BE309
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Garantias creditórias, alienação e cessão fiduciárias
Instrumentos legais para securitização de créditos
Sérgio Jacomino
O tema da securitização de créditos e sua repercussão no sistema registral brasileiro está na ordem do dia. Muitas são as dúvidas que assaltam o registrador imobiliário quando se vê diante do pedido de averbação de termos de securitização, registro de cessões de crédito para fins de emissão de certificado de recebíveis, negócios complexos para circulação de créditos imobiliários, etc.
A pletora de novas figuras do direito, concebidas para dar maior agilidade e segurança ao tráfico jurídico imobiliário, causam certa perplexidade ao intérprete. Novos direitos reais, alçados ao rol estrito de direitos que têm assento cativo no registro predial brasileiro, apresentam-se aos olhos curiosos do registrador como novas espécimes mutantes. Clonagem de conhecidas figuras que povoam os seus fólios, para usar uma expressão de moda...
O fato é que essas figuras estão aí, diante de nós, exigindo uma análise detida e mesmo curiosa.
Eu próprio me vi confrontado com um pedido de registro de cessão de créditos (créditos decorrentes de promessa de compra e venda celebrada em caráter resolutivo) para fins de securitização, lastreando os tão falados CRIs - Certificado de Recebíveis Imobiliários.
Confesso minha perplexidade diante de tal operação. A própria Lei 9514/97 cria mecanismos assecuratórios da circulação e lastro dos créditos imobiliários, alçando algumas figuras típicas à condição de direito reais, como é o caso da caução de crédito e mesmo da alienação e cessão fiduciárias (art. 17).
Visto que o legislador robusteceu esses direitos, agora vitaminados com o vigor dos velhos direitos reais, seria de se esperar que as operações compreendidas no sistema de securitização de créditos se fizessem com base justamente nesses instrumentos de garantia. Esse complexo sistema de lastreamento de créditos imobiliários, "securitizáveis", tem certa lógica estrutural, cujo objetivo é a segurança jurídica de todas as operações envolvidas, vistas de quaisquer das suas partes, mas principalmente da perspectiva da segurança jurídica de terceiros. Assim, quando se tem em mira a colocação de títulos no mercado, lógico que na outra ponta o lastro desses títulos, representados por créditos seguros, pudesse ser eficazmente garantido.
Mas como garantir essa higidez creditícia quando a base sobre a qual se assenta apresenta sérios riscos de fissuras? A promessa de compra e venda apresenta notas tão singulares, inçada de reconhecidas dificuldades decorrentes do micro sistema do qual se origina, que não se recomendaria que sobre ela se assentassem as garantias de securitização. Basta verificar a hipótese - nada remota, diga-se de passagem - de resolução do contrato. Como ficariam os títulos colocados no jogo do mercado?
Mas, por outro lado, até que ponto o registrador pode imiscuir-se nessa esfera própria e autônoma dos contratantes que viabilizam seus negócios jurídicos servindo-se dos meios que julgam legais e apropriados? Poderia esse profissional recusar o acesso desses títulos unicamente por perseguir um frágil e impreciso sentido de segurança jurídica que imagina deva dimanar de todo o sistema? Poderia obstar o acesso de tais títulos fazendo uma aposta na exceção dos contratos inadimplidos?
Aqui os limites da atuação dos registrador predial tornam-se demasiadamente fluidos. À míngua de maiores subsídios, consistentes em corpo doutrinário e jurisprudencial que tenha sofrido o processo histórico de decantação e estabilidade, mais prudente parece ser abrir francamente o debate, expondo as dúvidas, perplexidades, certezas a um grupo que não hesito em qualificar de comunidade de estudiosos do direito registral.
Depois de intenso colóquio triangular, envolvendo o advogado e consultor jurídico da Abecip, Dr. Carlos Eduardo Fleury e o advogado Dr. Melhim Namem Chalhub, o resultado de nossas conversações resultou na entrevista que abaixo transcrevo.
As respostas do Dr. Melhim Chalhub como sempre enriquecem o debate. Fomentam a discussão, o estudo, estimulam a inteligência daqueles que têm o privilégio de privar de seu contato profissional.
