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Concretização da parceria IRIB/MP/Escola da Magistratura
A seguir, o Des. Antônio Cezar Peluso declarou:
"É uma honra pessoal formalizar a abertura deste seminário.
Em primeiro lugar, porque, concretizando um velho projeto da atual diretoria da Escola, ele representa a oportunidade de tornar efetiva a atuação da Escola Paulista da Magistratura em parceria com as instituições e, em particular, com o Ministério Público do Estado de São Paulo e com o Instituto de Registro Imobiliário do Brasil - IRIB.
Em segundo lugar, porque este seminário representa também a realização de uma das funções primordiais da Escola Paulista da Magistratura e, de certo modo, também dos demais co-patrocinadores do evento, que é contribuir para o aprimoramento pessoal dos integrantes das suas categorias e contribuir também para o esclarecimento e o debate de temas de profundo interesse jurídico-social.
Em terceiro lugar, pelo prazer e a honra de saudar, em nome da comunidade jurídica paulista e brasileira ao Prof. Dr. Rafael Arnaiz Eguren, a quem apresento rapidamente, registrando que se trata de um professor universitário, doutor, registrador da propriedade, Secretário Geral do Centro Internacional de Direito Registrário sediado em Madri e Assessor da Comissão de Assentamentos Humanos da Organização da Nações Unidas - ONU."
O palestrante internacional
Aguardada com ansiedade, a palestra do registrador espanhol não decepcionou. Com tradução simultânea em português para que nenhuma palavra se perdesse, sua exposição sobre "O Direito Urbanístico e o Registro Imobiliário" provocou animado debate, que contribuiu para o aprofundamento do tema central do encontro.
Na introdução de sua palestra, o Prof. Dr. Rafael Arnaiz Eguren falou da sua satisfação em poder falar de urbanismo e de registro, em especial "numa cidade como São Paulo, que é um exemplo de problemas urbanísticos, conhecidos a nível mundial", ou seja, um desafio para qualquer especialista na matéria.
Em relação ao tema, muito extenso, o professor resolveu prender-se aos aspectos mais importantes do urbanismo, na sua opinião, e àqueles que afetam o registro da propriedade como instituição.
Para ele, a dificuldade inicial é a de que o urbanismo e o direito urbanístico normalmente estejam ligados ao campo do direito público, de forma que os mecanismos próprios do direito privado, e especialmente a publicidade registral, se não chegam a ser desconhecidos, são um tanto alheios aos especialistas de direito público que manejam o processo de transformação do solo.
A publicação esperada
A palestra do Prof. Dr. Rafael Arnaiz Eguren está sendo traduzida para ser divulgada no Boletim do IRIB, edição de fevereiro, que publicará as sinopses de todos os trabalhos apresentados, e na Revista do Direito Imobiliário, que terá edição especial com a íntegra de todos os temas do seminário.
Acompanhe os temas do I Seminário Internacional de Direito Urbanístico e Registral
O auditório do Hotel Porto do Sol, em São Paulo, permaneceu lotado nos quatro painéis de exposições que duraram todo o dia. O primeiro painel foi constituído pela palestra do Prof. Dr. Rafael Arnaiz Eguren. A seguir, você vê a introdução de todos os temas dos outros três painéis.
Loteamentos clandestinos: prevenção e repressão.
À mesa de trabalhos do 2º painel do seminário sentaram-se os seguintes expositores: Dr. Francisco Eduardo Loureiro, Juiz de Direito e Assessor da Presidência do Tribunal de Justiça de São Paulo; Dr. José Carlos de Freitas, Promotor de Justiça e Coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo - CAOHURB e Dr. João Baptista Galhardo, Registrador de Araraquara, SP, e Diretor do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil.
Dr. Francisco Eduardo Loureiro: poder de polícia para enfrentar o loteamento clandestino.
"Quando falamos em loteamentos clandestinos, precisamos saber o que é um loteamento clandestino. Podemos falar, primeiramente, no grande gênero dos loteamentos ilegais. O que são loteamentos ilegais? Loteamentos ilegais são todos aqueles que ofendem normas cogentes afetas ao parcelamento do solo. É comum se afirmar que loteamento ilegal é o gênero que diz respeito só à ofensa à Lei 6766. Não é bem assim. É loteamento ilegal aquele que ofende ou que não atende aos requisitos da Lei 6766. Mas são tão ilegais quanto ele, os loteamentos que atentam contra leis de caráter urbanístico, leis ambientais e também contra o Código de Defesa do Consumidor.
