BE398
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Patrimônio de afetação
Tramitação da MP 2221/01
A Comissão de Desenvolvimento Urbano e Interior da Câmara dos Deputados promoveu no dia 10 de outubro corrente uma reunião de audiência pública sobre as recentes Medidas Provisórias n°s 2221/01 e 2223/01, a primeira alterando a Lei 4.591/64, para configurar a afetação das incorporações imobiliárias, mediante inserção dos arts. 30-A até 30-G à citada Lei 4.591/64, e a segunda criando a Letra de Crédito Imobiliário, a Cédula de Crédito Imobiliário e introduzindo algumas alterações na Lei 9.514/97. Participaram da reunião, como expositores e debatedores, o Sr. Aser Cortines, Diretor da Caixa Econômica, o Sr. Carlos Eduardo Sampaio Lofrano, Chefe do Departamento de Normas do Banco Central, o Sr. Rodrigo Daniel, Presidente da Associação Brasileira de Mutuários da Habitação, e o Sr. Melhim Namem Chalhub, advogado, membro do Instituto dos Advogados Brasileiros.
Aspecto suscitado por todos os parlamentares presentes foi a imputação de novas obrigações aos adquirentes de imóveis em construção. É que a MP 2221/01 estabeleceu que os adquirentes serão devedores solidários com o incorporador não só pelos débitos relativos à incorporação na qual tiverem celebrado contrato de aquisição de unidades, mas também pelos débitos pessoais do incorporador, inclusive os débitos decorrentes de imposto de renda e de contribuição social sobre o lucro do empresário-incorporador. Além disso, foram também destacadas as disposições contidas no § 2° do art. 30-C, pela qual os adquirentes estão impedidos de dar andamento na obra se houver débitos deixados pelo incorporador falido, e no art. 30-A, pela qual a afetação deixa de ser uma regra geral, aplicável a todas as incorporações, para ser um instrumento a ser utilizado a critério do incorporador.
A intervenção do Dr. Melhim Chalhub, que elaborou o anteprojeto de lei instituindo a afetação nas incorporações imobiliárias (divulgado no seu livro "Propriedade Imobiliária - função social e outros aspectos"), foi no sentido de esclarecer os fundamentos da teoria da afetação e sua aplicação nas incorporações imobiliárias, sobretudo à luz do princípio constitucional da isonomia e da tendência do direito moderno no sentido da proteção contratual e patrimonial nos contratos de massa. Na linha desses princípios, defendeu a aplicação da afetação a todas as incorporações, sustentando, também, a limitação das responsabilidades dos adquirentes, para que fiquem restritas ao pagamento das obrigações vinculadas à obra a que estiverem vinculados.
Transcrevemos abaixo o pronunciamento do Sr. Melhim Chalhub.
PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO
PROTEÇÃO DOS ADQUIRENTES DE IMÓVEIS EM CONSTRUÇÃO
Melhim Namem Chalhub
Advogado no Rio de Janeiro
Membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros
Melhim Namem Chalhub, em palestra proferida
em novembro/2000, Guarujá/SP. (Foto C.Petelinkar)
A proteção patrimonial dos adquirentes de imóveis em construção vem sendo reclamada com insistência pela sociedade, sobretudo depois que a falência da Encol provocou a paralisação de mais de setecentas obras em todo o país, deixando desprotegidas mais de quarenta mil famílias de adquirentes.
Com efeito, embora a Lei das Incorporações (Lei n° 4.591/64) contenha importantes mecanismos de proteção contratual dos adquirentes, baseados nos princípios da boa-fé objetiva e do equilíbrio das relações obrigacionais, a verdade é que do ponto de vista patrimonial há lacunas em virtude das quais os adquirentes se vêem expostos ao risco de perder suas economias, seja em caso de má administração dos recursos captados pelo incorporador, desvio de recursos, atraso de obra ou falência do incorporador.
