se arrepender, finalidade das arras penitenciais.
As arras, para terem efeitos penitenciais, ensejando a perda do sinal em desfavor da parte que lhe deu causa, têm que estar expressamente definidas no contrato. Do contrário, terão efeito meramente confirmatório, ou seja, terão somente a finalidade de demonstrar a existência da composição final de vontades."
Há decisão desta Corte no tocante ao tema, vejamos:
"Civil. Promessa de compra e venda de imóvel. Arras confirmatórias. Arrependimento da compradora. Inteligência dos arts. 1094 a 1097 do Código Civil.
Ordinariamente, as arras são simplesmente confirmatórias e servem apenas para início de pagamento do preço ajustado e, por demasia, se ter confirmado o contrato, seguindo a velha tradição do direito romano no tempo em que o simples acordo, desvestido de outras formalidades, não era suficiente para vincular os contratantes.
O arrependimento da promitente compradora só importa em perda das arras se estas foram expressamente pactuadas como penitenciais, o que não se verifica na espécie.
Recurso não conhecido." (Resp nº 110.528/MG, 4ª Turma, Relator o Ministro Cesar Asfor Rocha, DJ de 1/2/99)
Em hipótese semelhante à presente, de minha relatoria, concluí:
"... o Tribunal a quo, no acórdão recorrido, afastou a declaração de perda da parcela paga pelo promitente comprador, já que não havia cláusula contratual prevendo essa sanção, observando serem inconfundíveis prestações contratuais com as arras previstas no art. 1097 do Código Civil. Além disso, se prejuízo houvesse, deveria ser comprovado e cobrado através de nova ação.
As arras, sem dúvida, não podem ser confundidas com simples prestações e, no caso, o Tribunal decidiu pela inexistência daquelas após examinar cláusulas do contrato de promessa de compra e venda.
Na instância especial, porém, é vedada a interpretação de contrato com o fim de revelar o sentido das normas pactuadas, a intenção das partes e, na hipótese presente, a natureza da parcela adiantada, conforme jurisprudência consolidada na Súmula nº 05-STJ..." (Resp nº 61.534/SP, 3ª Turma, DJ de 2/12/96)
Nestes termos, nego provimento ao agravo.
Brasília 16/4/2001. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Relator. (Agravo de Instrumento nº 374396/DF; DJU 19/6/2001; pg. 741)
Rescisão contratual e reintegração de posse. Promessa de c/v. Devolução do sinal.
Despacho. Dulce Maria D’Assunção interpõe agravo de instrumento contra o despacho que não admitiu recurso especial assentado em ofensa aos artigos 5º, incisos XXXV e LV, e 93, inciso IX, da Constituição Federal, 82 e 145, inciso II, do Código Civil, 20, 21, 458, incisos I e II, do Código de Processo Civil, além de dissídio jurisprudencial.
Insurge-se contra acórdão assim ementado:
"Ações ordinárias. Rescisão de contrato e reintegração de posse. Desfazimento do negócio e retorno das partes ao ‘statu quo ante’, respondendo o culpado por perdas e danos. Recursos conhecidos e providos, em parte. A inadimplência contratual, por si é motivo justificador para rescisão do contrato de compra e venda e as partes hão de retornar ao ‘statu quo ante’. O sinal de negócio, em sendo tão-só como princípio de pagamento, não demanda interpretação e assim, desfeito o negócio, essa quantia haverá de ser devolvida, respondendo o culpado, entretanto, por perdas e danos, quando for o caso."
Os embargos de declaração foram rejeitados.
Decido.
Cabe ressaltar, inicialmente, que o recurso especial não se presta para a análise de dispositivos constitucionais eventualmente violados, ficando afastada, portanto, qualquer consideração acerca dos mesmos.
Outrossim, verifica-se que foi dada a prestação jurisdicional requerida, baseando-se os julgadores no contrato, fatos e provas constantes dos autos para firmar sua convicção, fundamentando devidamente as decisões e indicando os dispositivos legais que entenderam aplicáveis ao caso.
