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Mensagens na garrafa

Sérgio Jacomino


Caro Marcel,

Nossa última correspondência repercutiu na rede de notários e registradores. Muitos me questionaram sobre a identidade desse misterioso correspondente que posta eletronicamente questões tão incômodas para a categoria. Tão incômodas como delicadas, eu diria, pois refletir sobre a nossa profissão, perquirir acerca da importância atual de nossas atividades, diligenciar sobre nosso futuro institucional, tudo isso pode representar uma empresa temerária, por escancarar, por assim dizer publicamente, não só as virtudes que nos animam, mas igualmente nossas fragilidades.

Muitos recomendariam, pois, mais do que moderação e prudência. Mas entendo, caro Marcel, que é na abertura desse perigoso flanco que vamos encontrar, justamente, o nosso fio de Ariadne. Dizia na última mensagem que é preciso escapar do solipsismo, do ensimesmamento timorato que nos condena a uma espécie de emparedamento labiríntico e acarreta o fenecimento da cultura multimilenar das atividades tabelioas e registrais. O monstro mitológico que nos ameaça pode ser vencido pela evocação das forças que representam o sentido social de nossas atividades, cujo nexo pode ser rastreado nos sinuosos caminhos da história.

Imoderado e imprudente, abusado e franco, enfim, como lídimo representante do baixo-clero de nossa corporação, posso impulsionar nossas reflexões sem os riscos do discurso autorizado. Não há mais conseqüências do que ilustração recíproca!

Clandestinismo jurídico e subdesenvolvimento econômico

V. conseguiu, em seu último e-mail, expressar de maneira muito convicente a angústia que temos todos nós que militamos na área registral ou tabelioa. Está aí, diante de nós, a ameaça de extinção desses serviços, seja pela inviabilização sistemática dessas atividades (pelo assalto das gratuidades universais, fissiparidades ou descontos abusivos), seja pelo calculado esvaziamento de sentidos e importância.

Permita-me realçar um aspecto importante que permeia toda essa discussão acerca dos registros imobiliários brasileiros: O registro predial está a serviço de valores sociais. Projeta-se da experiência histórica como refinado sistema concebido para impulsionar os negócios imobiliários e para garantir a posição daqueles que são titulares de direitos. De tal sorte estão imbricados - os direitos e os mecanismos que os asseguram - que não é possível seccioná-los sem que antes se coloque em risco aqueles. De outra maneira, como poderíamos pensar modernamente a propriedade privada (ou pública) sem a existência de mecanismos que efetivamente a garantam?

Sabemos de há muito que uma propriedade não titulada (rectius, registrada) tem o seu valor depreciado no mercado. Ora, quantas propriedades remanescem fora do comércio jurídico por não estarem regularmente inscritas nos Registros Públicos competentes? Como lastro de garantias reais, é possível quantificar a depressão de crédito que seu titular experimenta? Socialmente, seria possível quantificar a extensão desse "capital morto"?

Meu caro Marcel, há quem se deu a esse trabalho. O peruano Hernando de Soto realizou uma curiosa pesquisa em que apurou o valor desse patrimônio imobiliário bruto que se acha inativo pela clandestinidade jurídica. Para se ter uma idéia da extensão de sua pesquisa (e das conclusões desconcertantes) dedicou-se a avaliar o quanto valeriam, em termos de capital não mobilizado, as parcelas urbanas ou rurais situadas em países em desenvolvimento. Procurou conhecer a realidade fundiária do Egito, Filipinas, Haiti, México e, evidentemente, Peru.

Embora circunscrito a esses cinco países, suas conclusões são perfeitamente aplicáveis quando se quer apurar o "capital morto" representado por cada lote da Favela da Rocinha ou de qualquer condomínio clandestino nas franjas dos morros cariocas. Sem falar nas "propriedades" não tituladas que explodem incontrolavelmente nas periferias de qualquer grande e média cidade brasileira.

Hernando de Soto chega a cifras assombrosas: O patrimônio imobiliário das famílias nos países pesquisados pode chegar à cifra astronômica de US$ 9.3 trilhões! Isto mesmo, caro Marcel, mais de 14 vezes o PIB brasileiro para o corrente exercício.

Vamos a mais alguns dados: no Egito o patrimônio imobiliário dos marginalizados vale a bagatela de US$ 195 bilhões - ou 55 vezes o valor de todos os investimentos estrangeiros existentes no país (aí incluídos o Canal de Suez e a represa e hidrelétrica de Assuan). No Haiti, o país mais pobre da América Latina, os ativos dos excluídos chegam a mais de 150 vezes o investimento estrangeiro recebido pelo país desde a independência da França, em 1804.

