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PARCELAMENTO DO SOLO É TEMA DE NOVO SEMINÁRIO REALIZADO PELA PARCERIA IRIB/MP DE SÃO PAULO
O auditório do Ministério Público de São Paulo, com capacidade para cerca de duzentas pessoas, foi pequeno para receber os registradores de vários estados, notários e promotores de justiça interessados no seminário que abordou as questões da regularização e fraudes à lei do parcelamento do solo, no último dia 5 de novembro. O IRIB preencheu rapidamente os 120 lugares cedidos aos notários e registradores e, ainda assim, não conseguiu atender todos os colegas que desejavam participar do evento.
A seguir, uma sinopse do seminário destaca as abordagens mais diretamente relacionadas aos aspectos registrários. A edição completa das palestras e debates será editada em livro pelo Ministério Público de São Paulo, dando continuidade ao acordo de cooperação técnica e científica firmado entre o MP e o IRIB. O primeiro seminário, realizado em 5 de março/99, antes da formalização dessa parceria, abordou as principais alterações na lei do parcelamento do solo urbano. Todas as palestras foram publicadas na Revista do Direito Imobiliário.
PROGRAMA
1º Painel
O Desembargador Narciso Orlandi Neto, do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferiu a palestra "Regularização do Parcelamento do Solo", tendo como debatedores o juiz Marcelo Martins Berthe, da Corregedoria Geral da Justiça e o registrador Plinio Antônio Chagas (11º RI/São Paulo, SP).
2º Painel
O Desembargador Antonio Cezar Peluso, do Tribunal de Justiça de São Paulo, proferiu a palestra "Fraudes à Lei de Parcelamento do Solo e à Lei de Incorporação Imobiliária", tendo como debatedores o Procurador de Justiça João Francisco Moreira Viegas e o registrador Plinio Antônio Chagas (11º RI/São Paulo, SP).
Também participou da mesa diretora, como convidado especial, o Dr. Gilberto Valente da Silva, assessor jurídico do IRIB.
O mediador dos trabalhos foi o Promotor de Justiça José Carlos de Freitas, Coordenador do CAOHURB - Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Habitação e Urbanismo
ABERTURA
O Procurador-Geral de Justiça do Estado de São Paulo, Luiz Antônio Guimarães Marrey, abriu o seminário dando as boas-vindas aos presentes e falando da "satisfação de realizar este seminário sobre o ‘Parcelamento do Solo Urbano – Regularização e Fraudes’, em conjunto com o IRIB, representado aqui pelo seu presidente, Dr. Lincoln Bueno Alves, ao qual agradecemos o interesse nesta parceria e colaboração com o Ministério Público."
Marrey afirmou que o problema da observância da lei de loteamento, e do seu descumprimento, é cada vez mais visível na Grande São Paulo e em outras cidades paulistas: "Milhares de pessoas de boa fé, atraídas por empreendedores inescrupulosos adquirem lotes não regulares e acabam se amontoando em situações de moradia extremamente precária, sem nenhuma segurança jurídica, por vezes em áreas em que a construção é proibida, áreas de mananciais etc. Isto acaba gerando um problema social enorme, às vezes irreversível."
O Procurador-Geral lembrou a dificuldade do Estado para regularizar áreas em que chegam a morar duzentas mil pessoas. Nem sempre a regularização é possível mas, segundo Marrey, o fato social gerado tem força superior ao Direito. E quando a remoção é inevitável, as conseqüências sociais também são extremamente graves para milhares de pessoas. "O Estado brasileiro é falho", disse, "é deficiente, é devedor na elaboração e na colocação prática de políticas públicas destinadas à habitação popular e outras políticas sociais que possam fornecer condições de vida minimamente condignas às pessoas. Daí a realização deste evento, com a colaboração do IRIB nesta parceria, que nos ajudará a compreender melhor este problema, a enfrentar de maneira mais direta essas situações, a procurar fórmulas e a verificar situações que possam ser regularizadas dentro da lei. Também é fundamental o estudo da repressão àqueles que violam a lei e cuja impunidade é estimuladora da reprodução dessas situações."
