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História do direito hipotecário

Matando a cobra, mostrando o pai
Sérgio Jacomino


No transcurso dos trabalhos de plenário, por ocasião do Encontro de Foz do Iguaçu na semana passada, foi suscitada uma interessante questão acerca dos precedentes da publicidade hipotecária no país.

Na excelente exposição do advogado paulista Dr. Marcelo Terra (Estatuto da Cidade no registro imobiliário - BE edição especial) foi lembrado que o primeiro regulamento hipotecário do país veio a lume a 14 de novembro de 1846 (Dec. 482), regulamentando justamente a Lei Orçamentária 317, de 1843.

O Dr. Marcelo Terra expôs, com a costumeira precisão, todos esses dados, fazendo uma referência elogiosa, por pura lhaneza que também lhe é peculiar, aos trabalhos que figuram no site do Irib, especialmente no tocante às leis do Brasil Império. (Vide Coleção de Leis do Brasil Império, a cargo de Andriana Gianvecchio e outro).

Mas foi aparteado em plenário por uma observação feita pelo registrador carioca Dr. Geraldo Mendonça, do 1º. Registro de Imóveis da capital do Rio de Janeiro, para quem o Registro Hipotecário inaugurou-se em 1842. Segundo o querido colega, no Registro a seu cargo haveria inscrições hipotecárias desde aquela data.

A observação estava fundamentada em artigo do registrador paraense Dr. Cleto M. de Moura, publicado na então Revista do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, Vol. 3, 1977 (p. 65 e seguintes). Foi Cleto Moura quem, nas pioneiras páginas de nossa Revista, publicou interessante estudo, abaixo reproduzido, intitulado Síntese da evolução do sistema hipotecário e imobiliário brasileiro. Dr. Cleto foi, por assim dizer, o pai da matéria, razão da blague no título desta nota.

Suscitada a dúvida, haveria que dirimi-la. O Dr. Marcelo havia recorrido ao site do Irib para suas preciosas notas e a credibilidade do rigor científico da pesquisa estava assim contestada, abalada pelo prestígio dos ilustres registradores.

Caberia a mim, coordenador do site e co-autor da Coleção Brasil Império, impugnar a dúvida levantada, se me concedem a figura.

Mas a razão estava com o Dr. Marcelo Terra (e permita-me uma carona no prestígio intelectual do autor: a razão também estava com o site do Irib).

Aparentemente o registrador carioca foi traído por um ardil da memória. Quando aponta a data de 1842 como o début do sistema hipotecário brasileiro deve ter sido levado a engano pela proximidade da lei que criou o registro hipotecário e o decreto que a regulamentou - entre os dois diplomas legais medeia apenas 3 anos. De fato, a primeira inscrição no Cartório do Dr. Geraldo Mendonça deve ter sido aperfeiçoada após novembro de 1846.

Cabe uma última observação. A Revista do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil pertence à fase anterior da conhecida publicação oficial dos registradores brasileiros que, tendo sido rebatizada com o nome de Revista de Direito Imobiliário, inaugurou nova fase, a partir do número 1. Assim temos 2 revistas com o mesmo número 3.

Essa última observação se faz também como resposta a repto lançado pelos presentes à sessão plenária. Embora reconhecendo que o ônus da prova cabe a quem alega, procuramos localizar, desde Foz do Iguaçu, a Revista lembrada pelo aparteador no cyberspace. Seríamos capazes de apresentar a prova argüida pelo registrador carioca?

Mas a procura foi debalde na Revista de Direito Imobiliário n. 3, que se acha publicada na internet. O "Brasil Real" (rectius: "Brasil em tempo Real") foi vencido, digamos modus in rebus.

Somente agora, guiados pelas notas precisas de Ademar Fioranelli, que em seu artigo O direito real de usufruto, RDI 21, 1988, apontou com exatidão a fonte. Chegamos,enfim, a porto seguro.

Resta uma derradeira questão, que me angustia só de formulá-la: e se no Cartório do Dr. Geraldo Mendonça houver inscrições hipotecárias desde 1842?
 