Dentro desse grande gênero de loteamentos ilegais teríamos, aí sim, duas espécies: a de loteamentos irregulares e a de loteamentos clandestinos, que é a espécie de que vamos tratar.
Os loteamentos irregulares seriam aqueles que teriam vícios jurídicos de menor gravidade, porque às vezes os vícios fáticos físicos são de gravidade superior ao dos loteamentos clandestinos. Assim, os loteamentos irregulares seriam aqueles que têm aprovação urbanística da prefeitura e de outras autoridades ou entes administrativos, mas que não foram registrados, ou foram registrados mas foram irregularmente executados: executados em desacordo, quer com as aprovações, quer com o registro.
Além desses, nós temos como espécie do gênero loteamento ilegal os loteamentos clandestinos, ou seja, aqueles que não obtiveram sequer a aprovação urbanística e, portanto, não obtiveram também o registro no Registro de Imóveis. Esses seriam os loteamentos clandestinos. É claro que o loteamento clandestino tem um vício jurídico mais severo do que o loteamento irregular, porque ele não tem sequer aprovação urbanística. Mas é falsa a idéia de que o fato dele não ter sequer aprovação urbanística tornará mais difícil a sua regularização do que a dos loteamentos irregulares. Isso vai depender da natureza do vício físico de que padecer o loteamento. Logo, poderemos ter loteamentos clandestinos que não obtiveram nenhuma aprovação urbanística de nenhum órgão (Prefeitura, Graprohab, etc) e que seja perfeitamente regularizável porque a gleba está em nome do loteador ou parcelador e, bem ou mal, ele seguiu fisicamente e faticamente regras de Direito Urbanístico. Por exemplo: tamanho de lote, largura de rua, ocupação do solo, guardou espaços para equipamentos públicos e comunitários. Nesse caso, embora a regularização dependa de maior trabalho jurídico, ou seja, de aprovações e registros, ele certamente será mais fácil.
Em contrapartida, nós poderemos ter loteamentos apenas irregulares, que tiveram aprovação e registro perfeitos, mas que não foram executados de acordo com o projeto. A implantação foi errada. É claro que normalmente esses vícios são menos severos. É mais fácil consertar esses vícios do que o loteamento clandestino. Mas nem sempre isso ocorre. Temos que ressalvar a possibilidade desses loteamentos padecerem de tal irregularidade na implantação, que seja praticamente inviável a sua regularização. Basta pensar na hipótese de um loteamento totalmente implantado em desacordo com a aprovação: que as ruas não tenham a largura prevista, que não haja sobra de espaço para instalação de equipamento público, que os novos termos da Lei 6766, especialmente Arts. 2º e 3º, inviabilizem essa regularização.
Quais são as medidas de combate a essa ilegalidade? O Juiz Vicente de Abreu Amadei escreveu um artigo, publicado na Revista do IRIB, em que ele, corretamente, faz uma boa classificação. Ele fala em ações preventivas e ações saneadoras. Quais seriam as ações preventivas, ou seja, controles de precaução para o loteamento clandestino?
A primeira delas, e certamente a maior, seria o poder de polícia pela administração pública, que hoje é exercido de forma muito tímida. Nós temos que lembrar que poder de polícia é atribuição do Estado, disciplinada por lei, que limita o exercício de direitos individuais em benefício de toda a comunidade. Ele tem três condutas básicas nesse poder de polícia: poder de regulamentação, controle e, principalmente, de contenção.
E mais, ele tem três características marcantes que são: a discricionariedade, a auto-executoriedade e a coercibilidade. Logo, a autoridade administrativa pode e deve exercer o poder de polícia com todo o rigor para coibir o parcelamento ilegal. Isso, lamentavelmente, não tem sido feito." (a continuação da palestra será publicada no Boletim do IRIB e o texto, revisado pelo autor, na Revista de Direito Imobiliário).
Dr. José Carlos de Freitas: "O crime é organizado mas as instituições não se organizam para combatê-lo."
"Eu gostaria de parabenizar a organização do evento, ao mesmo tempo parabenizar o próprio Centro de Apoio, nas pessoas das colegas promotoras Cláudia Fernandes e Claudia Berê. Parabenizar também o Dr. Peluso e o IRIB. Tenho especial satisfação em ver uma platéia cheia e seleta, com operadores do direito interessados na solução desses problemas relativos à questão dos loteamentos clandestinos.
(...)