Para o promotor José Carlos de Freitas, presidente da mesa, a realização do seminário permitiu que os operadores do direito que trabalham com a questão desses grandes conflitos – membros do Poder Judiciário e do Ministério Público, advogados, notários e registradores – pudessem compartilhar a "agonia" sentida de forma isolada no dia-a-dia de cada um desses profissionais. "Hoje nós vamos ter a oportunidade de debater essas questões", declarou.
REGULARIZAÇÃO DO PARCELAMENTO DO SOLO
Ex-Juiz Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça, e revisor da versão original das Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça do Estado de São Paulo, com vários livros publicados na área de Registro de Imóveis, o Des. Narciso Orlandi Neto iniciou sua exposição com um alerta:
"Nós vamos tratar de um tema que, eu antecipo, não tem solução. Quem veio ao seminário imaginando levar para casa solução para o problema dos loteamentos irregulares sairá frustrado. O problema não tem solução. O que nós podemos fazer é aliviar os problemas resultantes dos loteamentos irregulares. Mas uma solução que não implique sacrifício para alguém não existe."
Conforme explicou o desembargador, o parcelamento do solo é um instrumento de urbanização que é do interesse público. Ao município interessa o parcelamento do solo para que possa dar moradia às pessoas. Mas geralmente o poder público não se dedica a essa atividade. Como as terras são particulares, o parcelamento do solo acaba sendo um instrumento particular de urbanização.
A atividade do parcelamento do solo é uma atividade empresarial, exigindo a conciliação entre o interesse particular e o interesse público. Ao município, isto é, ao poder público, não interessa coibir o parcelamento do solo, mas sim disciplinar a atividade desenvolvida pelo particular. É por isso que o parcelamento do solo deve ser objeto de aprovação por parte do poder público. E, para aprovar, o poder público precisa de um planejamento de utilização do solo urbano. Esse planejamento deve ser transformado em normas que balizem os critérios de aprovação ou desaprovação do parcelamento do solo.
"O ideal é que haja equilíbrio entre os interesses público e particular. Mas ocorrem, freqüentemente, desvios nesta conciliação entre os dois interesses. Surgem, então, as irregularidades do parcelamento do solo".
Causas das irregularidades
Entre as causas das irregularidades no parcelamento do solo, o Desembargador do Tribunal de Justiça paulista percebe, em primeiro lugar, uma confusão entre o interesse público e o interesse particular:
"É muito comum, no município, o legislador legislar no interesse privado. Confunde-se o interesse daquele que se dedica à atividade empresarial com o interesse público, isto é, o interesse do município no uso e ocupação regulares do solo."
Essas irregularidades podem ser causadas também pela necessidade:
"A ocupação acelerada da área urbana do município sem que o município tenha tempo de se organizar, se dotar de normas é outra causa da ocupação irregular. Nenhum município tem recursos para destinar ao controle e ocupação do solo urbano. A falta de legislação é uma constante nos municípios brasileiros. Ou por falta de interesse ou por falta de conscientização, geralmente os municípios não se dotam de lei eficiente para disciplinar o uso e ocupação do solo. E, se há legislação, faltam técnicos eficientes para aplicação dessa lei."
O desembargador aponta o nó do problema, "por paradoxal que pareça": as leis muito rigorosas.
"A legislação municipal do uso e da ocupação do solo, de tão rigorosa, acaba incentivando a proliferação de loteamentos irregulares", critica. "Existe necessidade de moradia. A legislação não permite a atividade empresarial particular. Então, o proprietário interessado nessa atividade econômica, acaba partindo para o parcelamento à margem da legislação municipal."