Síntese da evolução do sistema hipotecário e imobiliário brasileiro


Cleto M. de Moura,Oficial do 1º Ofício de Registro de Imóveis de Belém, PA

Segundo alguns dos nossos melhores autores, o regime hipotecário e imobiliário brasileiro teve início no tempo do Império, com o Registro de Hipotecas, criado pela Lei orçamentária n. 317, de 21.10.1843, regulamentada pelo Decreto n. 482, de 14.11.1846.

À época, somente as hipotecas eram objeto de registro. Entre os bens suscetíveis de hipoteca, a lei admitia animais e escravos.

O Código Comercial Brasileiro de 1850 (Lei n. 556, de 25.6.1850), disciplinando as hipotecas, incluiu em seu texto os arts. 265 a 270.

A propriedade particular, constituída por concessões reais, sesmarias e posses, nos termos da Lei n. 601, de 18.9.1850, era registrada, apenas, perante os vigários das respectivas paróquias, com fim meramente declaratório, para diferençar o domínio particular do domínio público.

Pela Lei n. 1.237, de 24.9.1864, regulamentada pelo Decreto n. 3.453, de 26.4.1865, o Registro de Hipotecas passou a denominar-se Registro Geral.

Foi a Lei n. 1.237, de 1.864, que criou a transcrição de imóveis por atos "inter vivos", excluídas as transmissões "causa mortis" e outras decorrentes de atos judiciários; instituiu a transcrição da constituição de ônus reais, além da inscrição das hipotecas, e restringiu estas aos imóveis na mesma lei enumerados.

A transcrição criada, sem induzir prova de domínio, que ficava salvo a quem de direito, passou a ser considerado como "o modo da tradição das coisas imóveis", no dizer de Teixeira de Freitas, e "para servir de base ao regime hipotecário", como completou Lafaiete.

Em 1885, foi promulgada a Lei n. 3.272, de 5.10.1885, que tornou obrigatória a inscrição de todas as hipotecas, inclusive as legais, sem atender, para estas, ao princípio da especialização.

Ao ser proclamada a República, a nossa chamada legislação hipotecária foi reformulada de acordo com o regulamento baixado com o Decreto n. 370, de 2.5.1890, para execução do Decreto n. 169-A, de 19.1.1890, que substituiu as Leis ns. 1.237, de 24.9.1864, e 3.272, de 5.10.1885.

A República, com pequenas alterações, adotou o mesmo sistema do Império.

Tanto assim que a transcrição foi mantida como o modo de adquirir "inter vivos", mas sem provar o domínio, que ficava salvo a quem fosse. Para as hipotecas, foram estas sujeitas à instituição da especialidade.

Ainda no ano de 1890, foi admitido no Brasil, para certos casos de legalização da propriedade rural, o sistema australiano, conhecido como Registro Torrens, nos termos do Decreto n. 451-B, de 31.5.1890, regulamentado pelo Decreto n. 955-A, de 5.11.1890, o qual consiste em uma espécie de processo depurativo do domínio, declarado legítimo judicialmente.

A partir de 1.1.1917, com o advento do Código Civil, o sistema imobiliário brasileiro, filiado anteriormente ao Direito francês, passou a refletir princípios do sistema germânico.

Assim 'que a transcrição no Registro de Imóveis - denominação dada pelo Código Civil ao registro imobiliário - passou a ser o modo de adquirir a propriedade do imóvel, a prova da transferência do domínio e o meio de publicidade para os atos judiciários (arts. 530, 531, 532, 533).

Além da prioridade, os demais direitos reais sobre imóveis à obrigatoriedade da transcrição ou inscrição, no Registro de Imóveis competente, passando com o imóvel para o domínio do comprador ou sucessor (arts. 764, 676, 677, 697, 796, 831).

Estabeleceu ainda o Código Civil a presunção de pertencer o direito real à pessoa, em cujo nome se transcreveu ou inscreveu, e admitiu a retificação da transcrição ou inscrição efetuadas erroneamente (arts. 859 e 860).

Ao Registro Torrens, o Código Civil não se referiu. Todavia, sua vigência foi reconhecida e adotada pela Lei orçamentária n. 3.446, de 31.12.1917.