Eu gostaria apenas de acrescentar algumas observações. Situar esse problema dos loteamentos dentro de um contexto, que não é restrito só a uma mera atividade de parcelamento físico, material, de um lote, de uma gleba. Vivemos hoje numa sociedade que tem cerca de 80% de pessoas morando nos centros urbanos. A explosão desse processo de urbanização se deu basicamente a partir da década de 40. Hoje temos um contexto de ocupação urbana, além de processo migratório e déficit habitacional. São problemas variados de um contexto sócio-econômico complexo que não poderemos resolver neste seminário. Mas acredito que cada um de nós aqui tem uma tarefa, ou uma missão, de tentar combater esse tipo de ocupação irregular do solo.
A nossa proposta vai no sentido de uma conjugação de esforços porque temos assistido à implantação desses loteamentos, parcelamentos irregulares ou clandestinos e, por trás dessa empresa, na verdade, existe o crime organizado. Nós do Ministério Público, magistratura, registradores, enfim, até o próprio poder público municipal, cada um tem atuado de forma isolada. Então, o crime é organizado mas as instituições não se organizam para combatê-lo." (a continuação da palestra será publicada no Boletim do IRIB e o texto, revisado pelo autor na Revista de Direito Imobiliário)
Dr. João Baptista Galhardo: desafetação de bem de uso comum do povo é inconstitucional.
"(...)
Se não bastasse a emoção do momento, tive a surpresa agradável de encontrar neste dia um amigo de mais de 30 anos, Dr. Hélio Quaglia Barbosa, desembargador, juiz padrão do nosso Tribunal de Justiça. Peço licença para dirigir-me a este amigo de muitos anos e, ao referir-me a Vossa Excelência, homenagear toda a magistratura paulista.
(...)
Quero também homenagear o Ministério Público do Estado de São Paulo, na pessoa deste simpático e brilhante representante, Dr. José Carlos de Freitas, responsável pelo aprimoramento dos estudos do Direito Urbanístico no Estado de São Paulo.
(...)
Com referência ao tema desta exposição, lembrei-me de que há muitos anos, o próprio poder público municipal vem tornando irregular, o que nasce regularmente. Refiro-me à insensibilidade administrativa do administrador municipal, quando subtrai do loteamento regularmente registrado aqueles espaços que, em razão do registro do loteamento, passaram para o município como bem do uso comum do povo, conseqüentemente inalienável e de destinação imutável.
Ao aprovar o loteamento, deve-se reservar os espaços mencionados no Art. 4º, inc. I, da Lei 6766: praças, ruas. E esses espaços livres, destinados a edifícios públicos e outros equipamentos urbanos, desde o registro passam a pertencer à classe de bens inalienáveis como bens de uso comum do povo. E a Constituição Estadual de São Paulo inseriu, no inc. VII, do Art. 180, a proibição de alteração da destinação originária.
Quem já viveu mais de 50 anos sabe muito bem que os espaços livres dos nossos municípios estão desaparecendo. Não consigo entender como é que uma praça pública pode perder a destinação. Por ser praça não pode mudar a sua destinação. Por mais simples que seja, chão batido, cumpre a sua função ambiental urbanística e a sua função social.
(...)
Esta é também uma forma de loteamento irregular e com a mão da própria administração. Então, o que fazer? O nosso Tribunal de Justiça tem decretado, reiteradamente, a inconstitucionalidade de lei municipal que desafeta um bem de uso comum do povo, entregando para particulares.
Há um equívoco de vereadores e prefeitos ao confundirem desafetação legal com desafetação de fato. Até mesmo aqueles que entendem que o dispositivo da nossa Constituição Estadual fere a autonomia municipal não têm condição de sustentar que a desafetação legal deve ser precedida da desafetação de fato. Há necessidade de que o bem de uso comum do povo venha a perder, com exaustiva produção de prova, a sua finalidade originária para que ela possa ser transferida para o particular.
Mas, volto a insistir, não encontro razão para se desafetar uma praça. Enquanto for praça, ela tem que ser mantida como tal porque tem a sua função ambiental, urbanística e social.
(...)
E o que se nota, na prática, é que isso só acontece com os loteamentos humildes. Não vão tirar a praça de um loteamento cinco estrelas, de um loteamento fechado. Ao contrário, vão até conceder o uso privativo daqueles espaços.
Atrevo-me até a dizer que a Ação Direta de Inconstitucionalidade, embora alcance a eficácia de decretar a inconstitucionalidade da lei municipal, que vem desafetar o bem de uso comum do povo, não é tão eficiente como a ação promovida no próprio juízo monocrático pelo promotor de justiça porque, em primeiro grau, poderia o promotor de justiça alcançar não somente a anulação daquela alienação feita pelo poder público para particular, não somente obstar uma doação que se ameaça fazer, como também, conseguir antecipadamente muitas tutelas, como interromper construções.