Argumenta a recorrente que não há como admitir a licitude do objeto do contrato que ora se discute, vez que se trata de um bem imóvel em situação ilegal, fazendo parte de um loteamento irregular. O trecho do aresto recorrido que trata do tema vem assim fundamentado:
"(...)
Examinando o contrato que consta dos autos, promessa de compra e venda, conclui-se claro que a apelante negociava o imóvel, situado em condomínio irregular, adquirido de terceira pessoa, sabendo que não se tratava de transmissão de propriedade, uma vez que não há referência à matrícula junto ao registro de imóveis, apresentando, tão-somente, anotação em cartório de notas. Logo, contratava obrigação de transferir a propriedade, mediante instrumento que sabidamente não é hábil, por si só, para transferir o domínio. Além do mais, pela notoriedade da natureza do imóvel que adquiria, tinha ciência das condições ínsitas àquela negociação, o que o torna integralmente válido e eficaz entre as partes, pois não padece de nenhum vício de vontade."
Quanto ao vício de vontade, que o Tribunal entendeu não existir, nada alega a recorrente. Ademais, aqui cabe o entendimento de que "a ninguém é lícito tirar proveito de sua própria torpeza" (Resp nº 2.992/SC, 4ª Turma, Relator o Ministro Cesar Asfor Rocha, DJ de 5/8/96).
No tocante à verba honorária, entende a recorrente que a recorrida sucumbiu em grande parte das demandas, sendo incabível a condenação que se impôs à ora agravante a título de honorários advocatícios e custas. A questão assim foi tratada:
"(...)
O pedido de nulidade do contrato ou alternativamente a sua postulada rescisão, por parte de Dulce contra Carmen não prosperam, sob todas as luzes, mas a recíproca não é verdadeira, isto é, há de se proclamar procedente em parte, nessa conjuntura, os pedidos de Carmen contra Dulce, na ação rescisória c/c reintegração de posse e perdas e danos, pela comprovada inadimplência e procedente, em parte, a reconvenção para garantir à compromissária-compradora, desfeito o negócio, o retorno ao ‘statu quo ante’ e devolução das quantias.
Pelo exposto, dou provimento parcial aos recursos e julgo improcedente a ação ordinária que Dulce Maria D’Assunção move contra Carmen Borges Moraes (Apelação Cível nº 17.806-4) e julgo procedentes em parte a ação que Carmen Borges Moraes move contra Dulce Maria D’Assunção e a reconvenção respectiva (Apelação Cível nº 20.919-2), declaro rescindido o contrato de promessa de compra e venda firmado pelas partes, reintegrando a compromissária-vendedora na posse do imóvel e móveis descritos e condenando a compromissária-compradora ao pagamento, a título de perdas e danos pelo uso e gozo do imóvel, dos alugueres correspondentes até a efetiva reintegração, bem como condenada pelos estragos porventura ocasionados aos mesmos, taxas, impostos e despesas condominiais, em sendo o caso, tudo através de liquidação por arbitramento. Fica Carmen Borges de Moraes condenada a devolver a quantia recebida, de R$ 65.000,00 (sessenta e cinco mil reais), corrigida monetariamente, a partir do desembolso, fazendo-se a compensação dos valores e expedindo, se necessário, mandado reintegratório. Condeno, ainda, Dulce Maria D’Assunção ao pagamento de 80% (oitenta por cento) das custas dos processos e R$ 7.000,00 (sete mil reais) de honorários advocatícios, nos precisos termos dos artigos 20 e 21, do CPC."
"(...)
O contrato validamente firmado obriga os contratantes, fazendo lei entre as partes, sendo certa a responsabilidade daquele que descumpre com qualquer das cláusulas ajustadas. No caso em tela, a apelante descumpriu com o dever de pagar a Segunda parcela, inadimplemento que foi reconhecido quando afirmou haver deixado de pagar porque ‘não conseguiu levantar a totalidade do numerário para a quitação do débito’.