Em 1.924, os Registros Públicos, criados pelo Código Civil, foram reorganizados pelo Decreto n. 4.827, de 7.3.1924. E, em 1928, os serviços a eles concernentes foram regulamentados pelo Decreto n. 18.542, de 24.12.1928.

Os Decretos ns. 4.827, de 1924, e 18.542, de 1928, foram substituídos pelo Decreto n. 5.318, de 29.2.1940, que passou a reger os serviços concernentes aos Registros Públicos estabelecidos pelo Código Civil.

Instituindo o princípio da continuidade, com base na filiação do título aos anteriores, o Código Civil e as leis reguladoras do registro imprimiram ao regime imobiliário brasileiro nova sistemática, através dos princípios estabelecidos.

Houve "um grande processo na matéria - reconhece o Des. José Carlos Ferreira de Oliveira, Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo - ao erigir (o Código Civil) a transcrição em tradição solene da transação, geradora do direito real para o adquirente, com a transmissão do domínio".

Entretanto, com o desenvolvimento sócio-econômico e jurídico do País, começaram a surgir as falhas e deficiências do nosso sistema imobiliário.

Há mais de três decênios, Serpa Lopes, em seu "Tratado de Registros Públicos", apontava uma delas: "a distribuição do serviço em vários livros, o que se poderia reduzir a um somente, como sucede no sistema alsaciano, de modo que cada imóvel tivesse a sua folha, onde, de relance, se pudesse ter o imediato panorama jurídico e de fato, relativamente ao imóvel".

Com o fim de suprimir as falhas e deficiências do regime em vigor, surgiu o Decreto n. 1.000, de 21.10.1969, que não chegou a vigorar, tendo sido substituído pela Lei n. 6.015, de 31.12.1973, que teve sua vigência prorrogada para 1.1.1975 pela Lei n. 6.064, de 28.6.1974, e foi alterada pelas Leis ns. 6.140, de 28.11.1974, e 6.216, de 30.6.1975.

Pela Lei n. 6.015, de 1973, alterada pelas Leis ns. 6.140, de 1974, e 6.216, de 1975, republicada com as alterações introduzidas no DOU de 16.9.1975, foram revogadas a Lei n. 4.827, de 7.3.1924, e os Decretos ns. 4.857, de 9.11.1939, 5.318, de 29.2.1940, e 5.553, de 6.5.1940.

A nova lei, vigente a partir do dia 1.1.1976, incontestavelmente, representa para nós um grande avanço no sentido do aperfeiçoamento do registro imobiliário, objetivando a sua simplificação e racionalização, permitindo a mecanização dos serviços e o emprego de técnicas operacionais moderas.

Acabou com a divisão das formalidades em transcrição e inscrição, erigindo o registro como termo único substitutivo de ambas.

Instituiu a matrícula de cada imóvel em sua folha, na qual os registros e as averbações dos títulos, que tenham por objeto o imóvel matriculado, serão efetuados, cronologicamente.

Reduziu a cinco o número de livros, substituindo-os por livros de menor tamanho, que poderão ser constituídos por folhas soltas, para que estas possam ser escrituradas mecanicamente.

Permitiu a adoção, menos para o Protocolo, do sistema de fichas, previamente aprovadas pela autoridade judiciária competente.

Incorporou ao seu contexto o Registro Torrens, disciplinando o seu processamento.

"Entre as inovações e virtudes da nova legislação - afirma o citado Des. José Carlos Ferreira de Oliveira, Presidente do Tribunal de Justiça de São Paulo - a principal e mais transcendente está na instituição da matrícula do imóvel, que modifica radicalmente a sistemática tradicional do registro e irá propiciar a futura cadastração imobiliária, aproximando-nos bastante do sistema cadastral germânico, considerado o mais perfeito por todos os especialistas da matéria".

Pela aprovação e promulgação da nova lei, muito se bateram as entidades da classe dos serventuários, em destaque a Associação dos Serventuários de Justiça de São Paulo e o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil, fundado em 19.6.1974, tendo por objetivo principal "não apenas o fortalecimento da união de sua classe, mas também o desenvolvimento dos estudos que se fizerem necessários para modernizar os seus métodos de trabalho, mediante o constante aperfeiçoamento da legislação que lhes diz respeito".



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