É claro que se se tentar a anulação de uma alienação, vai-se questionar a constitucionalidade daquela lei municipal, mas de forma incidental, por via de exceção.
O nosso Tribunal decidiu, recentemente, ser possível a ação em primeiro grau. Tendo sido realizada a doação da área com base na referida lei, óbvio que o pedido de anulação do ato vai atingir a própria lei:
Decisão.
Como foi dito pelo Procurador de Justiça oficiante, a declaração de inconstitucionalidade está sendo pedida apenas de forma incidental e não direta. Ante o expendido, o Ministério Público, por seu órgão de primeiro grau, tem legitimidade ativa, ficando afastada essa argüição. No mesmo sentido e sob os mesmos fundamentos é competente para apreciar e julgar a presente Ação Civil Pública, o Juízo monocrático. Mantém-se, portanto, a respeitável sentença também nessa parte, valendo relembrar o que lá ficou consignado acerca do tema do seguinte teor: ´Ora, se a Lei Maior elege o Ministério Público como defensor do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos (Art. 129, inc. III da Constituição da República), obviamente pressupõe a vigência de normas regulando legitimamente tais situações de fato, condição sem o que inexistiriam conseqüências jurídicas e os direitos subjetivos pertinentes.' Com efeito, o Art. 180, inc. VII, da Constituição Estadual, aplicável à espécie, proíbe o município, em qualquer hipótese, alterar a destinação originariamente estabelecida de áreas verdes ou institucionais definidas em projeto de loteamento. Daí a afirmativa correta, no sentido de que a municipalidade não poderá jamais alterar a destinação do imóvel objeto mesmo porque compete com exclusividade à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre Direito Urbanístico (Art. 24, inc. I, da Constituição Federal). Portanto, não há que se falar em inconstitucionalidade do disposto supracitado Art. 180, inc. VII da Constituição Estadual e nem que o mesmo fere a autonomia do município se o município não tinha competência para editar a lei autorizando a doação do terreno, isto é, alterando a sua destinação. Aplicável também, subsidiariamente, no caso, a Lei 6766, de 1979, que também impede alteração ou modificação da área objeto da doação. Com efeito, reprisando, aquela área foi destinada pelo loteador para nela ser localizada uma praça. Se o loteador não podia mudar essa destinação porque o imóvel tornou-se bem público comum do povo, e não somente para os proprietários do lote, a municipalidade por igual também não poderia fazê-lo ante os termos do Art. 180, inc, VII, da Constituição Estadual.
É que o bem de uso comum do povo não é do município, é de uma coletividade anônima. Uma coisa é certa: enquanto não se alterar a destinação, não pode ser desafetada. E volto a dizer: não vejo como um espaço livre, destinado a ser praça , pode ser desafetada e ser entregue a particulares."
Inexatidões, retificações e cancelamentos de registro.
O tema do 3º painel foi desenvolvido pelo Dr. Ricardo Henry Marques Dip, Juiz do Tribunal de Alçada Criminal de São Paulo, ex-Juiz da Vara de Registros Públicos e da Corregedoria Geral da Justiça, além de professor de direito. O palestrante cedeu, gentilmente, o excelente texto da sua palestra para publicação pelo IRIB. Confira os extratos abaixo.
Dr. Ricardo Henry Marques Dip: "só a Verdade nos retificará".
(...)
"Retificar o registro é torná-lo reto, é ordená-lo a um fim. Mas que fim se busca mediante a retificação do registro? Por certo um bem - e, se se trata de um registro jurídico -, de um bem jurídico. Ora, os bens jurídicos assim se constituem por uma de duas razões fundamentais: ou pela natureza das coisas - e aqui se abre o amplo campo da lei natural e do direito natural (direito natural que é uma coisa, é res, a res justa, a coisa justa, ela mesma, não regra alguma a seu respeito) - ou por uma determinação pública (lei humana não meramente declarativa da lei natural) ou convenção privada (um acordo de vontades).
(...)
É certo que ainda a lei humana determinativa deve guardar respeito à natureza das coisas, e mais ainda que, uma vez instituído o registro público, há certo gênero de coisas que nele ou por ele não se constituem, porque, antes, foram coisas que lhe ensejaram a constituição. O que significa dizer que há princípios pressupostos no registro, que o antecedem e não são criação legislativa. Uma vez que esses princípios sejam reconhecidos e atuados, a instituição existe como tal. Um exemplo: um registro público não pode ser sigiloso, nem pode deixar de registrar: algo assim que seja um "arquivo privado e secreto" pode decerto existir - cada um de nós tem alguma espécie desse arquivo em casa - e não falta que alguém o designe ou queira designar por "registro público", mas isto não o será, porque não é registro e não é público. E pouco importa que o Estado o denomine registro público: não o será, ressalvada uma revolução verbal ou anarquia terminológica. O problema não se soluciona por meio de uma fala superior ou inferior, mas, objetivamente, pela coisa mesma.