Portanto, incontroverso que o contrato deve ser rescindido por culpa da apelante, passo à análise dos efeitos desta rescisão, de acordo com os termos das cláusulas contratuais ajustadas."
Vê-se, portanto, que o sucumbimento da ora agravante foi quase total, descabendo, portanto, a irresignação.
O dissídio jurisprudencial não restou demonstrado ante a ausência do indispensável cotejo analítico, mediante a transcrição de trechos dos arestos tidos por paradigmas e daquele proferido nestes autos, nos moldes exigidos pelo artigo 541, parágrafo único, do Código de Processo Civil.
Ante o exposto, nego provimento ao agravo.
Brasília 16/4/2001. Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, Relator. (Agravo de Instrumento nº 374.394/DF; DJU 19/6/2001; pg. 739/740)
Software livre - O futuro e a liberdade digital - Pedro Antonio Dourado de Rezende*
O fundador do Movimento Software Livre, Richard Stallman, abriu no sábado (2/2/02) a 3ª. edição do Fórum Internacional Software Livre – uma das atividades do Fórum Social Mundial 2002, realizado em Porto Alegre (RS). Nesta edição do FSM, Stallman também participa, como debatedor, na conferência "Saber, direitos de reprodução e patentes". Poucos leitores se dão conta da importância e do alcance do movimento por ele fundado para o futuro da cidadania no mundo globalizado. Dentre os que têm alguma idéia do que seja o software, poucos sequer sabem o que pode significar a sua liberdade. Esta lacuna de conhecimento terá conseqüências dramáticas, particularmente nas ações dos legisladores e operadores do Direito, e para o futuro que estamos construindo para nossa civilização.
O software representa um processo intermediador da comunicação humana em meio digital. Trata-se, sob um certo ângulo de análise no campo teórico do Direito, de um processo constituído, por um lado, pela funcionalidade que dele se almeja ou supõe; e, por outro, pela inteligência que nele codifica esta funcionalidade, visando torná-la efetiva. A funcionalidade que se almeja do software está na sua especificação (que lhe dá origem) e na sua interface com usuários (que lhe dá a utilidade de um artefato). De outra parte, sua funcionalidade efetiva está na sua lógica – que lhe dá valor semiológico, impregnando de sentido os símbolos cuja produção e consumo intermedeia. E diante da sua inexorável penetração nos processos sociais, sua funcionalidade efetiva também está, cada vez mais, na interface de sua lógica com sistemas e normas jurídicas – que dá valor legal aos seus efeitos. Sob este ângulo, o software se compara à figura mitológica de Janus, com suas duas faces. Uma, a que lhe dá o programador. E outra, a que lhe dá o usuário. O programador produz a lógica do software a partir da utilidade que dele supõe o usuário. E o usuário produz a utilidade do software a partir da lógica que dele supõe o programador.
As imperfeições e limitações humanas fazem-no, assim, uma personalidade cindida, cuja evolução ensejou um alter ego – o produtor do software. A indústria do software se apresenta historicamente como intermediadora nesta cisão, para controlar seus efeitos desagregadores e conseqüente ameaça esquizofrênica. Tais efeitos podem se espalhar por um amplo espectro, que vai desde efeitos inocentes, vazios de intenções ocultas, oriundos da deficiência comunicativa entre quem vai usar e quem vai fazer o software, passando por efeitos potencialmente "babelizantes" (como os da proliferação de distintos padrões e formatos na intermediação que operam), indo até o logro, tentação que cresce na medida em que o software se torna ubíquo intermediador da vontade humana, nas nossas modernas práticas sociais.
Como exemplo, basta citar a evolução dos instrumentos financeiros na nossa cultura tecnológica contemporânea. Assim, o controle que exerce este alter ego equivale ao poder de uma nova norma, de natureza metalinguística. Uma norma que, quando esvaziada de conteúdo ético, se transforma em inédito poder político.