Diz De Soto que o clandestinismo imobiliário é o fator mais pernicioso, representado por posses precárias e títulos defeituosos: "as residências dos pobres estão construídas sobre lotes com direitos de propriedade inadequadamente definidos (...). Sem direitos adequadamente documentados, estas posses resultam em ativos difíceis de serem convertidos em capital. Essas posses não podem ser comercializadas fora dos estreitos círculos locais onde as pessoas mantêm vínculos de confiança mútua e não servem como garantia para empréstimos, nem como participação em investimentos". Sobre os muambeiros, ambulantes, perueiros e proprietários informais chega a afirmar categoriamente: "Esses heróicos empreendedores são vistos como parte do problema mundial da pobreza. Eles não são o problema. São a solução". E prossegue: "A verdadeira causa da desordem não é a população, nem o crescimento da população, nem mesmo os pobres. É o sistema anacrônico de propriedade legal".

Então, meu caro Marcel, qual é o problema? Estamos atacando justamente os mecanismos mais racionais e baratos que a inteligência jurídica pôde criar, deixando de atrair para o mercado formal o apreciável patrimônio de parcelas significativas da população? Pois estamos aprofundando o fosso entre a cidade legal versus a cidade clandestina na medida em que fomentamos o ocultamento imobiliário com contratos de gaveta, instrumentos particulares, favorecimento do tráfico imobiliário clandestino (promessas de venda e cessões de direitos) e aviltamento dos preços de lavratura e registro de títulos.

Escapando da órbita registral, esses títulos são astros vagantes na galáxia econômica e estão vocacionados ao litígio. Sem falar na menos valia que representam para o mercado global que exige integridade e segurança.

De Soto é polêmico. Mas é leitura obrigatória para pessoas como nós, que militamos no dia a dia dos negócios imobiliários. Confira: The mystery of capital - why capitalism triumphs in the west ande fails everywhere else. (Bantam/Random House, set./2000)

Temos às mãos uma solução

(à caça de um grande problema!)

V. parece não ter compreendido o sentido da citação de McLuhan - a forma é o conteúdo. Tratava-se de um pequeno exercício de destrinçamento dos elementos que compõem o cartucho dominial. Sempre me pareceu curiosa a afetação simbólica que partindo de seus "conteúdos", chega a contaminar inteiramente o suporte formal dos ditos direitos reais. Ora, visto dessa maneira o registro imobiliário, vincado de sua causa imediata, focalizando o conjunto de normas que regulam sofisticados mecanismos para segurança dos direitos materiais, podemos já perceber a necessidade de se manter e aperfeiçoar tais sistemas de publicidade fundiária. Pois, garantir e aperfeiçoar esses sistemas é garantir, com eficiência e segurança, justamente o "conteúdo" desses mecanismos. O conteúdo arquetípico do registro predial é a propriedade privada. Matar o registro imobiliário é, de certa maneira, ferir a noção que temos de propriedade. Afinal, em nosso sistema "quem não registra não é dono"...

Ora, diria acacianamente meu caro amigo Marcel: "há formas e formas de se garantir a propriedade privada! O registro público é apenas uma, dentre várias. Há o informalismo do sistema americano, o registro municipal, o registro do vigário etc".

Sim, de fato, o registro imobiliário, tal como o conhecemos, é apenas uma das formas conhecidas de se garantir esses direitos. Mas eu poderia replicar singelamente: ainda assim, este é o melhor dos sistemas concebidos! E é nosso, já se acha de tal forma entranhado na consciência coletiva do povo brasileiro que quase não me contenho: Caro Marcel, a tecnocracia tem em mãos uma solução e está à caça de um grande problema!

Reconheço que às vezes soa anacrônica essa apologética do sistema filiado à tradição do direito romano-germânico. Evidentemente, não me refiro a essa espécie de atavismo procedimental que recorre a papel, carimbos, assinaturas e sanções. Refiro-me às potencialidades que o sistema oferece, no sentido de representar um plus aos outros sistemas que analogamente se pretendem restituidores da segurança jurídica.

Esse ressaibo medievalista que v. identifica nos cartórios é o pesado tributo que esses serviços públicos pagam pelo seu caráter híbrido: serviços públicos exercidos privativamente. O binômio tensivo que se aninha na medula do sistema - serviço público X gestão privada - pode acarretar tanto a inércia decorrente de forças que se anulam quanto a dialética criativa da transformação. Experimentamos ainda a primeira, submetidos que somos a uma forma de pensar que é afetação homóloga de modelos superados.