Ou seja, não basta ao município ter uma legislação que discipline a ocupação do solo, que seja ideal ou que seja ditada apenas por urbanistas:
"O município pode ter uma legislação perfeita e, no entanto, ser alvo de loteamentos irregulares. Isso ocorrerá sempre as normas legais não se conciliarem com o interesse econômico que está por trás da atividade particular e empresarial do parcelamento do solo."
O problema da falta de critérios
Segundo o desembargador Narciso Orlandi Neto o ideal seria que todos os municípios tivessem pelo menos a lei de uso e ocupação do solo com os critérios que disciplinariam a ocupação do solo:
"É utopia imaginarmos que o município, sem legislação, examine um projeto de parcelamento do solo, de loteamento ou desmembramento com critérios. O critério será puramente subjetivo ou nessa aprovação haverá uma confusão entre o interesse público e o interesse particular. É utopia imaginar que haja no município sem legislação técnicos independentes o suficiente para dar àquele projeto uma avaliação realmente técnica. E mais, o município que não tem legislação, evidentemente não tem planejamento."
E sem planejamento de uso e ocupação de solo "é o caos".
"A ocupação do solo será fatalmente desordenada. E o que se observa, muitas vezes, é uma conivência tácita entre empresário e poder público. Ao município interessa o imediatismo condenável da possibilidade de arrecadação de IPTU. A ocupação trará mais arrecadação de IPTU. Mas atrás da ocupação haverá problemas e o próprio município sofrerá as conseqüências."
O pior de tudo é que esses problemas fazem soar um alarme, que sempre vem depois do problema instalado:
"Não há alarme quando o parcelamento do solo está em fase de implantação. O poder público só é chamado quando, infelizmente, não há mais solução. Essas irregularidades surgem de uma forma muda, sem chamar a atenção de ninguém."
O alarme soa apenas quando o adquirente prejudicado reclama de que o loteamento não foi regularmente executado:
"Se o loteador, mesmo num parcelamento irregular, atende aos requisitos mínimos de ocupação do solo, isto é, se o adquirente do lote tem condições de moradia, ele não reclama. Ainda que o problema da propriedade não seja resolvido, ainda que os requisitos urbanísticos do parcelamento do solo não tenham sido atendidos, ainda que o parcelamento tenha se instalado numa área de aterro sanitário, por exemplo, o adquirente não reclama."
"Resumindo, o ideal seria que todos os municípios tivessem leis adequadas, que os administradores municipais tivessem consciência do problema e, sobretudo, que houvesse fiscalização para fazer soar o alarme antes da instalação do problema."
Regularização
O palestrante chamou a atenção para o problema dos entendimentos absolutos na regularização do parcelamento do solo:
"Nos arts. 3º e 4º da Lei 6.766 temos requisitos fundamentais do parcelamento do solo. No art. 3º, o legislador trata do solo que não pode ser ocupado. São os requisitos urbanísticos do parcelamento do solo. O § 5º do art. 40, com a recente alteração da Lei 6.766, vedou expressamente qualquer regularização que contrarie os arts. 3º e 4º. Isto é, sempre que desatendidos os requisitos desses artigos não há regularização possível do parcelamento do solo. O entendimento é absoluto: não há possibilidade de regularização. Essa proibição já existia implícita no caput do art. 40 mas agora o legislador foi mais expresso e previu essa impossibilidade de regularização no § 5º do art. 40."
Embora a regularização do parcelamento do solo com infração aos arts. 3º e 4º da Lei 6766 seja proibida por lei, o problema existe. Existe o parcelamento que não observa o disposto nesses artigos:
"A única maneira de se regularizar o parcelamento do solo que não observou os requisitos urbanísticos do art. 4º é contra a lei. A única maneira de se regularizar esse loteamento é com o sacrifício das exigências urbanísticas do município, do estado e da União. Vamos ter certamente esquecidas aquelas exigências da lei federal, da lei estadual e da lei municipal. E não há outra forma."
