BE417
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O Parcelamento do Solo Urbano em seus Aspectos Essenciais
Como Lotear Uma Gleba
Acaba de ser lançado o livro Como lotear uma gleba - o parcelamento do solo urbano em seus aspectos essenciais (loteamento e desmebramento) de autoria de Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei.
O Livro foi editado pela Universidade SecoviSP e preenche sentida lacuna editorial sobre tema que merece a atenção de vários profissionais do ramo imobiliário, inclusive registradores prediais.
Os autores são conhecidos dos registradores imobiliários brasileiros. Vicente Celeste Amadei é diretor da Vice-Presidência de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente do SecoviSP, desenvolvendo suas atividades há mais de 50 anos. Vicente de Abreu Amadei é juiz de direito e professor universitário. Publicou artigos na Revista de Direito Imobiliário além de ter proferido palestras e cursos para registradores e notários.
O livro poderá ser encontrado nas melhores livrarias ou solicitado diretamente pelos fones (11) 5591-1238/5591-1239 ou pelo mail [email protected]
A utopia da cidade perfeita
Ricardo Henry Marques Dip
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Pode alguém pensar que a suprema felicidade esteja em receber, com pontualíssimo rigor cronométrico, um guardanapo, um prato e um bocado de alimento. Há mesmo alguns que pensam, seriamente, que a distribuição periódica de um prato de lentilhas impediria os crimes: crêem na eficácia do escambo do livre arbítrio por legumes gavinhosos. Guardanapo, prato e uma ração de alimentos era isso que se distribuía com pontualidade aos habitantes solares, segundo o relato do Almirante ao Grão-Mestre, na Civitas Solis de Tomás Campanella.
A seqüência descritiva da Cidade do Sol revela sabidamente que essa repartição de refeições balanceadas cifrava a praxe de uma cidade panóptica, dividida mistericamente em sete círculos, cada qual deles ligando-se aos outros por quatro caminhos, que terminavam em quatro portas, voltadas estas aos quatro pontos cardeais (guardados, noite e dia, por sentinelas). Nela conviviam os nativos com os de fora ali subjugados ou espontaneamente submissos, todos a aceitar (ou fingindo aceitar) as milícias, os magistrados (que recebiam um pouco mais e melhor de ração alimentar), as instruções e os costumes solares. Se não havia cárceres -salvo uma torre que se destinava aos inimigos e rebeldes-, não era porque se acreditasse que a retribuição era paleolítica (essa idéia é típica da prevenção tardo-modernista: la vengeance n'a plus bonne réputation -Alfred Grosser), mas era porque a cidade, toda ela, tinha caráter prisional: vigiava-se, de toda parte, e punia-se com o exílio, a pancada, a privação da mesa e até com a morte, sem contar ainda que os sodomitas levavam, por dois dias, os sapatos amarrados ao pescoço, sinal de que tinham invertido a ordem das coisas (daí que os pés se pusessem na cabeça).
A suprema regência da Civitas Solis era exercitada por Hoh -ou Metafísico (na linguagem do Almirante)-, um sacerdote dotado de poder absoluto e perpétuo, a quem se submetiam as questões todas, espirituais e temporais. A seu juízo, cessavam todas as controvérsias. Símile poder absoluto, na cidade, corresponde a uniforme urbano: os homens e as mulheres que se vestem igualmente (a diferença nas togas estava em que, as das mulheres, lhes cobriam os joelhos); todos usavam nas cidades trajes brancos, salvo à noite, quando se permitiam vestes vermelhas; a hábito citadino: além dos médicos, também os magistrados regulamentavam os banhos dos habitantes solares; a unanimismo demoscópico: todos têm na civitas, sem despesa alguma, uma perfeita instrução (da qual não se diverge, minimamente, ou já não seria perfeita…).
A cidade perfeita havia de ser mesmo um cárcere ou de ser uma ilha, cercada, uniformemente, de água, por todos os lados, scl., de mesmos por todos os contornos. A insularidade paradisíaca -registra Paulo Ferreira da Cunha (Constituição, Direito e Utopia)- é de cariz pagão (o paraíso dos judeus e cristãos está, diversamente, situado no "umbigo do mundo"). A insulação dogmatiza, favorece o esquematismo racionalista, mas da ilha nasce (ou propende nascer) um governo global.