Ao mesmo tempo em que me declaro em estado permanente de dúvidas acerca dessas novas figuras jurídicas, apresento as certezas da exegese cuidadosa do advogado e doutrinador competente.
A securitização de créditos e o Registro Imobiliário
Melhim Namem Chalhub*
(entrevista concedida a Sérgio Jacomino em 26.abr.2001)
P. o contrato de alienação fiduciária de imóvel só recentemente foi regulamentado pela Lei 9514/97. A Lei prevê mecanismos de segurança e estabilidade para a securitização de créditos, vinculando-os a lastros de garantias reais. Figuras como a caução alçaram à condição de direitos reais. O Sr. Considera possível que os créditos oriundos de compromissos de compra e venda possam ser cedidos a companhias securitizadoras?
R. De fato, o contrato de alienação fiduciária só recentemente foi regulamentado, não tendo sido possível, ainda, reunir-se massa de créditos fiduciários suficientes para impulsionar o mercado secundário. Hoje, a grande massa de créditos imobiliários que existe no mercado é representada por créditos hipotecários e por saldos devedores de contratos de promessa de compra e venda. Indaga-se sobre a possibilidade de se securitizar créditos representados por saldos devedores de promessas de compra e venda. Entendo que os Certificados de Recebíveis Imobiliários (CRI) podem, sim, ser lastreados por créditos representados por saldo do preço de promessas de compra e venda de imóveis. A Lei é clara: "Art. 8°. A securitização de créditos imobiliários é a operação pela qual tais créditos são expressamente vinculados à emissão de uma série de títulos (...), do qual constarão os seguintes elementos: I - a identificação do devedor e o valor nominal de cada crédito que lastreie a emissão, com a individualização do imóvel a que esteja vinculado e indicação do Cartório de Registro de Imóveis em que esteja registrado e respectiva matrícula, bem como o número do registro do ato pelo qual o crédito foi cedido"...
P. Pela sistemática da Lei, o objeto da securitização é o crédito imobiliário. Os créditos decorrentes de compromisso de compra e venda podem ser considerados "créditos imobiliários" para fins da Lei?
R. O objeto da securitização é o crédito imobiliário, genericamente considerado. O crédito decorrente de promessa de compra e venda de imóvel é, obviamente, crédito imobiliário, pois corresponde a uma obrigação vinculada à transmissão da propriedade imobiliária, sabendo-se que o contrato de promessa de compra e venda, a par de encerrar obrigações de fazer e dar, produz efeitos reais; é esse crédito, portanto, legalmente admitido para servir de lastro de securitização nos termos da Lei 9.514/97.
P. Insisto na pergunta, pois a abrangência do que seja propriamente crédito imobiliário deve encontrar limites na sistemática de garantias que lastreiam os títulos postos no mercado...
R. É preciso compreender claramente este ponto. Além da natureza real em que o contrato de promessa está envolvido, importa considerar que a possibilidade desse lastreamento decorre do propósito basilar da lei de expandir ao máximo as opções para negociação de créditos, isto é, incrementar a oferta de crédito no mercado imobiliário. Por isso mesmo é que o texto legal tem sentido generalizador quanto à natureza dos créditos, falando sempre em créditos imobiliários, sem especificar se devem ser hipotecários, fiduciários ou de qualquer outra espécie, qualificando-os apenas como imobiliários, isto é, vinculados a comercialização de imóveis.
P. Dada a abrangência de sentidos que a expressão comporta, seria possível admitir-se como objeto de securitização os créditos decorrentes de percepção de aluguéis?
R. A questão comporta controvérsias, a partir mesmo do universo de que trata essa lei, que é o dos "financiamentos imobiliários em geral" e "créditos imobiliários", não sendo certo, salvo melhor juízo, que os contratos de locação possam integrar a categoria dos "contratos de financiamento imobiliário", nem que os direitos do locador possam ser considerados "créditos imobiliários". Isso não obstante, não se deve descartar o exame de fórmulas especiais que possam viabilizar a adequação de determinadas situações peculiares aos termos da Lei 9.514/97, desde que atendidos dois aspectos fundamentais: a efetiva existência de um crédito a ceder e a possibilidade de se estabelecer um vínculo real entre esse crédito e um imóvel.