O problema é socialmente relevante e vem se agravando nos últimos anos, até mesmo em razão do aumento de riscos dos negócios em geral. Sensível ao problema, o Instituto dos Advogados Brasileiros, acolhendo proposição de nossa lavra, aprovou anteprojeto de lei propondo seja a incorporação caracterizada como um patrimônio de afetação, e o encaminhou a parlamentares e a autoridades do Poder Executivo. Acolhida a idéia, foram apresentados 3 Projetos de Lei na Câmara dos Deputados, de n°s 2109/99, 3445/2000 e 3742/2000, nos quais é adotada a concepção formulada no IAB. Todos esses Projetos preconizam a proteção da incorporação em benefício dos adquirentes, de modo que, em caso de falência do incorporador, o acervo das incorporações não integre a massa concursal, ficando os adquirentes livres para prosseguir a obra.
Esses Projetos de Lei, na linha do anteprojeto do IAB, assim dispõem:
A) o acervo de cada incorporação imobiliária constitui um patrimônio de afetação, destinado à conclusão da construção e entrega das unidades aos respectivos adquirentes;
B) o patrimônio de afetação não se comunica com o patrimônio geral do incorporador, nem com os demais patrimônios de afetação do mesmo incorporador e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação;
C) estão fora da afetação os recursos financeiros que, embora captados na incorporação, excederem o custo da construção; assim, é lícito à incorporadora apropriar-se do excedente, até porque são recursos necessários à sua atividade empresarial;
D) cada patrimônio de afetação tem contabilidade própria, separada da contabilidade da empresa incorporadora;
E) cada patrimônio de afetação tem conta-corrente específica para movimentação dos seus recursos financeiros;
F) em caso de atraso da obra, paralisação da obra ou insolvência do incorporador, a Comissão de Representantes assume imediatamente a administração da incorporação e convoca assembléia geral dos adquirentes para deliberar pela continuação da obra ou liquidação do patrimônio de afetação;
G) a falência do incorporador não atinge os patrimônios de afetação, cujos acervos não são arrecadados à massa concursal; nesse caso, a Comissão de Representantes assume a administração da incorporação;
H) ainda em caso de falência, a Comissão de Representantes promoverá a venda, em leilão, das unidades imobiliárias que o incorporador ainda não tiver vendido até então ("estoque"); o valor apurado será utilizado no pagamento dos créditos fiscais, dos créditos do condomínio e do proprietário do terreno, devendo o saldo ser arrecadado à massa.
Recentemente, em 4 de setembro de 2001, o Poder Executivo editou a Medida Provisória n° 2.221, que acrescenta à Lei 4.591/64 os arts. 30-A a 30-G, aparentemente com o mesmo propósito de proteção do adquirente e segue a mesma estrutura dos Projetos de Lei da Câmara, mas acrescentando algumas novas disposições, que, como se verá adiante, provocam disfunção da figura jurídica da afetação.
Diz-se que essa proteção é aparente porque enquanto o art. 30-A restringe os riscos da incorporação e limita os dispêndios do adquirente, respeitando o teto que corresponde ao preço de aquisição da unidade, o art. 30-D, em sentido oposto, acrescenta novas obrigações pecuniárias dos adquirentes, obrigando-os a assumir o passivo fiscal, previdenciário e trabalhista da empresa incorporadora.
Com efeito, o art. 30-A e seu § 1° dispõem que o acervo de cada incorporação manter-se-á apartado do patrimônio do incorporador e que "o patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituído e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva."
Em outras palavras: nenhum adquirente pagará mais do que o preço de aquisição de sua unidade; esse limite até pode ser ocasionalmente ultrapassado, caso ocorra algum "acidente de percurso" na execução da obra, mas se isso acontecer, o adquirente terá direito a ressarcimento em face do incorporador, pois o § 2° do art. 30-A dispõe que "o incorporador responde pelos prejuízos que causar ao patrimônio de afetação."
Já o art. 30-D dispõe em sentido diametralmente oposto, ao estabelecer que os adquirentes são solidariamente responsáveis pelo pagamento de todo o passivo fiscal, previdenciário e trabalhista do incorporador.