Quem hoje detém este poder é o ramo da indústria que emerge do maior empreendimento da história: a indústria do software. Nunca, na história da humanidade, um empreendimento gerou tanta riqueza em tão pouco tempo. Seu poder metalinguístico permite-lhe determinar dois fatores cruciais para o futuro da cidadania. Um deles é a dependência da sociedade global a artefatos e semiologias proprietárias, softwares que se comunicam em linguagem privada enquanto interpretam, julgam e decidem, segundo lógicas opacas, em nome de quem os usa ou os disponibiliza. O outro fator é a legitimação desta dependência por meio de uma aliança de interesses entre seu alter ego e poderes estatais, sob a égide de ideologias fundamentalistas de mercado, explicitadas no consenso de Washington e no esforço de uniformização de jurisprudências do direito comercial e da propriedade intelectual – como nos acordos WIPO, ALCA, OMC etc. Esta aliança emerge na medida em que poderes públicos e atores econômicos de larga escala se dão conta das vantagens que lhes representam a eficiência econômica e a capacidade de controle permitidas pela intermediação do software, na comunicação necessária aos seus processos.
A ação desta aliança se articula na direção de abolir, das práticas sociais futuras, processos comunicativos que representem ineficiências operacionais aos seus aliados – quer sejam as que tomam a forma de risco de fraude e responsabilidade pelo manuseio de documentos, para poderes públicos e agentes econômicos de larga escala;, ou as que tomam a forma de práticas mercantis pouco eficazes ou modelos de negócio que competem com mais eficácia, para o alter ego da produção do software. Acontece que os processos a serem abolidos são os que melhor oferecem ao cidadão o direito de saber, em linguagem pública, o quê e a quem estará consentindo ou anuindo, ao se comunicar. Isto só poderá se dar através da livre lavra de sua marca pessoal em instrumentos jurídicos dotados de estabilidade ontológica, ou da intermediação de software que seja de sua livre escolha, não discriminatório em sua capacidade comunicativa e transparente em sua lógica.
Por meio da assinatura cursiva, de próprio punho, em documentos escritos numa linguagem humana sobre um suporte físico – o papel –, a tradição jurídica alcançou, através da jurisprudência dos contratos, alguma forma de equilíbrio de riscos e responsabilidades entre partes contratantes. E através da intermediação de softwares que implementam padrões e formatos digitais de conhecimento público, e que sejam externamente auditáveis, a manutenção deste equilíbrio também pode ser buscada.
Porém, sob o fascínio que as promessas da tecnologia-como-panacéia exercem sobre o homem contemporâneo, a aliança entre técnica e poder procura blindar, contra o escrutínio social, a inteligência que o software introduz nas interlocuções que intermedeia. Logo examinaremos, com mais atenção, o porquê. De início, basta observar que tal blindagem serve para preservar a eficácia do negócio predominante em torno do software, que prioriza o seu caráter de propriedade intelectual – uma das faces de Janus, em detrimento de seu caráter de inteligência intermediadora, sua outra face. Enquanto a isto se presta, a opacidade desta blindagem cria também uma bola de neve de custo social, agregadora de desequilíbrios entre riscos e responsabilidades dos interlocutores que, por intermédio do software, produzirão efeitos no plano jurídico. Tal blindagem escamoteia o desequilíbrio jurídico introduzido por opacidades tecnicamente desnecessárias a esta intermediação, tornando qualquer das faces de Janus potencial inimiga da outra. A justificativa para a legitimidade de uma aliança com este propósito não pode ser apenas a produção econômica, pois os mesmos parâmetros se aplicariam também ao tráfico de drogas.