(...)
Mas a ocupação com a forma não é o mesmo que formularismo. O registro atualiza uma existência - suposta a matéria a formalizar - ou, quando menos, representa o já existente fora e antes da inscrição. Numa ou noutra dessas situações - formalização e representação -, a forma se aprecia numa perspectiva existencial e não ao modo de uma forma hipostasiada centrável em si própria. Em alguns casos, a coisa jurídica não existe antes da inscrição: à matéria, causa ou título inere uma forma, que é o próprio registro, e só a partir dessa inscrição constitutiva e em razão dela é que a coisa adquire existência jurídica: forma-a o registro, aplicando-se a uma causa antecedente. Atualiza uma potência. Noutros supostos, é bem verdade, o registro não opera como forma, senão que se acrescenta, à maneira de um acidente, para conferir certos predicados, p.ex., o de disponibilidade nas inscrições declarativas, ou o de simples difusão com efeitos provativos, nas de mera notícia. Sempre, nessas duas situações, contudo, há uma coisa jurídica a estimar pelo registro, seja para constituí-la, seja para declará-la ou notíciá-la, de tal modo que essa coisa limita a expressão do registro. É seu critério, é seu sinal discriminador. Um critério, ao que se percebe, tanto dirigido ao plano epistêmico - a busca de um dado objeto de conceito -, quanto ao plano da expressão, porque, inevitavelmente, exige um logos externo, i.e., a palavra exterior.
(...)
A retificação do registro, prossegue-se, não se acha limitada a ser mera notícia ou denúncia de inexatidões registrárias. Não lhe basta advertir o lapso compreensivo, expressivo ou procedimental, mas se exige dela tornar reto ou ordenar o registro, emendando o erro - o que ora é mera extirpação de dados (retificação negativa: o cancelamento simples), ora é aditamento de indicações (retificação positiva), ora um e outra coisa (retificação mista).
Tanto a inexatidão - que se diz lato sensu, por aqui englobar, numa simplificação cômoda de linguagem, a discordância registral (dissonância superveniente ao registro) e o erro registrário (lapso da atividade própria do registrador), sendo a inexatidão em sentido estrito o equívoco proveniente do título inscritível -, repete-se: tanto a inexatidão lato sensu, quanto sua retificação, são relacionáveis à idéia de verdade. Se bem que o escopo de veracidade - ou acaso melhor: de verificação - seja registrariamente limitado ao plano da forma e ao fim da segurança jurídica, é certo que o registro está voltado a formalizar ou a representar a verdade das coisas: a verdade é o critério das retificações registrais.
(...)
A lei brasileira, a esse propósito, é muito gráfica: o art. 860 do Cód. Civ. prevê que cabe ao prejudicado reclamar a retificação do registro, se este último "não exprimir a verdade". É o que rediz o art. 212 da vigente Lei brasileira de Registros Públicos (Lei 6.015/73): "Se o teor do registro não exprimir a verdade, poderá o prejudicado reclamar uma retificação...". E o art. 213 dessa última Lei mencionada reza que "poderá ser retificado o erro constante do registro". (...)
(...)
A segunda projetada observação diz respeito ao relacionamento entre a retificação registral - cujo critério é a verdade - e a legitimação tabular. Admitir a fé pública registral stricto sensu ou a legitimação registrária é um problema decisivamente normativo, ainda que influído da tradição. No direito brasileiro vigente, propende a doutrina - de modo estendido - a sufragar o entendimento de que se adotou o princípio da legitimação registral (arts. 859 e 860, Cód.Civ., e art. 252, Lei n. 6.015/73).