Obviamente, estamos em presença de uma antinomia, na medida em que essas duas normas (art. 30-A e art. 30-D) dispõem em termos contraditórios sobre a mesma situação, qual seja, o limite da comunicabilidade do patrimônio de afetação, a primeira estabelecendo o princípio da incomunicabilidade e, em conseqüência, dispondo que os adquirentes "só respondem pelas dívidas vinculadas à respectiva incorporação", e a segunda, em sentido oposto, estabelecendo que os adquirentes respondem, também, por dívidas não vinculadas à sua incorporação ("as demais obrigações ... não vinculadas exclusivamente aos patrimônios de afetação serão rateadas na proporção...").
É verdade que, do ponto de vista sistemático e finalístico, há de prevalecer interpretação segundo a qual a responsabilidade dos adquirentes tem como teto o valor de aquisição de sua unidade, em respeito à eqüidade e, ainda, dada a comutatividade presente na natureza jurídica do contrato de incorporação, como, aliás, explicitamente dispõem do art. 30-A e seu § 1°. Entretanto, a permanência dessas disparidades dentro do mesmo texto de lei pode instaurar clima de insegurança entre os candidatos a aquisição de imóveis em construção, nas incorporações imobiliárias, podendo constituir fonte inesgotável de conflitos.
Além dessa contradição, a MP contém ainda duas outras graves impropriedades, à luz dos princípios que orientam a proteção da economia popular e considerada a lógica da teoria da afetação. É que (1°) pela MP 2221/01, a afetação não alcança toda a comunidade dos adquirentes de imóveis em incorporação imobiliária, pois o art. 30-A prevê a adoção da afetação "a critério do incorporador" e (2°) o § 2° do art. 30-C impede os adquirentes de dar prosseguimento à obra se não pagarem os débitos vencidos que o incorporador tiver deixado de honrar.
EMENDAS À MEDIDA PROVISÓRIA 2221/01 - Para eliminar a antinomia e suprir as demais impropriedades da MP, foram apresentadas emendas capazes de recompor o equilíbrio do negócio de incorporação, respeitando o princípio da eqüidade, o interesse de proteção da economia popular e a lógica da teoria da afetação. As emendas apresentadas propõem nova redação ao art. 30-A, a alguns parágrafos do art. 30-C e ao art. 30-D e seus parágrafos, assim se resumindo:
1. Art. 30-A: Há 3 emendas propondo que a afetação se aplique a todas as incorporações, sem exceção, e não a critério do incorporador;
2. Art. 30-C, § 2°: Há duas emendas que propõem que, em caso de falência, mesmo havendo débitos que o incorporador deixou de pagar, os adquirentes poderão dar prosseguimento à obra, ficando obrigados, evidentemente, a pagá-los no curso da obra e de acordo com suas disponibilidades;
3. Art. 30-D e §§: Os adquirentes substituirão o incorporador em todos os direitos e em todas as obrigações relativas à incorporação, ficando claro que só estarão obrigados a pagar as dívidas vinculadas à sua incorporação respectiva. Essa emenda procura conservar os direitos que os adquirentes já tinham antes da MP 2221/01, afastando a tentativa da MP de repassar para eles os débitos gerais da empresa falida.
A IDÉIA DA AFETAÇÃO - BREVE NOTA
O sistema de proteção dos adquirentes de imóveis em construção inspira-se, fundamentalmente, no princípio constitucional da isonomia e nos mecanismos de proteção da parte mais fraca na relação contratual.
É na linha desses princípios que o patrimônio de afetação pode atuar na proteção dos adquirentes de imóveis em construção.
O que é, afinal, "patrimônio de afetação"?
É um conjunto de direitos e obrigações (um patrimônio, enfim) para o qual a lei define uma destinação especial, em razão de alguma função relevante do ponto de vista social ou econômico; para esse fim, a lei determina que, embora essa massa continue integrando o patrimônio do sujeito, deve receber tratamento especial, separado dos seus demais direitos e obrigações, para que se afastem obstáculos que impeçam ou dificultem o cumprimento da destinação especial definida pela lei, especialmente evitando que essa massa patrimonial seja "contaminada" por dívidas gerais do sujeito. Esse patrimônio, assim, está afetado a uma finalidade específica, daí ser denominado "patrimônio de afetação".