P. Admitida que seja a cessão de créditos oriundos de promessas de compra e venda, o que é objeto dessa cessão? Os créditos tão-somente, ou a posição do promitente vendedor?
R. A cessão do crédito não desvincula o cedente de sua posição de titular do domínio e, portanto, não vincula o cessionário ao imóvel objeto da promessa, daí porque na hipótese de desfazimento do contrato de promessa o imóvel retorna ao patrimônio do cedente.
P. Mas aí voltamos ao início: o desfazimento do negócio não implicaria o desfalque no lastro que sustenta a emissão desses títulos?
R. É verdade. Sendo o lastro da emissão de CRI representada unicamente por créditos correspondentes a saldos de preço de promessas de compra e venda, o eventual desfazimento de alguma dessas promessas desfalcará tal lastro. E isto porque, em primeiro lugar, terá perecido o crédito que representava o seu lastro e, em segundo lugar, porque não haverá meios materiais para recompor aquele lastro. Para contornar esse tipo de problema, em situação semelhante, José Osório de Azevedo Jr. sugere, como medida prática, a outorga de procuração ao cessionário para representar o cedente em ações de resolução da promessa. A medida atenderia apenas um aspecto instrumental, mas não outorgaria ao cessionário (securitizadora) os meios necessários para recompor o lastro da emissão de CRI, porque, como resultado da ação de resolução, o beneficiário da retomada do imóvel continuaria sendo o cedente, ainda que representado, por mandato, pela cessionária-securitizadora.
P. Estas operações, conquanto se revistam das formalidades legais, são admitidas pelo sistema, mas representam um risco até certo ponto relevante, pois deixam entreabertos flancos que vulnerabilizam o sistema de segurança de terceiros, representado pelo contrapesos das garantias reais...
R. De fato, o direito creditório decorrente de promessa de compra e venda, muito embora admissível para efeito de securitização nos termos da Lei n° 9.514/97, reveste-se de características muito especiais, e, na hipótese de desfazimento do contrato de promessa, possibilitaria grave desfalque no lastro da emissão do CRI. Nessas circunstâncias, ao se cogitar de utilizar créditos dessa natureza para compor o lastro de emissão de CRI, nos termos da citada lei, é necessário assegurar a utilização dos meios adequados à recomposição do lastro (e, conseqüentemente, recomposição do patrimônio de afetação, no caso de securitização pelo regime fiduciário). De qualquer forma é necessário que estejam entrelaçados direitos de crédito e direitos reais imobiliários, sempre tendo como beneficiária a companhia securitizadora, e, por extensão, os subscritores dos títulos.
P. Mas como contornar esses graves inconvenientes?
R. Um dos meios que se tem cogitado no mercado é a garantia fidejussória, pela qual o cedente do crédito se obriga a, em caso de desfazimento da promessa ou, por qualquer meio, perecimento do crédito, suprir o desfalque mediante substituição do crédito, obrigação essa que, naturalmente, deve ser coberta por alguma garantia, notadamente alguma garantia real, como, por exemplo, a hipoteca. As características especiais desses créditos, em suma, têm que ser adequadamente consideradas para efeito de securitização nos termos da Lei n° 9.514/97, visando sobretudo estabelecer vínculo entre o imóvel objeto do negócio, ou outro bem objeto de garantia real, para efeito de se assegurar a recomposição do lastro da emissão, sendo igualmente necessário adotarem-se não só os cuidados usuais das operações imobiliárias, como, também, outros procedimentos que as circunstâncias recomendarem.
P. Admitida que seja essa cessão, qual a repercussão que pode ter no Registro de Imóveis? É objeto de averbação? de registro? Afinal, trata-se de uma cessão de conteúdo meramente obrigacional, não representando direitos reais...