Novas funcionalidades, novas vulnerabilidades
O Movimento pelo Software Livre propõe um outro tipo de aliança. Uma aliança entre as duas faces do software – a do usuário e a do programador –, que o liberta da camisa-de-força que seu alter ego encarnado em poder econômico lhe impôs, sob o pretexto de salvar-lhe da esquizofrenia de Janus. Uma aliança que o submeta a um alter ego encarnado em valores humanistas, aqueles da tradição jurídica surgida a partir da Revolução Francesa, que privilegiam a liberdade humana sempre que esta se vê ameaçada. Como se vê hoje, pela liberdade do capital de tomar as rédeas e o controle do que bem entenda.
Num abuso de linguagem nada ingênuo, que confunde essas duas liberdades pela supressão de suas premissas, a expressão "livre comércio" tem sido usada e abusada para denotar o Livre exercício do poder econômico para controlar o Comércio. Denotasse expressão outra coisa, não teriam seus tratados tantas cláusulas, páginas e complexidades hermenêuticas. Denotasse outra coisa, não seria a aliança humanista (que engloba não só o movimento pelo software livre mas também outros, como o ambientalismo) a emergir da lupa sobre essas complexidades como verdadeira vítima.
Enquanto atraem, com sua força de gravidade, a bola de neve do custo social do software proprietário, a internet e as leis promulgadas a toque de caixa sobre o virtual, sob pretexto da realidade desta, formam o campo de batalha e os indutores das duas possíveis alianças em torno do software, já mencionadas. Por mais que se invista em segurança na internet, os incidentes nela só aumentam – entre fraudes, sabotagens e invasões, em velocidade maior que o próprio desenvolvimento da rede. A internet, fruto mais visível e cobiçado da aliança humanista pelo Software Livre, nada mais é do que um conjunto de padrões, formatos e softwares básicos, hoje públicos e livres, destinados à intercomunicação cooperativa, redundante e autônoma entre redes de computadores despidos do poder de discriminação do conteúdo nela comunicável. São padrões que evoluíram e amadureceram em seu próprio tempo, na ausência de qualquer pressão de natureza financeira. A aliança que lhe deu vida é a única estratégia até hoje conhecida capaz de realizar uma rede de comunicação digital aberta, global e ilimitada. Uma revolucionária infra-estrutura de comunicação, que teve sua explosão de sucesso devida não só a tais características, mas também ao seu custo operacional, marginal em relação ao das redes proprietárias que a realizam, descontados os custos imputáveis a novas vulnerabilidades, decorrentes da interconectividade das mesmas. Os usuários dos sistemas interconectados passam então a demandar a evolução dos mesmos, na forma de novas versões, que sejam compatíveis com o legado das anteriores e que possam explorar novas formas comunicativas, possibilitadas por esta fantástica infra-estrutura.
Tal pressão evolutiva produz, entretanto, resultados distintos nos modelos de negócio subjacentes às duas alianças possíveis. Para que mantenham seus fluxos de caixa, os produtores dos sistemas proprietários precisam antes oferecer novas funcionalidades nas novas versões dos seus produtos e, assim, justificar o custo final de suas atualizações aos licenciados. Novas funcionalidades, por sua vez, introduzem novas vulnerabilidades no software, o que leva sua evolução a estacionar em robustez, diante dos crescentes riscos do ambiente hostil e aberto onde irão operar. Um ambiente que passa a refletir, com realismo crescente, as condições das relações humanas na esfera da vida. Um ambiente que os sistemas proprietários não podem desprezar, pois é a capacidade de nele operar que hoje mais lhes agrega valor.
"Prova de imperícia"
Um sistema de software livre, por sua vez, evolui em seu próprio ritmo, por esforço cooperativo. Ele é o marketing de si mesmo. A licença de uso de um software livre, na forma da GPL ["general public licence", o modelo de licença de uso de software sob a qual são distribuídos os softwares desenvolvidos no projeto GNU, um dos vários projetos de integração e coordenação de desenvolvimento de software livre], oferece a qualquer um a liberdade de dispor-se dele como bem entender, exceto para suprimir esta liberdade a terceiros. Tal licença é portanto cobrada não em dólar, mas na moeda do compromisso pela preservação desta liberdade, através da exigência de que seu código permaneça aberto, em adaptações ou redistribuições. Isto é, que o software seja distribuído com seu código fonte – uma espécie de código genético através do qual foi construído pelo programador antes de ser traduzido para a linguagem da máquina onde irá operar, e através do qual sua lógica se expõe a outras inteligências humanas.