É o caso, por exemplo, da proteção da moradia; a Lei 8009/90 estabelece que o imóvel em que reside a família do devedor fique preservada para essa destinação e, para tal, a torna insuscetível de ser penhorada por dívidas em geral (salvo as exceções enumeradas na lei); esse imóvel está protegido por uma afetação, isto é, embora faça parte do patrimônio do devedor, ele fica separado para atender à destinação de moradia da família e, portanto, não pode ser agredido por outros credores senão aqueles que a lei permitir.
É também o caso da proteção de determinados credores, que merecem tutela especial. Por exemplo: os subscritores de quotas de fundos de investimento também são protegidas por um patrimônio de afetação. Diz a lei que o acervo formado com o dinheiro dessas pessoas não se incorpora no patrimônio da empresa administradora, mas é destinado à formação de um patrimônio de afetação, que não se comunica com o patrimônio geral da empresa administradora, de modo, que se ela falir, o patrimônio dos subscritores não sofre os efeitos da falência, continuando a se desenvolver autonomamente, administrado por outra empresa que os subscritores escolherem.
São várias as hipóteses em que a lei protege a parte contratante que se encontre em posição vulnerável em relação à outra parte ou em relação ao negócio, e a incorporação imobiliária é uma dessas situações.
PRINCÍPIOS ORIENTADORES DA PROTEÇÃO DO ADQUIRENTE
PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL DA ISONOMIA - Intervenção legislativa nas espécies de contrato com forte densidade social, visando garantir a isonomia. Se nesses contratos prevalecesse a autonomia da vontade dos contratantes, o princípio constitucional da isonomia seria mera figura de retórica, pois neles só formalmente existe igualdade entre as partes, mas substancialmente há desequilíbrio, com evidente desvantagem para o contratante mais fraco. Busca-se a igualdade substancial para tornar realidade a isonomia e, para isso, a lei estabelece mecanismos de compensação da desvantagem do mais fraco, recolocando a relação jurídica em posição de equilíbrio.
PROTEÇÃO CONTRATUAL - Valorização da função social e econômica do contrato. O novo Código Civil estabeleceu um novo padrão contratual, pelo qual é restringida a liberdade de contratar, submetendo-se a atuação das partes à função social e econômica do contrato. Diz o art. 420 do novo C. Civil: "Art. 420. A liberdade de contratar será exercida em razão e nos limites da função social do contrato."
Esse princípio se ajusta à moderna teoria do contrato, na qual a autonomia de vontade da parte vem se ampliando em extensão, mas vai diminuindo em intensidade, e "é hoje mais débil, mais frouxa que outrora." (Galvão Teles, Manual dos contratos, p. 60). Disso decorre que a faculdade de opção dos contratantes é cada vez mais restrita, na medida em que a lei vai impondo balizamentos dentro dos quais as partes são obrigadas a trafegar, sobretudo quando se trata de contratos de grande densidade social, como é o caso da incorporação imobiliária.
Digno de nota, nessa evolução conceitual, é o Código de Defesa do Consumidor (Lei nº 8.078, de 1990), que dedica todo um capítulo ao sistema de proteção contratual, fixando critérios fundamentais para equilíbrio das relações obrigacionais, em que repele normas "que coloquem o consumidor em desvantagem exagerada" (art. 51, IV) e privilegia normas ou critérios de compensação da vulnerabilidade do contratante mais fraco.
PROTEÇÃO PATRIMONIAL - Além do balizamento legal que limita a autonomia da vontade das partes contratantes, o direito positivo vem acolhendo importantes mecanismos de proteção patrimonial visando a realização da função social do contrato, sobretudo quando está em jogo a economia popular. São os casos, por exemplo: (a) da captação de recursos do público para os fundos de investimento, em que a lei determina que o acervo do fundo fique separado do patrimônio da empresa administradora, criando-se um patrimônio de afetação em garantia dos subscritores de quotas do fundo; (b) da compra de títulos no processo de securitização de créditos, em que a lei prevê a criação de patrimônio de afetação para proteção dos subscritores dos títulos; e (c) dos financiamentos em geral, em que a lei prevê a separação de patrimônio para proteção dos credores.
ONDE SE INSERE O PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NAS INCORPORAÇÕES IMOBILIÁRIAS?