Estatização ou controle social?

(That´s the question)

Recentemente, a FSP publicou um interessante texto de Moisés Naím (O dreno digital, FSP 3/9/00, p.3) em que o autor analisa a captação de recursos humanos pela iniciativa privada, esvaziando o setor público de seus melhores quadros. Aponta, com razão, que os altos salários pagos pelas empresas privadas aprofundam o fosso digital que divide os povos e mesmo governos. Observa que "a preocupação despertada pelo 'abismo digital' - a defasagem entre a minoria do mundo que se beneficia da Internet e a grande maioria que nem sequer tem água ou luz - é enorme. A defasagem de competência entre governos e empresas ou cartéis criminosos cria uma defasagem digital diferente que coloca os governos, mesmo os dos países mais ricos, entre aqueles que estão em desvantagem digital".

A reflexão de Naím coloca-nos diante do seguinte desafio: como superar essa assincronia crescente que parece confirmar o esvaziamento dos sentidos políticos que fundamentavam a idéia de soberania dos Estados modernos? Ele propõe algumas soluções. Registro apenas uma delas, que me parece a mais pertinente com o nosso tema: a terceirização de funções públicas.

Diz Moisés Naím que os EEUU terceirizaram algumas atividades críticas e o resultado se mostra muito favorável. Diz que "mesmo tarefas delicadas ligadas à defesa são confiadas a terceiros. Essa prática tem provocado problemas ocasionais, mas vem tendo sucesso. A chave para seu êxito é que as empresas terceirizadas devem ser fiscalizadas por servidores competentes e honestos do governo".

Eis o ponto. Fiscalização. Controle público das atividades terceirizadas.

Sabemos que a fiscalização não pode ser concebida como peias redutoras da agilidade que esses organismos podem desenvolver. Os cartórios ainda são tracionados pela máquina burocrática do Estado. Não têm liberdade para organizar seus próprios serviços. Estão desfalcados de uma estrutura que responda às exigências do próprio sistema. Dizia no último mail que a própria idéia de procedimentos standard é sacrificada pelo excesso regulamentar de justiças estaduais.

À parte esse enguiço funcional, os cartórios sofrem com a visão completamente distorcida de que devem suportar o ônus das políticas governamentais, como por exemplo a gratuidade do registro civil, a imposição de preços para registro de contratos (como aqueles do FGTS, como v. conhece muito bem) essa pletora de descontos, reduções, gratuidades, imposição de custos indiretos, sem levar em conta, ao menos, os custos inerentes à própria atividade.

Agro business e o coronelato curupira

Participei há tempos de uma mesa redonda em que se discutia a falta de aceitação, pelo mercado, das CPRs (Cédulas de Produtos Rurais). Diante de um almoço frugal, nossos convivas discutiam amenidades. Lá pelas tantas, a representante do Sr. Ministro da Agricultura, Sra. Patrícia Dias, após discorrer sobre as virtudes do agro business, acabou concluindo que o maior entrave à ampliação e afirmação dos agronegócios no país seriam os cartórios paulistas! Por essa razão, o governo pensava na edição de uma MP para regulamentar (rectius: reduzir) as custas e emolumentos.

Como não poderia deixar de ser, a proposta da representante soou a todos os presentes muito natural e a justificativa mais fácil e cômoda para explicar a falta de aceitação desses papéis pelo mercado. Principalmente, serviu para tergiversar as restrições normativas do próprio Ministério da Agricultura, pela secretaria de política agrícola que - segundo afiançava a própria FAESP - "limitam a participação de importantes consumidores na obtenção de linhas de financiamento para carregamento da CPR".

Não chega a causar espanto o fato de que ninguém discorde da edição de Medidas Provisórias como a alvitrada na ocasião pela Sra. Patrícia Dias. De fato, naquele caso ninguém, fora do governo, foi consultado. É fácil a concordância obediente de acólitos ou o apoio interessado dos beneficiários.

O fato, caro Marcel, é que um dos atores coadjuvantes no complexo jogo econômico das CPRs - os registradores - não foram consultados nem mesmo acerca de seus custos operacionais. A desenvoltura com que se decreta a redução de custas e emolumentos raia a irresponsabilidade, pois a falta de critérios técnicos e a falta de respeito a esse importante segmento profissional, é a expressão mais nítida do brutal autoritarismo no trato dessa atividade.

Vamos todos fazendo a lição de casa. Estamos destruindo, com furor bárbaro, as instituições forjadas há séculos e ainda provadas pela experiência. O que pode incomodar mais do que boas idéias?

Abraços do,

Jacomino.
 



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