Com o software livre, só se ganha indiretamente: por valor agregado na distribuição, por serviço prestado, por adaptação sob encomenda, por qualquer meio exceto a licença de uso. Os sistemas de software livre evoluem hoje pelo esforço coordenado de mais de 300.000 programadores, dentre os melhores, engajados neste esforço cooperativo e humanista.
Resta então, à aliança entre técnica e poder, induzir necessidades para novas funcionalidades no seu modelo de negócio, ou competir com um modelo socialmente mais eficiente. A julgar pelos discursos de seus executivos e pelo efeito dos seus lobbies, a estratégia escolhida parece inequívoca. Para ser bem-sucedida, ela precisa estender a blindagem inicial, da lógica do software proprietário contra o escrutínio social, ao desequilíbrio de riscos e responsabilidades que o rolo compressor do seu modelo de negócio introduz, nas novas práticas sociais que induz, contra a sensibilidade jurídica de legisladores e magistrados. Para fazê-lo sem atacar esta sensibilidade, tais lobbies precisam sobrevalorizar, no plano cultural, a necessidade de mecanismos compensatórios ao direito de propriedade intelectual diante da crescente ineficácia, na esfera virtual, das normas tradicionais deste direito. A pirataria e o cibercrime se tornam, com a ajuda da mídia, hediondos. Não por acaso, a legitimação desta dupla blindagem poderá então servir simultaneamente a dois propósitos.
Um desses propósitos será o de engessar a dependência da sociedade globalizada a práticas comunicativas digitais que sejam opacas e discriminatórias, qualidades que produzem o "efeito rede" indutor desta dependência, também conhecido como "vendor lock-in". Hoje, os bancos de dados do governo inglês estão, por contrato, sob controle da Microsoft. Hoje só se acessa, ou só se submete, um documento eletrônico sensível ao governo inglês a partir de alguma das últimas versões de software de propriedade da referida empresa. O mesmo ocorre, no Brasil, com algumas funções do "internet banking" da Caixa Econômica Federal. É claro que as explicações oficiais para esta discriminação ganham respostas técnicas no mínimo ambíguas à linguagem jurídica: incompatibilidade dos "concorrentes" com novos padrões de comunicação, supostamente públicos. Mas quem submeter software proprietário à engenharia reversa, para tentar descobrir se o padrão que nele funciona é mesmo algum suposto padrão público, estará violando as leis de proteção ao direito autoral do proprietário do software – do seu produtor.
O outro propósito será o de nos vender, no mercado das idéias, a opacidade e a discriminação como se fossem uma segurança jurídica. Pela nova lei do direito autoral americana – o DMCA –, se o produtor de um software afirmar que um dos seus dispositivos é destinado a proteger o direito autoral de usuários deste software ou de seus intermediários, qualquer divulgação sobre a violabilidade desse dispositivo será criminosa. Antes que faça prova de má-fé ou de imperícia contra o alter ego do software, tal divulgação fará prova contra o acusador, impugnando-se como prova contra o primeiro, por ter sido "ilegalmente" obtida.
Exatamente como ocorrido em recentes litígios, por exemplo no caso entre a associação dos estúdios de Hollywood e os desenvolvedores de software livre, envolvendo um programa que desarma um dispositivo de venda casada de licença de uso de software e conteúdo de DVDs, rotulado pelo produtor como proteção contra cópia (CSS). Ou no caso entre a associação das gravadoras musicais e um professor de segurança computacional da Universidade de Princeton, Edward Felten, por disputa semelhante. Ou no caso entre uma empresa americana de software para publicações eletrônicas (Adobe) e Dmitri Skliarov, um aluno russo de doutorado em computação que ficou seis meses preso (hoje em liberdade vigiada e sob fiança) após apresentar "prova de imperícia" contra aquela em congresso científico nos EUA. Ou, pior, como suspeitam os serviços de inteligência do governo francês, de que sua indústria tenha sido vítima contumaz de espionagem perpetrada através de conluio no módulo de segurança do sistema operacional preferido por nove entre dez estrelas, suspeita esta que esses serviços nunca poderão investigar, devido às características do mecanismo de assinatura digital que permitem este tipo de conluio.