O patrimônio de afetação insere-se no contexto da recente reformulação do mercado imobiliário, iniciada a partir da Lei nº 9.514, de 1997. Por essa lei foram disciplinadas pelo menos duas espécies de afetação: uma delas para estabilidade do mercado secundário de crédito imobiliário, na securitização de créditos (art. 11 e segs da Lei 9.514/97); outra afetação para garantia do crédito, mediante alienação fiduciária (arts. 22 e segs. da Lei 9.514/97).
Agora, em defesa do adquirente, cogita-se de afetar a incorporação, para garantir a conclusão da obra e a entrega das unidades aos respectivos adquirentes.
Com efeito, na securitização de créditos, o beneficiário final da afetação é o investidor, e a afetação se justifica para estimular o carreamento de recursos para a produção imobiliária; no financiamento imobiliário, o beneficiário final é o credor, e a afetação protege o crédito, mantendo a vitalidade do mercado de crédito e, assim, assegurando a continuidade dos financiamentos imobiliários, na medida em que contribui para manter o fluxo de retorno dos capitais emprestados; na incorporação imobiliária, o beneficiário final é o adquirente, e a afetação opera como mecanismo de proteção da economia popular, isto é, visa assegurar a correta aplicação dos recursos que a incorporadora captar dos adquirentes para a obra.
Nas duas primeiras hipóteses, a lei oferece a afetação como opção do investidor e do emprestador: se estes quiserem, usam a afetação para proteger seus créditos. Na terceira hipótese - proteção da economia popular - o princípio da isonomia substancial exige que a afetação seja uma regra geral, uma garantia que se aplica automaticamente a todas as incorporações, desde o momento em que o incorporador registra o Memorial de Incorporação, como forma de proteger toda a comunidade de adquirentes.
No caso do investidor e do emprestador, a opção é da ordem natural das coisas, pois sua atividade comporta riscos e a maior ou menor garantia por eles admitida está associada ao nível de rentabilidade que pretendem obter.
Vista sob o ângulo do adquirente, entretanto, a afetação é instrumento de proteção da economia popular, é mecanismo de controle da captação de recursos feita pelo incorporador. A proteção ou desproteção da economia popular não pode ser opcional. Deve ser regra geral, pois trata-se bem jurídico inegociável.
Além disso, ao aderir a uma incorporação, o adquirente já entra no negócio correndo o risco da atividade construtiva e totalmente desprotegido desse risco. Isso configura uma situação de desvantagem, em comparação com a situação dos outros atores do mercado, e essa desvantagem deve ser compensada, para que se reequilibre a relação jurídica e econômica. Um dos mecanismos essenciais de compensação dessa vulnerabilidade é a afetação como regra geral, incidente automaticamente sobre todas as incorporações.
Mas ainda que assim não fosse, não se pode comparar a capacidade do investidor de correr risco com a do adquirente; em primeiro lugar, porque risco é fator inerente à atividade do investidor, e por isso ele é preparado para analisar os riscos e fazer opções com segurança, pois domina a técnica dos investimentos e dispõe de elementos para analisar riscos; em regra, o investidor é uma entidade organizada tecnicamente e economicamente para esse fim; já o adquirente, ao contrário, além de já entrar no negócio correndo o risco natural da construção, não dispõe de elementos para analisar e nem adiantaria analisar, porque já está no risco. O desnível da relação, portanto, exige o estabelecimento da afetação como regra geral, aplicável a todas as incorporações, como forma de compensar a desvantagem do adquirente.
O PATRIMÔNIO DE AFETAÇÃO NAS INCORPORAÇÕES
TUTELA ESPECIAL - Na linha dos princípios adotados pelo Novo Código Civil e pelo Código de Defesa do Consumidor, duas soluções se apresentam para tutela dos adquirentes de imóveis em construção: (1) a propriedade fiduciária, já adotada pela Lei n° 9.514, de 1997, e (2) a afetação patrimonial. Por ambos os meios, o acervo de cada incorporação ficaria segregado no patrimônio do incorporador, com a destinação específica de levar a cabo a construção e promover sua regularização no Registro de Imóveis, em nome dos adquirentes. Na medida em que ambas as soluções produzem exatamente os mesmos efeitos de afetação, é preferível o "patrimônio de afetação", pois sua constituição é simples e sem nenhum custo, enquanto que a constituição propriedade fiduciária comporta complexa formalização documental e tem custos de emolumentos, taxas, custas e impostos, que onerariam desnecessariamente o empreendimento, em prejuízo dos próprios adquirentes.