Na ilha da Utopia, suas 54 cidades foram construídas com um mesmo projeto; nelas, todos falam a mesma língua, todos têm os mesmos hábitos, todos vivem sob as mesmas leis e as mesmas instituições. Thomas More chegou a dizer que "quem conhece uma de suas cidades, conhece todas". Amaurot, edificada, por projeto de Utopos, na encosta de uma colina, acha-se cercada de alta muralha, com torres e fortins, e, em três dos seus lados, há um fosso profundo e largo, obstruído por vegetação espinhosa; cada casa tem uma porta principal e uma porta aos fundos; não existe a propriedade privada: todos podem entrar e sair livremente das casas (também Platão, na República: "ninguém possuirá bens próprios nenhum… ninguém terá habitação ou depósito algum, em que não possa entrar quem quiser" -416 d). Mas, salvo quando se cogite de um homem novo, a idéia de plena liberdade, para todos, de entrar e sair em todas as casas, é a negação da liberdade (onde tudo se permite, nada, enfim, se permite).
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A idéia de onde, contudo, não se compagina com a utopia. Estar em Amaurot ou na Cidade do Sol é, exatamente, estar em lugar nenhum (equivale a dizer, no utopos, ou-topos, um não-onde), uma cidade em parte nenhuma, cidade sem lugar, cidade da fantasia (ou talvez se pudesse dizer melhor: ilha da fantasia). Racionalismo (ou esquematismo racionalista) a outrance -a razão supera o topos, i.e., o terreno sólido em que as cidades reais, com seus problemas des-uniformes, se edificam-, antinaturalidade, geometrismo arquitetônico, dirigismo, insulação dos homens: tudo isso povoa as utopias de todo gênero.
A ilha isola os homens; afasta-lhes do temível perigo da des-uniformidade que as contaminações exteriores poderiam produzir. O estadualismo dirigista - com a "tendencial ou total ausência de espaço privado" (Paulo Ferreira da Cunha)- ou outra forma de dirigismo massivista (Miguel Ayuso já o vinha indicando em Después del Leviathan e, agora, mais o esclarece em El Ágora y la Pirámide) são o instrumento de realização minimalista e constrangida de algo desse utopos. O fracasso da realidade -a realidade do pecado- sugere o avesso da natureza: a nostalgia de um mundo feliz, para o qual, pensam os utopistas, seria indispensável um homo novus, uma cidade virtual, enfim, para um homem virtual, com uma geometria legal (Francesco Gentile). Utopiza-se até mesmo o retorno a uma natureza mítica (p.ex., o bon sauvage de Rousseau), não faltando a conjunção (uniformização ou ao menos simetria) entre o direito e o avesso -numa fórmula muito ao gosto do pós-moderno-, como se lê em "Os Teólogos", no Aleph de Borges: também Campanella acenara à comunidade (de bens) que a todos situava numa perfeitamente feliz condição assimilável de rico e pobre.
O sonho da felicidade compulsória, porém, traz consigo a interpelação sobre a possibilidade de que uma felicidade obrigatória seja ainda felicidade (assim, impressivo é o desfecho da Lenda do Grande Inquisidor nos Irmãos Karamazovi de Dostoievski). O inquisidor de Sevilha mandou prender Jesus Cristo, ali ressurgido: inculpou-O de não ter cedido às tentações do deserto; os homens teriam sido, então, compulsoriamente felizes. Morrer por amor, morrer pela liberdade, não têm sentido num projeto de felicidade compulsória e geométrica para todos os homens. Essa "felicidade", entretanto, não assegura sequer a liberdade.
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O racionalismo das utopias convive com o irracionalismo das ideologias de que se nutre: o utopos racionaliza-se pela só coerência interna das ideologias de que se alimenta, mas não se desvela (nem poderia essencialmente manifestar-se) como coerência e consistência com a realidade; se o pudesse, seria já um topos. Mas ao racionalismo pode ainda opor-se a razão. Transitando pelo gênero das utopias literárias -mas à maneira de um contramodelo utópico- Robert Benson (The Lord of the World ) descreveu uma distopia da passagem da cidade neo-edênica ao inferno, tema que também se acha em O Breve Relato Sobre o AntiCristo de Vladimir Soloviev, ainda que, neste último, rematando, não numa aparente eutopia contra-utópica, mas numa profecia. Noutro contramodelo de utopia, Leonardo Castellani, com o admirável humor de El Nuevo Gobierno de Sancho, desvelou o modo como a sensatez de um homem, Dom Sancho I, o Único, pôde vencer o irracionalismo utópico. O bom senso assinala a prevalência da realidade (i.e., da natureza das coisas), sem suprimir o utopismo, enquanto princípio de ações transformadoras e realistas.