"A subsistência desses parcelamentos que não podem ser regularizados porque não foram observados os requisitos do art. 3º e do art. 4º da Lei 6766 é inegável, é uma realidade. A sociedade se acomoda. O parcelamento fica. É irregular e fica. Não tem solução. O que a gente pode buscar é solução para o problema individual de cada um dos adquirentes. Mas o problema social não tem solução."
"A absorção da violação dos índices urbanísticos do art. 4º é possível. O que o município e o estado têm que fazer é procurar minorar as conseqüências dessa violação. Por exemplo, o parcelamento do solo na região de proteção aos mananciais é proibido expressamente. Em hipótese nenhuma é possível a regularização. E alguém tira esses parcelamentos? Não, eles continuam, a sociedade se acomoda. Paciência, o manancial ficou poluído. Com o tempo vamos tentar resolver, individualmente, o problema de cada um dos adquirentes. Essa é a idéia da sociedade. Não há responsabilidade dos poderes executivo, legislativo, judiciário. Ninguém mais assume essa responsabilidade, simplesmente o problema é absorvido pela sociedade."
"Nesses casos de violação dos índices urbanísticos mínimos exigidos pela lei federal e pela lei municipal, o município pode transigir. Se o loteador tiver remanescente na área loteada, o município pode exigir que esse remanescente seja destinado como área pública para diminuir o impacto daquele parcelamento irregular. Eventualmente a legislação do município pode exigir que o loteador destine áreas públicas em outras regiões da cidade em que haja necessidade e disponibilidade, até como forma de punir o empresário inescrupuloso. Outra alternativa é a desapropriação, mas essa é cara por isso não é solução."
Em relação ao art. 3º da Lei 6.766, a lei proíbe a regularização pelo problema de habitabilidade:
"A lei considera inabitável esse solo. Só o caput do art. 3º admitiria alguma contemporização, isto é, o parcelamento para fins urbanos localizado fora daquelas áreas em que a lei permite o parcelamento do solo para fins urbanos. O município pode absorver esse problema, certamente com sacrifício, porque terá que destinar infra-estrutura se admitiu o parcelamento do solo fora das áreas em que é possível o parcelamento do solo."
"Então, em relação aos arts. 3º e 4º, mesmo que o poder público queira a regularização do parcelamento do solo, é impossível. Se tivermos a irregularidade naqueles requisitos fundamentais de parcelamento do solo, que dizem respeito ao próprio solo ou às exigências urbanísticas do parcelamento do solo, não há possibilidade de regularização. Mas eu repito: não obstante, raramente se vê a desocupação de um parcelamento ou de uma área ocupada por transgressão dos arts. 3º e 4º. Dificilmente se vê uma atitude, mesmo porque não há como tirar os moradores de uma área mal ocupada e transferi-los para outra área. Não existe outra área disponível, o poder público não tem condições de acomodar essas pessoas. Então, a sociedade convive com o problema e não há solução."
Problemas ligados à propriedade
O expositor identificou também três grupos de problemas ligados à propriedade:
1. Parcelamento do solo promovido pelo não proprietário:
"O não proprietário promove o parcelamento do solo. Se ele não é o proprietário, evidentemente não pode aprovar o parcelamento do solo na prefeitura. Se ele não pode aprovar, vai parcelar sem aprovação. O loteamento será clandestino e quase sempre descumprindo o art. 4º da Lei 6766, isto é, sem observância dos requisitos urbanísticos."
"Se esse parcelamento for executado, vai demorar mais tempo para aparecer a reclamação. Se não for executado, a grita será imediata, soa o alarme e desencadeia-se todo aquele processo visando à regularização pelo menos do problema de particulares."
"Quanto à regularização desses parcelamentos do solo promovidos pelo não proprietário, em relação aos requisitos urbanísticos fundamentais, não há possibilidade de regularização. Em relação ao registro, a possibilidade de regularização também é mínima: se o loteador não é proprietário, não tem como outorgar a propriedade aos adquirentes. O problema particular de cada compromissário comprador vai ser resolvido com usucapião especial urbano da Constituição que, aliás, veio para isso."