A afetação importa em tratamento jurídico, financeiro e contábil separado para cada incorporação e se ajusta com naturalidade à atividade da incorporação. Efetivamente, o art. 32 da Lei das Incorporações (Lei n° 4.591/64) manda que para cada incorporação o incorporador organize um "Memorial de Incorporação" específico, como se fosse um dossiê de constituição de uma empresa para aquele determinado empreendimento; nele o incorporador é obrigado a reunir todos os documentos e peças relativas ao negócio, tais como o título de propriedade, o projeto de construção aprovado, a discriminação de todas as frações ideais do terreno que haverão de se vincular às unidades, as áreas de construção das partes comuns e de cada unidade, o orçamento da construção, com o coeficiente de custo que caberá a cada unidade etc. Esse conjunto de elementos contempla a identificação do empreendimento, que o torna inconfundível com os demais negócios da empresa incorporadora, e implica uma segregação natural do empreendimento no contexto dos demais negócios da incorporadora. A incorporação, assim, está impregnada da noção de afetação, podendo-se dizer que essa noção é imanente à incorporação.
Não obstante essa imanência, é indispensável que a afetação esteja explicitamente estabelecida pela lei, pois, como se sabe, o indivíduo não é dotado de autonomia para, independente de autorização legal, segregar bens do seu patrimônio e para eles estabelecer destinação especial, pois tal procedimento desfalcaria seu patrimônio geral, podendo daí resultar fraude contra credores. Sendo, assim, necessária a previsão legal, pode (e deve) a lei ser formulada da maneira mais simples possível, explicitando tão-somente o essencial, a saber: (a) a atribuição, ao acervo da incorporação imobiliária, do caráter de patrimônio de afetação, destinado à conclusão da construção e entrega das unidades aos respectivos adquirentes, (b) a ressalva de que estão excluídos da afetação os recursos financeiros que excederem a importância necessária para a realização da obra e sua entrega aos adquirentes, de modo a possibilitar à incorporadora apropriar-se do excedente e desenvolver normalmente sua atividade empresarial, (c) a explicitação de que esse patrimônio de afetação não se comunica com o patrimônio geral do incorporador, nem com os demais patrimônios de afetação que tenha constituído, e que só responde por dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação, (d) a determinação de que se mantenha contabilidade separada e conta-corrente específica para cada incorporação, (e) a atribuição de poderes à Comissão de Representantes para assumir a administração da incorporação e concluí-la, inclusive outorgando as escrituras aos adquirentes, (f) a determinação de que se promova a venda, em leilão, das unidades imobiliárias do "estoque" da incorporadora e, finalmente, (g) a indicação dos procedimentos a serem adotados em caso de falência, inclusive a arrecadação das importâncias relativas a eventuais créditos da incorporadora falida.