R. Aspecto de especial relevância é o que diz respeito ao registro da cessão de crédito no Registro de Imóveis da situação do imóvel ao qual esteja vinculado o crédito. A necessidade desse registro pode até ser controvertida, podendo até haver quem entenda ser inadmissível, sob o argumento de que o objeto dessa cessão é o crédito, e não o imóvel. Particularmente, embora admitamos alimentar a controvérsia, somos pela conveniência e até pela necessidade do registro, fundamentalmente porque é nele que reside a segurança jurídica dos negócios imobiliários; há o requisito legal contido no inciso I do art. 8° da Lei 9.514/97, que exige conste do Termo de Securitização, entre outros elementos, "o número do registro do ato pelo qual o crédito foi cedido"...
P. Pelo que se depreende de suas palavras, o Sr. admite o acesso desse título (que encerra direito meramente obrigacional) tão-só pelo valor que a publicidade registral agrega à operação. Vê-se que, por uma necessidade social, a idéia de taxatividade dos fatos inscritíveis fica assim flexibilizada, já que se admite o ingresso de cessões de quaisquer créditos imobiliários...
R. Mas para o caso há expressa previsão legal. O dispositivo trata de requisito essencial no processo de securitização para segurança do mercado investidor, pois é pela publicidade do registro que a securitizadora exibirá sua titularidade sobre o crédito que pretende securitizar. A Lei fala em registro, em sentido lato. Depois, esse registro da cessão feito na matrícula do imóvel assegura a prioridade, evitando duplicidade de cessão do mesmo crédito imobiliário ou, mesmo, a constituição de outras garantias sobre esse crédito, tais como a cessão fiduciária ou a caução.
P. Mas o registro de que fala a Lei é no Registro de Imóveis ou no Cartório de Registro de Títulos e documentos?
R. Nesse passo, importa voltar a atenção para esses dois direitos reais regulamentados pela própria Lei 9.514/97, quais sejam, o direito real decorrente da cessão fiduciária de direitos creditórios e o direito real de caução de direitos creditórios também oriundos de promessas de venda de imóveis; se se pensasse em créditos representados unicamente por títulos (notas promissórias, por exemplo), a cessão fiduciária ou a caução poderia operar-se mediante endosso e tradição dos títulos; entretanto, na medida em que o instrumento representativo desses créditos seja o instrumento de promessa de compra e venda, e apenas esse instrumento, a investidura do credor-cessionário na titularidade dos créditos não decorrerá da tradição de notas promissórias, mas, sim, do instrumento contratual da cessão, e a visibilidade dessa cessão para o público em geral só se tornará possível mediante registro do respectivo instrumento, seja em Registro de Títulos e Documentos, seja no Registro de Imóveis competente. Entendo, todavia, em interpretação sistemática do artigo 8 da Lei 9514/97, que o cartório competente seja o de Registro de Imóveis, pois há a referência a requisitos claramente implicados (indicação do cartório em que registrado o imóvel, respectiva matrícula, "bem como o número do registro do ato pelo qual o crédito foi cedido"). Parece-me lógico que o registro desses novos direitos reais (a cessão fiduciária e a caução de direitos creditórios decorrentes da venda de imóveis) seja efetivado na matrícula do imóvel a que esteja vinculado o crédito, no Registro de Imóveis competente, não obstante o crédito decorrente de promessa de venda não tenha natureza de direito real; independente dessa circunstância, o registro é recomendável como forma de assegurar ao credor-cessionário a prioridade sobre tais direitos, e pela mesma razão, tomando-se como referência a cessão fiduciária e a caução referida nos artigos 17 a 21 da lei 9514/97, parece lógico que a cessão plena do crédito seja objeto de registro também na matrícula do imóvel a que esteja vinculado o crédito.
P. Em face das garantias criadas pela própria Lei 9514/97, seria interessante exercitar um raciocínio prospectivo. Seria possível, por exemplo, a utilização da alienação fiduciária dos imóveis que foram compromissados à venda?