O curso do destino
Tal estratégia de dupla blindagem está produzindo seus efeitos sobre a aliança contra a qual competem seus adeptos. O efeito decorrente de seu primeiro propósito é o de imputar, às práticas comunicativas digitais livres e transparentes, a suspeita ou o crime de apropriação indébita de propriedade intelectual. De "roubo" de idéias que alguém tenha registrado, em algum tribunal da inquisição pós-moderna, como originalmente suas. Idéias como a de venda eletrônica em um clique, ou como a de links para hipertexto, ou como a do cursor que passeia ativo pela tela do computador. O efeito do segundo propósito é o de imputar, a essas mesmas práticas, a suspeita e a responsabilidade pelos desequilíbrios de riscos que emergem não só dessas, mas também daquelas "protegidas" por opacidade e discriminação.
É exemplo deste efeito a propaganda subliminar que associa a habilidade de programação, a independência e a autonomia no seu exercício com a intenção criminosa, expressa na transformação vertiginosa que o sentido da palavra "hacker" tem sofrido, amplificada pela grande mídia. Porém, o efeito mais dramático de tal estratégia poderá emergir da combinação desses dois efeitos. A saber: o de perpetuar a dependência da sociedade globalizada a um modelo de negócio cujo custo social lhe debita descontrole orçamentário, supressão de direitos básicos de cidadania, tais como a liberdade de escolha das formas comunicativas de sua confiança, e o pior: desequilíbrio e ineficácia jurídica crescentes, camuflados como seus opostos.
Sob vãs promessas de tecnologias que virão, em próximos lançamentos, resolver os problemas da natureza humana, o custo social do modelo predominante de negócio em torno do software – o modelo proprietário – vai sendo camuflado e protegido por esta dupla blindagem, enquanto a realização de tais promessas é adiada. Tudo encoberto pela aura de sacralidade com que o direito ao lucro em negócios tidos por legítimos é ungido pelo fundamentalismo de mercado. Enquanto uma empresa leva cinco anos para ser condenada e apenada, em processo judicial de altíssimo custo, por práticas monopolistas predatórias na exploração duma tecnologia digital "de ponta", esta tecnologia esgota seu ciclo de utilidade e a pena fixada resulta para a empresa em uma fração do poder amealhado por tais práticas. E o ciclo se reinicia, com a próxima tecnologia "de ponta", a exemplo da sentença sobre a guerra dos browsers, seguida do lançamento da plataforma .net.
Enquanto os sacerdotes do fundamentalismo de mercado combatem outros fundamentalismos, também comandam o processo de globalização no qual se enfrentam as duas possíveis alianças em torno do software.
Se o ângulo de observação da luta entre essas possíveis alianças for o da propaganda neoliberal, ele mostrará a entrada em cena da arma jurídica que poderá dar vitória à aliança entre a técnica e o poder contra o "eixo do mal" digital, também por ela rotulada de "anarquismo digital". Em tramitação no Congresso americano, Security Systems Standards and Certification Act (o SSSCA) diz: "É crime criar ou vender qualquer tipo de equipamento digital que não inclua e utilize tecnologias de segurança certificada e aprovada pelo governo federal" [dos EUA].
Estas "tecnologias de segurança" destinam-se a bloquear, no equipamento certificado, a execução de software que não tenha sido digitalmente assinado pelo órgão estatal competente, controlador global da distribuição legal dos intermediadores virtuais da inteligência humana. Será também crime "remover ou alterar qualquer tecnologia de segurança certificada de um aparelho digital, transmitir ou tornar disponível qualquer material protegido por copyright onde as medidas de segurança associadas tenham sido certificadas e removidas ou alteradas".