Significa dizer que o assento registrário se presume integral (aspecto negativo) e exato (aspecto positivo). É presumidamente integral, porque não omite nenhum dado que nele deveria obrigatoriamente constar; e é presumidamente exato, porque nele nada se enuncia em dissonância com a realidade. A só previsão da possibilidade retificadora do registro conduz a cogitar do ataque à presunção de sua integralidade e exatidão. E aqui se põe um tema interessante, porque a presunção relativa que pareceria anunciar-se como condicional no caput do art. 860, Cód. Civ. brasileiro, de conseguinte induziria à admissão simplex da prova em contrário do enunciado registral. Se, entretanto, se conjugam as previsões dos arts. 533 e 860, par. ún., do mesmo Código, verifica-se que o sistema brasileiro adotou uma presunção registral intermédia de integralidade e exatidão. Intermédia entre a fé pública e a mera presunção condicional; intermédia, porque admite a prova em contrário ao enunciado tabular, mas resguarda o efeito dessa prova a um certo modo, qual o do cancelamento do registro. É o que se lê também no art. 252 da Lei n. 6.015/73: "O registro, enquanto não cancelado, produz todos os seus efeitos legais, ainda que por, outra maneira, se prove que o título está desfeito, anulado, extinto ou rescindido".
A essa restrição modal do ataque à presunção registrária ou, em outros termos, a essa limitação da consideração jurídico-registral da verdade concorre um outro limite epistêmico: a decisão registrária ambienta-se em seu mundo, de maneira similar ao que ocorre com o juiz que, enquanto tal, somente aprecia e decide o que se encontra nos autos - quod non est in acta, non est in mundo. Ao registrador, enquanto tal, se oferece o limitado mundo tabular, ainda que também habitado por títulos pendentes de inscrição: quod non est in tabula et in instrumenta, non est in mundo.
Casos há em que o registrador e alguma vez, com ele ou contra ele, o juiz em função administrativa, se deixam conduzir por uma tendência, muito sedutora, de suplantar obstáculos de forma para ampliar os lindes do mundo registrário. O pretexto, como isto é de uma tópica já conhecida, é o da vaga realização da justiça. Ora é uma verificação de campo - que afiança inexistir rua implantada onde uma prefeitura diz que há, ou que assinala um edifício em construção onde diz o título haver terreno inedificado que se aliena em frações ideais; ora ainda é uma inclinação de eqüidade corretiva - o título de um foi prenotado antes do de outro, mas se o último, teme-se, foi ludibriado pelo vendedor, pois que se inverta a ordem da prenotação... Não se percebe que esse senso difuso de justiça informal é a forma de uma injustiça: conduz à administrativização de um campo que é só propício à jurisdição contenciosa, para além de consistir em maltrato da legalidade estrita.
(...)
6. Com o cancelamento - que é uma retificação negativa -, dá-se o fato de que, de modo específico, a normativa de regência, no Brasil, admita que sua inscrição se perfaça "a requerimento unânime das partes" (art. 250, II, Lei 6.015) e "a requerimento do interessado, instruído com documento hábil" (art. 250, III, Lei 6.015). Essa previsão de procedimento não judiciário - a que concorre referência ao "cumprimento de decisão judicial transitada em julgado" (art. 250, I, Lei 6.015) -, faz com que o cancelamento registral se torne uma retificação favorecida em relação às demais. É verdade que o caput do art. 213 da Lei 6.015/73 prevê a retificação de erro constante do registro, "a requerimento do interessado", mas, no rigor da letra legal, parece referi-la a um "despacho judicial" (§ 1º, art. 213), salvo o caso de erro evidente, no qual se admite a atuação direta do registrador (id., segunda parte). Dessa maneira, a retificação do registro imobiliário - ressalvado o caso de cancelamento - é comumente judiciária e, de modo excepcional, atribuída ao registrador.
Na prática da justiça registral, houve duas linhas de alargamento da hipótese exceptiva: por uma delas, ampliando a esfera do erro evidente; pela outra, concedendo a retificação motu proprio que, com rigor, não se acha conformada ao preceito de regência: a norma do § 1º, art. 213, da Lei 6.015/73, não pode compreender-se à margem do caput desse mesmo artigo que inicia com as palavras "a requerimento do interessado, poderá ser retificado, etc".
A maior ou menor bitola da atribuição das retificações ao registrador imobiliário deve-se em certa medida ao fortemente controverso tema de sua função jurídica: o registrador é um funcionário público para-hierarquizado da Justiça ou é, diversamente, um profissional do direito - i.e., um jurista que atua, sob própria responsabilidade, com o exercício de um saber prudencial?