R. Vamos tomar como exemplo um típico compromisso de compra e venda em incorporações imobiliárias. Nesse caso, a incorporadora terá cedido créditos vinculados a promessas de compra e venda; a alienação fiduciária, então, teria como objeto o mesmo imóvel que a incorporadora tiver prometido vender; assim, a incorporadora cederia seus direitos creditórios decorrentes da promessa de compra e venda à securitizadora e a ela transmitiria a propriedade fiduciária do imóvel prometido vender. Poder-se-ia imaginar que, de acordo com a estrutura do contrato de promessa de compra e venda, sendo certo que a incorporadora conserva para si o domínio, poderia ela dispor desse domínio, desde que ressalve que ele está onerado pela obrigação que a incorporadora tem perante o adquirente e, também, está limitado pelo direito real que vincula o imóvel ao adquirente. Entretanto, na hipótese considerada, a idéia é legalmente inadmissível, ainda que ressalvada a oneração da promessa, por causa da estrutura legal peculiar da alienação fiduciária. Com efeito, pelo contrato de promessa de compra e venda o promitente vendedor conserva o domínio sobre o imóvel, transmitindo ao adquirente o direito de adquirir e, bem assim, a posse sobre o imóvel. Pelo contrato de alienação fiduciária, o fiduciante é também investido na posse do imóvel, tal como dispõe o parágrafo único do art. 23 da Lei n° 9.514/97.Ora, no caso em questão, o que se imaginaria é que a incorporadora, que é a promitente vendedora, pudesse contratar a alienação fiduciária com a securitizadora, para garantir créditos que viessem a desaparecer por desfazimento de promessas; por esse contrato, a promitente vendedora (incorporadora) seria a fiduciante, enquanto que a securitizadora seria a fiduciária; pela estrutura da alienação fiduciária, o fiduciante fica com a posse direta e o fiduciário fica com a posse indireta. É que, ao firmar o contrato de promessa de compra e venda, a incorporadora já terá transmitido a posse direta do imóvel ao adquirente, não havendo possibilidade de se promover o desdobramento da posse em posse direta e posse indireta, para que ela, incorporadora, alienando o imóvel fiduciariamente à securitizadora, fique com a posse direta e transmita à referida securitizadora a posse indireta.
P. Resulta claro que a existência de promessa de compra e venda frustraria a possibilidade de a incorporadora constituir garantia de propriedade fiduciária em favor da securitizadora. E a cessão fiduciária dos direitos creditórios oriundos da promessa?.
R. Por essa forma, a incorporadora cederia fiduciariamente os direitos creditórios de que é titular contra os adquirentes; a estrutura do contrato de promessa de compra e venda não sofreria qualquer alteração, mantendo-se todas as condições de pagamento, o prazo etc; a incorporadora transmitiria os créditos, pura e simplesmente, em termos fiduciários. A cessão fiduciária é contrato de cessão limitado pelo escopo de garantia. Aplicam-se à cessão fiduciária as regras relativas à cessão plena, com a ressalva, obviamente, das limitações próprias do escopo de garantia. A cessão fiduciária é contrato acessório, pois é garantia de contrato de empréstimo, de abertura de crédito ou de outro contrato de natureza similar. Assim, a incorporadora obtém do cessionário-fiduciário um empréstimo e, em garantia, cede ao emprestador, fiduciariamente, os créditos vinculados aos contratos de promessa de compra e venda. Por esse contrato, a incorporadora (cedente) se desprende da titularidade dos créditos, mas só temporariamente, pois esses créditos passam à titularidade do emprestador (cessionário) para atender à finalidade da garantia, isto é, para permitir que o emprestador (cessionário) vá recebendo dos devedores da incorporadora-cedente, que são os adquirentes, e vá aplicando o produto desse recebimento na amortização da dívida do mesma incorporadora-cedente. Dada