Alguém apostaria na possibilidade do SSSCA, uma vez aprovado, vir ou não a se tornar objeto de lobby nos tratados WIPO, ALCA, OMC etc? Ou de softwares livres como o sistema operacional Linux, o servidor web Apache, o servidor de correio eletrônico Sendmail (os dois últimos os mais populares em suas categorias) virem a ser criminalizados ou certificados com suas licenças de uso atuais pelo governo federal americano?
São esses temas que Richard Stallman, notável figura pública a quem rendo minha homenagem, veio expor e debater em Porto Alegre. São esses temas que George Orwell abordou, entre outros, em sua sombria ficção literária publicada um ano antes da descoberta do transistor. São esses temas que Lawrence Lessig, outro Don Quixote das tradições humanistas e professor de Direito Constitucional da Universidade de Harvard, trata em seu recém-lançado e brilhante livro The Future of Ideas. São esses temas que a grande mídia evita penetrar, entre outros motivos porque não dão ibope.
Porque afetam a textura do futuro que estamos construindo para nós mesmos e para as futuras gerações, esses temas não devem merecer atenção apenas de técnicos. Elas devem merecer a atenção de qualquer cidadão deste mundo globalizado, mesmo contra recomendações de autoridades, como as oferecidas pelo presidente do Serviço Federal de Processamento de Dados (Serpro), Wolney Martins, no seminário e-Gov [28/11/01] e em entrevista à revista eletrônica Computerworld, quando interpelado sobre certos riscos que estariam correndo os cidadãos brasileiros, sob a vigência da medida provisória 2.200, que decreta a validade jurídica de documentos eletrônicos no Brasil [veja remissões abaixo].
Nossa ação, ativa ou passiva, nas escolhas que fazemos ou aceitamos e nas decisões que tomamos ou acatamos, como cidadãos ou como agentes econômicos, ao longo do confronto entre essas duas possíveis alianças, terá influência decisiva no que virá a ser a cidadania na sociedade globalizada do futuro. Não podemos escolher nosso destino, mas podemos influenciar no seu curso. A ignorância, o temor ou a vergonha da própria ignorância, a preguiça e a arrogância intelectual não servirão de desculpas perante a história. Pensar globalmente e agir localmente é filosofia que anima o Fórum Social Mundial. Uma filosofia que pode ser quixotesca, mas que aplaca inquietudes que assaltam nossa consciência sempre que lhe auscultamos com a devida atenção, em meio aos ruídos da hipocrisia coletiva a venerar a roupa nova do rei, tecida em tecnologia e costurada pela "suprema sabedoria" da mão invisível do mercado.
(*) Professor do Departamento de Ciência da Computação da Universidade de Brasilia; http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/segdadtop.htm; MetaCertificate Group member http://www.mcg.org.br
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Dispensa de estudo prévio de impacto ambiental. Áreas de florestamento para fins empresariais. Inconstitucionalidade.
Julgando o mérito de ação direta ajuizada pelo Procurador-Geral da República, o Tribunal declarou a inconstitucionalidade do §3º do artigo 182 da Constituição do Estado de Santa Catarina, que dispensava o estudo prévio de impacto ambiental no caso de áreas de florestamento para fins empresariais, por violação ao art. 225, § 1º, IV, da CF ("Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. § 1º Para assegurar a efetividade desse direito, incumbe ao poder público: ... IV – exigir, na forma da lei, para instalação de obra ou atividade potencialmente causadora de significativa degradação do meio ambiente, estudo prévio de impacto ambiental, a que se dará publicidade."). (ADIn 1.086/SC; Relator Min. Ilmar Galvão, 7/6/2001. Informativo STF nº 231, 4 a 8 de junho/2001, pg. 2)
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