Da resposta a essa indagação - muito dependente, é verdade, de uma normativa menos movediça, mas ainda mais dependente de uma funda meditação sobre as importantes funções desempenhadas pelo registrador e o relevante papel do sistema registrário para a consecução do bem comum -, da resposta a essa indagação fundamental, repito, muito deverá o futuro de todo o registro predial brasileiro. Aí se engastam relevantes questões, inclusivamente para o tema da retificação: a "justicialização" da prática dos registros comparte o mesmo sentido ideológico de sua "administrativização", e, adivinha-se, a eventual prevalência do formularismo, com prejuízo da dinâmica tabular, também parece ressoar, ao menos em alguma linha, na tomada equivalente de posição sobre a natureza do registro. Para tantas indagações sobre a instituição e a prática registrárias, incluídas algumas questões que permanentemente me assaltam o ânimo - sobretudo a da busca de um caminho confiável para o deslinde casuístico da tensividade entre as exigências do tráfico imobiliário e as da segurança jurídica, conforta-me saber que há um critério bom e bastante para resolver tudo isso: a humilde e persistente e constante procura da Verdade. É que, em todo caso, só a Verdade nos retificará." (a continuação da palestra será publicada no Boletim do IRIB e o texto, revisado pelo autor na Revista de Direito Imobiliário)
Ação Civil Pública no controle judicial das políticas públicas.
O Procurador do Município de São Paulo e Professor Associado do Departamento de Direito Processual da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Dr. Rodolfo de Camargo Mancuso, foi o responsável por uma brilhante e detalhada exposição a respeito do tema do 4º e último painel do I Seminário Internacional de Direito Urbanístico e Registral de São Paulo.
Dr. Rodolfo de Camargo Mancuso: "a vida é mais rica que o direito."
"O tema basicamente é de processo civil porque coloca a ênfase no instrumento de que se trata aí. O tema proposto é a Ação Civil Pública como meio de controle judicial das políticas públicas. É um tema que ainda está em elaboração e pode ser interessante começar um esclarecimento por aí. O que vem a ser a expressão política pública?
Até pouco tempo atrás se entendia, de forma um tanto equivocada, que haveria uma aproximação ou uma assimilação entre o termo política pública e os chamados conceitos vagos ou indeterminados.
Em direito aparecem esses chamados conceitos vagos ou indeterminados por uma razão curiosa. É que, na verdade, a vida é mais rica que o direito. Como o direito é uma ciência que valora condutas e depois expressa essa valoração através de normas, o direito não tem como abarcar, na realidade fática e na experiência da sociedade civil, tudo aquilo que está acontecendo de relevante, então ele faz escolhas. Mas quando ele faz escolhas, ele vai por um processo de abstração, deixando coisas do lado de fora porque não pode normatizar tudo. Embora alguns textos sejam extensos, como o Código Civil, com 1807 artigos, há mais situações civis do que os 1807 artigos. Ou seja, ali também já foi feita uma escolha pelo critério de relevância.
Paralelamente, para que o sistema jurídico possa funcionar, a gente costuma dizer que há uma presunção de plenitude ou de completude do ordenamento jurídico. O que significa isso? Supondo que muitas situações ficam lacunosas por falta de norma, então o direito começaria a sofrer de uma petição de princípio porque ele regularia algumas situações e muitas outras ficariam em aberto, o que daria a impressão de arbitrariedade. Por que algumas situações são reguladas e outras não? Daí a presunção de plenitude da ordem jurídica, isto é, presume-se que a ordem jurídica seja plena.
Mas como compatibilizar a presunção da plenitude da ordem jurídica, de um lado, com essa circunstância de que o direito não tem como alcançar todos os fatos relevantes que vão acontecendo na sociedade?
A forma de conjugar essas duas situações é a seguinte: o próprio direito, de uma maneira muito engenhosa, indica as formas pelas quais essas lacunas podem vir sendo preenchidas na prática, na experiência diária do direito, através das fontes subsidiárias. Ou seja, o direito faz uma triagem daquilo que acontece na sociedade civil, escolhe os temas relevantes, normatiza esses temas relevantes, ou seja, descreve condutas, coloca sanções, mas ele sabe que não pode alcançar tudo. E com relação ao resto que não está normatizado? Ele indica meios de integração ou fontes subsidiárias. Exemplo: costume, princípios gerais, analogia, eqüidade, doutrina, jurisprudência... É um jeito que o direito tem de fechar o seu sistema para poder ganhar um apoio logístico. Assim, grande parte do que é relevante em sociedade está normatizado pelo direito. Em relação àquilo que não está normatizado, o próprio direito indica essas fontes pelas quais essas outras situações vão poder ter uma solução razoável dentro dos casos concretos.
O que esse quadro tem a ver com a história das políticas públicas? A proposta que a República Federativa do Brasil tem, em termos de gerenciamento do bem comum, pode ser resumida da seguinte maneira: nós tivemos até hoje uma democracia do tipo representativo. A Constituição diz que o poder emana do povo e em seu nome é exercido. Mas como o povo não pode estar diretamente presente, elege representantes. Os mandatários dos verdadeiros detentores do poder fazem as escolhas políticas em nome do povo. Eles vão normatizando as situações relevantes que vão encontrando e modificando o que já estava normatizado. Mas nunca esses representantes do povo, que formam essa democracia representativa, vão conseguir realmente identificar todas as situações relevantes que acontecem na sociedade.