essa configuração, a Lei 9.514/97 (art. 19) autoriza o emprestador-cessionário a receber diretamente dos devedores da incorporadora-cedente, fazendo as vezes da incorporadora e, até, exercendo as eventuais ações judiciais a que a incorporadora-cedente esteja legitimada para realização da cobrança (e somente para a cobrança). Na dinâmica desse contrato de garantia, os valores das prestações que o emprestador-cessionário receber do adquirente vão sendo creditadas à incorporadora-cedente até a satisfação do crédito do emprestador-cessionário. Os direitos creditórios cedidos fiduciariamente constituem um patrimônio especial, com autonomia funcional; na hipótese de falência da incorporadora-cedente, esses créditos não são atingidos pelos efeitos da quebra, prevendo a lei, expressamente, que, se os créditos forem representados por títulos, e se esses estiverem, eventualmente, na posse da incorporadora-cedente, não poderão ser arrecadados na massa, isto porque a lei as considera separados do patrimônio geral do cedente, para exercer a função de amortizar determinada dívida e, assim sendo, deverão ser restituídos ao emprestador-cessionário (lei 9.514/97, art. 20). Da análise da cessão fiduciária fica claro que ela é excludente da cessão plena; enquanto a cessão plena é contrato independente, que opera autonomamente a transferência do crédito em termos completos e definitivos, a cessão fiduciária é contrato acessório, cuja existência, obviamente, depende da existência de um outro contrato, que será o contrato principal em relação à referida cessão fiduciária. Assim, a cessão fiduciária só poderá ser utilizada se houver um contrato qualquer de crédito, para cuja garantia seja utilizada a cessão fiduciária de direitos creditórios.
P. Voltamos ao problema do desfazimento do compromisso de compra e venda, que é base e arrimo da cessão fiduciária...
R. De fato, a cessão fiduciária apresenta os mesmos problemas apresentados pela cessão plena, se eventualmente ocorrer o desfazimento do contrato de promessa de compra e venda. Em ambas as hipóteses - cessão plena ou cessão fiduciária - o objeto do negócio (que é o crédito) desaparecerá, daí porque sempre haverá necessidade de uma outra garantia para suprir essa lacuna. Portanto, a cessão fiduciária, quando tiver por objeto créditos vinculados a promessa de compra e venda, é insuficiente para garantia no processo de securitização.
P. A garantia hipotecária é sempre possível nesses casos. Como o Sr. conceberia um mecanismo de garantia das operações de securitização tendo por objeto a cessão de crédito oriundos de promessas?
R. - Ainda como garantia da securitizadora e do investidor, para assegurar a obrigação de ressarcimento pela incorporadora nas hipóteses de desaparecimento do crédito ou de não realização do crédito que constitui lastro do CRI, pode-se também cogitar da possibilidade de a incorporadora-cedente constituir em favor da securitizadora hipoteca dos imóveis objeto das promessas de compra e venda.Essa hipoteca se justificaria porque a cessão dos créditos vinculados à promessa, que tiver sido feita em favor da securitizadora, não transmite a esta nenhum direito real sobre o imóvel, mas somente a relação de direito obrigacional existente entre a incorporadora e o adquirente. É claro que, na cessão fiduciária, como se viu, há uma relação de direito real, mas seu objeto é o crédito cedido fiduciariamente, e não o imóvel. Assim, qualquer que seja a modalidade de cessão que tenha sido contratada com a securitizadora - cessão plena do crédito da promessa ou cessão fiduciária desse crédito - esta não alcançará o imóvel, mas somente o crédito. Para suprir essa insuficiência, pode-se cogitar de contratar a cessão do crédito (plena ou fiduciária) e, simultaneamente, a obrigação do cedente de recompor o lastro em caso de desaparecimento do crédito, com garantia de hipoteca sobre imóvel.