A MEDIDA PROVISÓRIA N 2.221, DE 5.9.01
Dada essa realidade, a Medida Provisória n° 2.221/01, publicada em 5 de setembro passado, adota a afetação para as incorporações imobiliárias, mediante inserção de alguns dispositivos à Lei das Incorporações, dispondo, em síntese, no seguinte sentido:
1. A critério do incorporador, o acervo de cada incorporação pode ser separado do seu patrimônio, passando a constituir um patrimônio de afetação; constitui-se esse patrimônio separado mediante "termo" a ser averbado no Registro de Imóveis;
2. O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações gerais do incorporador, nem com os outros patrimônios de afetação (ou seja, as outras incorporações), e só responde pelas dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação; disso decorre que as receitas de cada empreendimento e os seus respectivos encargos (trabalhistas, fiscais, previdenciários) ficam rigorosamente circunscritos ao empreendimento específico a que se referir; é como se cada incorporação fosse uma empresa independente da empresa incorporadora;
3. Haverá uma contabilidade separada para cada incorporação; essa contabilidade separada seria semelhante à dos fundos de investimentos;
4. O incorporador é obrigado a apresentar relatório trimestral à Comissão de Representantes, demonstrando o estado da obra e sua correspondência com a programação financeira do período;
5. Na hipótese de atraso da obra ou sua paralisação, a Comissão de Representantes assumirá a administração da incorporação, devendo convocar assembléia geral dos adquirentes para deliberar pelo prosseguimento da obra ou pela liquidação do patrimônio de afetação;
6. Sobrevindo a falência do incorporador, a incorporação afetada não será arrecadada à massa;
7. Decretada a falência, os adquirentes assumirão imediatamente a administração da incorporação, realizando assembléia geral em 60 dias e deliberando o destino daquele patrimônio de afetação (os adquirentes podem decidir (a) ou pela continuação da obra, se isso se mostrar conveniente, ou (b) ou pela venda do acervo, rateando entre si o produto dessa venda);
8. As unidades que ainda não tiverem sido vendidas pela incorporadora serão vendidas em 60 dias, sub-rogando-se o novo adquirente (arrematante) nos direitos e obrigações de condômino;
9. Os adquirentes só poderão prosseguir a obra se pagarem os débitos atrasados da empresa incorporadora, de natureza fiscal, previdenciária e trabalhista;
10. Os adquirentes serão solidariamente responsáveis com a empresa incorporadora pelas dívidas fiscais, previdenciárias e trabalhistas, inclusive imposto de renda e contribuição social sobre o lucro da empresa, mesmo "que tenham sido objeto de lançamento de ofício" (art. 30-C, § 3°, I);
11. Caso decidam pelo prosseguimento da obra, os adquirentes ficarão sub-rogados nos direitos e nas obrigações vinculadas à incorporação;
12. Os débitos de imposto de renda e de contribuição social sobre o lucro serão rateados entre os adquirentes "na proporção da receita bruta relativa a cada patrimônio de afetação em relação à receita bruta total da pessoa jurídica" (art. 30-D, I);
13. As obrigações vinculadas à incorporação serão assumidas de forma direta, "abrangendo tão somente aquelas geradas no âmbito do próprio patrimônio de afetação" (art. 30-D, § 1°);
14. "As demais obrigações trabalhistas, previdenciárias e fiscais, não vinculadas exclusivamente aos patrimônios de afetação, serão rateadas na proporção da receita bruta do respectivo patrimônio em relação à receita bruta total da pessoa jurídica, considerando-se receita bruta aquela definida na legislação do imposto de renda" (art. 30-D, § 3°);
15. Poderá ser utilizada a arbitragem para dirimir conflitos decorrentes de contratos de incorporação;
16. A Comissão de Representantes está investida de poderes para outorgar os contratos definitivos aos adquirentes, em caso de destituição do incorporador ou de falência;
17. São irretratáveis os contratos de aquisição de unidades imobiliárias em incorpoorações;
18. A afetação só se extingue (a) quando da averbação da construção nmo Registro de Imóveis e registro das unidades em nome dos adquirentes, (b) por revogação, em razão de denúncia da incorporação ou (c) por liquidação deliberada pela assembléia dos adquirentes.
COMPARAÇÃO ENTRE A MP 2221/01E OS PROJETOS DE LEI DA CÂMARA 2109/99, 3445/2000 e 3742/2000
Comparando-se os textos da MP 2221/01 com os dos Projetos de Lei 2109/99, 3445/2000 e 3742/2000, verificam-se as seguintes divergências relevantes:
(1º) enquanto os Projetos de Lei dispõem sobre a compensação da vulnerabilidade do adquirente como regra geral, estabelecendo a afetação para todas as incorporações, na MP a afetação é uma opção da empresa incorporadora (art. 30-A);
(2º) enquanto os Projetos mantêm os direitos já assegurados aos adquirentes, a MP lhes impõe novas obrigações, passando os adquirentes a ser solidariamente responsáveis pelas dívidas da empresa incorporadora, em caso de falência desta (art. 30-C, 2° e 3° - "... os adquirentes responderão solidariamente com o incorporador");
(3º) além dessa coobrigação, a MP impede os adquirentes de dar prosseguimento à obra se não pagarem as dívidas atrasadas do incorporador falido (§ 2° do art. 30-C), enquanto que os Projetos permitem a livre retomada da obra;
(4º) os Projetos fixam as responsabilidades dos adquirentes no limite das obrigações vinculadas à sua incorporação, especificamente; nesse aspecto, os Projetos mantêm o critério atual, pelo qual os adquirentes não respondem por nenhuma dívida da empresa incorporadora, sendo obrigados a pagar somente o preço de aquisição de sua unidade; a MP aumenta as responsabilidades dos adquirentes e, além disso, estabelece uma contradição em seu próprio texto; observe-se que pelo art. 30-A e seu § 1º o patrimônio de afetação não se comunica com as obrigações do incorporador e "só responde pelas dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação", enquanto que pelo art. 30-D e seus parágrafos os adquirentes serão obrigados a pagar, por rateio, as dívidas das outras incorporações e da própria empresa falida, entre elas o imposto de renda da empresa incorporadora.