Da Constituição de 1988 para cá, está instaurada aqui uma democracia do tipo representativa e participativa. Isso fica evidente a partir da leitura de muitos artigos da Constituição Federal que dizem: "Compete ao Estado, com o auxílio da comunidade...", "Compete ao Estado, com o apoio da coletividade...", e assim por diante. É o reconhecimento do Estado brasileiro de que atualmente não há como se pretender que o Estado dê conta do gerenciamento do bem comum se não houver a colaboração da própria coletividade. O fato dos cidadãos terem eleito vereadores, deputados e senadores, não significa que eles podem deixar o gerenciamento do bem comum por conta dos mandatários porque isso não vai dar certo.
Aliás, o que a gente vai notando na sociedade confirma que as iniciativas que mais dão certo são aquelas que decorrem de parcerias entre o Estado e a comunidade, ou entre órgãos do Estado e órgãos particulares. Este evento aqui hoje é uma prova disso. Nós temos um órgão público, o Ministério Público, e temos um setor importante ligado à parte registrária do país. Quando se consegue fazer coisas com sucesso e de uma maneira mais rápida é sempre através de parceria.
Quando o Constituinte estabelece a maneira pela qual a República Federativa do Brasil deve funcionar, ele não tem condição de descer a muitos detalhes. A Constituição brasileira já é criticada por ser muito analítica. Para que a Constituição não seja ainda mais analítica, o Constituinte, em muitas situações, foi indicando diretrizes, foi fixando princípios, foi colocando normas que na doutrina jurídica são chamadas de normas programáticas. Essas normas programáticas consistem em certas indicações que servem como um rumo para depois aquilo ser detalhado, especificado e concretizado pelo legislador ordinário. Exemplo: o Constituinte entendeu que a tutela de criança e adolescente é algo prioritário e colocou na Constituição que "o Estado zelará prioritariamente pela tutela de criança e adolescente". Não há como descer a detalhes por ser uma Constituição Federal. Mas o legislador ordinário, através do Estatuto da Criança e do Adolescente, que é uma lei ordinária federal, detalha aquilo e especifica, escreve as condutas e coloca as sanções. O mesmo se dá em relação à política que diz respeito à tutela dos idosos ou à proteção dos deficientes físicos, tutela do erário público etc.
A expressão "política pública" está, a meu ver, bastante relacionada com essa dificuldade que referi de início. A ordem normativa, principalmente a ordem constitucional não tem como abranger de maneira absolutamente normatizada todas essas circunstâncias relevantes. São indicados certos fatos que o Constituinte realmente encontrou na sociedade e entende que são importantes. E, a partir daí, o legislador ordinário vai colocando os meios através dos quais, nos casos concretos, aqueles valores e interesses importantes podem vir a ser tutelados."
Dr. Lincoln Bueno Alves: "Creio que estamos todos recompensados".
"É com imensa satisfação que estamos concluindo este I Seminário Internacional de Direito Urbanístico e Registral de São Paulo, com produtiva união de esforços da Escola Paulista da Magistratura, do CAHOURB, órgão de apoio do Ministério Público de São Paulo, e do Instituto de Registro Imobiliário do Brasil.
Agradeço a estes honoráveis parceiros, bem como às digníssimas Promotoras de Justiça, Cláudia Helena Tamiso Fernandes e Claudia Berê, e às secretárias executivas do IRIB, senhoras Clenilse Vanz e Maria de Lourdes Gualano, sem o quê não teríamos tanto êxito na organização e realização de um evento como este.
O IRIB não é órgão político e nem tem interesses particulares, apenas procura fomentar o estudo do direito registral. A nova ordem mundial nos obriga à mudança e ao crescimento profissional, mas sem perder de vista que o interesse público deve sempre prevalecer em nossas atividades.
Cremos que a união de esforços para possibilitar o que aqui hoje se viu apenas engrandeceu as instituições parceiras.
Alegra-nos os resultados deste I Seminário Internacional, para o qual cada um dos profissionais envolvidos deu muito de si. E aquele que neste mundo muito fez o que lhe competia fazer, e que não decepcionou no desempenho da missão para a qual foi escolhido, "morre sereno do dever cumprido" como disse Cruz e Souza.
Creio que estamos todos recompensados.
Obrigado."
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