P. Como se contrataria essa hipoteca?
R. A hipoteca seria outorgada pela incorporadora à securitizadora para o fim de garantir a obrigação desta última de recompor eventual deficiência ou o inadimplemento na realização dos créditos cedidos à securitizadora, e que tem por destinatário final os titulares dos CRIs. Ademais, a hipoteca estaria garantindo os riscos de eventual resolução da promessa de compra e venda e do conseqüente desaparecimento do crédito. De fato, mesmo havendo a cessão do crédito, em termos plenos ou fiduciários, a relação jurídica relativa ao contrato imobiliário de promessa de compra e venda continua vinculando exclusivamente a incorporadora e o adquirente, pois, como se disse, a cessão do crédito limita-se ao crédito, não operando substituição da posição contratual da incorporadora; disso decorre que, se houver algum litígio envolvendo a promessa de compra e venda e, por qualquer meio, esta vier a ser desfeita, as partes retomam suas posições anteriores, ou seja, a incorporadora recupera a plena propriedade do imóvel e o adquirente recupera parte do dinheiro que tiver pago. Para a eventualidade de desaparecimento do crédito que constituía o lastro da emissão do título, poder-se-ia cogitar da constituição de garantia hipotecária tendo como objeto o próprio imóvel que tiver retornado ao patrimônio da incorporadora-cedente, em favor do qual tiver revertido o imóvel. A hipoteca garantiria o conjunto de obrigações que, nos instrumentos formalizadores da securitização, a incorporadora-cedente tiver constituído em favor da securitizadora-cessionária.
P. A tese é inovadora. A hipoteca, nestes casos, assume uma característica especialíssima...
R. Não há dúvida de que essa hipoteca se reveste de contorno especial, obviamente condicionado pela natureza das diversas obrigações que irá garantir, que são peculiares do processo de securitização e assim devem ser consideradas. Deve essa garantia, portanto, ser objeto de estudo específico para cada caso, na medida em que as situações em que a securitização se estrutura e se opera são variadas e multifacetadas. As cautelas recomendadas para eleição dessa garantia e para sua formulação se justificam também na medida em que, muito embora se trate da modalidade de garantia mais adequada, em tese, a esse tipo de operação, pode a hipoteca, eventualmente, mostrar-se imprópria ou inaceitável no caso concreto e, assim, frustrarem-se os propósitos eventualmente preconizados. Entre os vários aspectos a serem considerados, releva considerar, por exemplo, o que trata da anuência do promissário comprador no instrumento de constituição da hipoteca, na medida em que a recente Portaria n° 3, 15.3.01, expedida pelo Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, sinaliza para a nulidade da cláusula da promessa de compra e venda que confira poderes à incorporadora para hipotecar a unidade prometida vender. Em suma, a estruturação desse negócio e sua garantia, embora implique apenas pequenas alterações no contorno contratual das cessões de crédito e da eventual prestação de serviço de administração, importarão profundas alterações no que tange ao tratamento das garantias. Nesse sentido, será necessário formalizar estipulações específicas relativas à garantia hipotecária, às hipóteses de exigibilidade das obrigações a que estiver vinculada, ao modo de sua execução etc.
P. Um aspecto que merece destaque é o fato de que os compromissos de compra e venda - cujos créditos serão cedidos para fins de securitização - devem obrigatoriamente ser registrados. O Sr. concorda com isso?
R. Como vimos, os créditos oriundos de promessa de compra e venda podem lastrear Certificado de Recebíveis Imobiliários - CRI. Esses compromissos, contudo, devem ser registrados, para atendimento do disposto no inciso I do art. 8 ° da Lei 9.514/97, pelo qual o "termo de securitização" deve conter a individuação do imóvel a que esteja vinculado [o crédito] e indicação do Cartório de Registro de Imóveis em que esteja registrado e respectiva matrícula
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* Melhim Namem Chalhub é advogado do Escritório Felsberg e Associados - Advogados e Consultores Legais. É Consultor da Associação Brasileira das Entidades de Crédito Imobiliário e Poupança - ABECIP e membro efetivo do Instituto dos Advogados Brasileiros, no qual elaborou, recentemente, anteprojeto de lei de reformulação das incorporações imobiliárias, a elas aplicando a teoria da afetação, que já foi convertida em 3 Projetos de Lei em tramitação na Câmara dos Deputados. É autor de vários livros e ensaios sobre a moderna teoria contratual e sobre o direito das coisas, destacando-se os livros "Negócio Fiduciário" e "Propriedade Imobiliária: função social", ambos editados pela Editora Renovar, nos quais trata dos aspectos atuais da circulação de capitais, especialmente da securitização do patrimônio de afetação e das novas garantias fiduciárias do direito brasileiro.;
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