CONCLUSÃO
De tudo o que precede, fica claro que, enquanto a legislação anterior ainda deixava os adquirentes sob um certo risco, a MP 2221/01 lhes impõe um risco certo, e de valor ilimitado.
As emendas apresentadas visam extirpar as disposições extravagantes contidas na MP 2.221/01 e recompor seus termos de acordo com os propósitos de proteção da economia popular, visando a segurança jurídica e o equilíbrio do contrato de incorporação.
De uma parte, a emenda ao art. 30-A, ao determinar a incidência automática da afetação em todas as incorporações imobiliárias, torna eficaz o controle da aplicação dos recursos captados pelo incorporador, beneficiando todos os grupos de adquirentes, sem exceção, e não somente aqueles grupos "eleitos" pelo incorporador. De outra parte, as emendas ao art. 30-C, especialmente ao seu § 2°, adequam o dispositivo ao princípio constitucional do art. 5°, LIV, da Constituição, ao garantir o direito dos adquirentes de prosseguir a administração do seu próprio patrimônio de afetação, mesmo que haja dívidas pendentes de pagamento. Por fim, as emendas ao art. 30-D, seus incisos e parágrafos tornam os procedimentos ali explicitados coerentes com o princípio enunciado no art. 30-A, garantindo que as responsabilidades pecuniárias dos adquirentes têm como teto as obrigações vinculadas à sua própria incorporação, afastado o risco de virem os adquirentes a sofrer cobranças de valores que superem o preço pactuado no contrato de aquisição de suas unidades (como equivocadamente previsto no art. 30-D).
Extirpar esses enxertos e resgatar os direitos dos adquirentes de imóveis em construção é tarefa que o Congresso Nacional certamente implementará, aprovando Projeto de Lei de Conversão que efetivamente proteja a economia popular, coerente com a orientação que esse mesmo Congresso imprimiu ao aprovar o novo Código Civil e o Código de Defesa do Consumidor.
Seminário O Estatuto da Cidade - Parte II
Aguarde a publicação da Parte II da reportagem sobre o evento Estatuto da Cidade que reuniu registradores, promotores de justiça, juízes e advogados, além de outros profissionais com interesse na área imobiliária no último dia 31 de outubro e 1 de novembro, em São Paulo Capital.
Aqui v. acompanhará as intervenções de Victor Carvalho Pinto, Assessor Jurídico da Secretaria Especial de desenvolvimento Urbano da Presidência da República; Rodolfo de Camargo Mancuso - Professor de Direito da USP; Erminia Maricato - Profa Titular da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP - Coordenadora do Curso de Pós Graduação da FAU/USP; Paulo José Villela Lomar - Chefe da Assessoria Jurídica da Secretaria de Planejamento Urbano da Prefeitura do Município de São Paulo - Mestre em Direito do Estado/PUC-SP; Francisco Eduardo Loureiro - Juiz de Direito - Assessor da Presidência do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo; Ricardo Nahat - Oficial do 14º Registro de Imóveis da Capital - Ex-Procurador da República - Ex-Procurador do Estado; Marcelo Terra - Advogado e Assessor do Secovi-SP além do pronunciamento do Ministro Sidney Sanches do STF.
Na próxima edição. Aguarde.
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