Cidades interditas ou ilhas, secularização do paraíso (Paulo Ferreira da Cunha), as cidades deduzidas more geometrico são as instituições panópticas, o grande cárcere, a necrópole dos homens reais. O utopista não pode transigir com a des-uniformidade, com a des-unanimidade; transitando entre o hedonismo e o utilitarismo, conta, quantifica, na sua cidade, forma nela e deforma quadras, lotes e sub-lotes, agrega e segrega-lhes polígonos: a natureza faz-se desenhos e números; avessa-lhe a figura (que é qualidade natural) por uma forma geométrica. Pudera que não houvesse esses animais predadores chamados homens, ou que, ao menos, eles não pensassem e quisessem tão pessoalmente. Que obstáculo terrível é a consciência pessoal: na hipótese Gaia (James Lovelock) os homens são como que epifenômenos da consciência de Gaia, a Terra, organismo gigantesco, vivo e auto-regulador. Não fossem os homens, esses "ínfimos organismos" de Gaia (como salienta a crítica aguda de Roberto de Mattei), não fosse a resistência humana, a cidade já estaria pronta. Edificá-la, nestes nossos tempos, seria só questão de usar pedras guardadas dos escombros do muro de Berlim. Os operários, esses serão os ínfimos de Gaia.
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Sei onde encontrar Vicente Celeste Amadei e Vicente de Abreu Amadei, quero dizer: o Vicente-pai e o Vicente-filho. Estão sempre em algum lugar: têm os pés no topos, talvez porque saibam experiencialmente as questões jurídicas da cidade -o saber afetivo é um poderoso antídoto ao utopos; talvez, adivinho, porque melhor tem os pés, hoje, na terra firme, quem tem os olhos bem dispostos, por esperança, noutro lugar. Sabe melhor o caminho quem sabe a que cidade se dirige. É legendário que Tales tropeçou na terra, por olhar para as nuvens; mas foi porque tomou a nuvem por Juno. O nosso Gustavo Corção, ao revés, descobriu as medidas na terra, olhando as coisas do céu.
Conheci Vicente Celeste Amadei faz já quase duas décadas. Conheci o pai antes do filho. Não me recordo desse encontro, nem então poderia aventar a amizade a que, um dia, chegaríamos. Aprendi a admirar seu sentido prático -esse é o matiz apreciável do jurídico- e a respeitar-lhe a vivida experiência com os problemas jurídicos da cidade tardo-moderna. O direito, como res iusta, pode conhecer-se ao modo (quase) especulativo -assim o conhecem os legisprudentes-, mas pode, e melhor, saber-se praticamente, vivendo-se, experienciando-se o justo.
Vicente de Abreu Amadei é meu colega na Magistratura de São Paulo. É meu amigo. É meu compadre (deu-me a alegria de batizar-lhe a Maria Luísa). Trago comigo a vaidade de o ter indicado ao saudoso Dinio de Santis Garcia, então Corregedor-Geral da Justiça do Estado, para integrar a equipe de corregedores dedicada, sobretudo, ao Direito Registral Imobiliário. Ostento ainda, com não menos vaidade, a indicação de seu nome para o magistério universitário (primeiro, na cadeira de Direito Romano; depois, na de Introdução ao Estudo do Direito). Se eu, já agora no meridiano de minha vida, tivesse a estatura de um Mestre (mas não tenho), se eu tivesse, ao menos, a elevada pretensão de ser Mestre (mas não tenho), o discípulo que eu teria, o modelo de discípulo que eu gostaria de ter, é Vicente de Abreu Amadei.
Estou certo de que O Parcelamento do Solo Urbano em seus Aspectos Essenciais - Como Lotear Uma Gleba preenche uma lacuna no Direito Imobiliário brasileiro. Não é cômoda a tarefa do jurista, do parcelador ou do estudante, quando, tendo, à frente, a imensidão do Direito Civil, tem de percorrer, moldados a seus cânones, uma situação de fato, uma trilha burocrática e uma vala registral. Um livro que não deixa de ser uma espécie de roteiro de viagem, pode ser dela também um bom companheiro, rendendo campo à meditação. Sobretudo, e é o caso, quando esse livro não empurra para uma ilha de não-onde, em que o remédio (em todo caso, de gosto amaríssimo) seja o clandestinismo imobiliário, mas contribui, lucidamente, para o topos da cidade.
Ou isso, ou é bom prepararmos os braços para carregar os entulhos da utopia.
* Ricardo Dip é Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, Professor da Faculdade de Direito de Alphaville (UNIP) e Professor convidado da pós-graduação da Faculdade de Direito da Universidade Católica de Buenos Aires
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