"Se o loteador não executar as obras, a conseqüência é o município assumir a execução da infra-estrutura do loteamento com prejuízo total. A única possibilidade do município conseguir algum ressarcimento é detectar o problema ainda durante o pagamento dos compromissários compradores para conseguir reunir um numerário que possa ser aplicado na execução das obras de infra-estrutura."
Além do parcelamento feito pelo não proprietário, existe a hipótese do parcelamento feito pelo proprietário que utiliza um testa-de-ferro.
"O proprietário de uma gleba que seja impedido de destiná-la ao parcelamento para fins urbanos (moradia) por causa do rigor da lei de zoneamento ou porque aquela gleba contraria o art. 3º da Lei 6766, ou seja, não pode receber o parcelamento do solo para fins urbanos, utiliza um testa-de-ferro. O testa-de-ferro promove o parcelamento e a cada lote que vende entrega uma parte para o proprietário. Houve invasão mas não há reclamação, não há nenhuma ação de reintegração de posse, muito menos reivindicatória, porque o proprietário participa dessa invasão através do testa-de-ferro. São características dessa ocupação a venda e ocupação rápidas, financiamento dos lotes e do material de construção. O compromissário comprador imediatamente constrói. Quando o poder público percebe, a irregularidade está instalada, já se criou a questão social e não há mais como eliminar o problema. O poder público apenas socorre, tentando resolver o problema dos adquirentes e instalando rede de água, luz elétrica, rede de esgoto e asfaltando as ruas. Ou seja, os problemas urbanísticos serão assimilados pelo município e em seu prejuízo: sem solução."
2. Direito de propriedade.
"Em relação à propriedade também não tem como regularizar. Se o proprietário foi vítima da invasão não vai outorgar a escritura para ninguém. A solução dos problemas particulares estará no usucapião especial urbano."
3. Retificação.
"Às vezes o loteamento pode ser regularizado, ainda que com prejuízo das exigências urbanísticas. Há interesse do município, há interesse do próprio loteador ou há interesse dos adquirentes dos lotes em regularizar o loteamento, mas eles enfrentam dificuldades no Registro de Imóveis porque a gleba está mal descrita. Nada impede que no próprio processo de regularização do parcelamento do solo seja feita a retificação. As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo autorizam que o juiz determine o levantamento pericial, portanto não vejo obstáculo a que a retificação seja feita no mesmo processo de regularização. A retificação seria averbada antes da matrícula, seria aberta a matrícula com a nova descrição da gleba e seria feito o registro do loteamento e do parcelamento do solo."
"Vale lembrar que para a retificação não se exige forma especial, basta que sejam satisfeitas as exigências do § 2º do art. 213 da Lei de Registros Públicos. O procedimento fica a critério do juiz, bastando que sejam citados os confrontantes e que haja intervenção do Ministério Público."
Execução
A execução do parcelamento do solo não chega a ser um problema insolúvel, segundo o palestrante. Para a execução das obras de infra-estrutura sempre existe uma solução. Porém, o município deve ter a cautela de, na aprovação do parcelamento do solo, exigir instrumentos de garantia que sejam realmente eficazes e rápidos.
Mas em relação ao cronograma de obras, o desembargador Narciso Orlandi Neto entende que o município não pode prorrogar os quatro anos de prazo estabelecidos na Lei 6.766 porque os credores desse compromisso do loteador são os adquirentes.
"A regularização é sempre possível quando a irregularidade está na execução das obras de infra-estrutura. E quando o loteador não pode executar essas obras, a responsabilidade é do município. Para isso ele vai precisar de recursos. E aí o problema é sério porque os municípios não têm a cautela de exigir um instrumento de garantia que tenha realmente eficácia. Os municípios exigem a hipoteca sobre lotes do próprio loteamento. Em primeiro lugar, se o loteamento não for executado esses lotes não valerão absolutamente nada. Executar essa hipoteca é como executar nada porque serão lotes apenas no papel. Em segundo lugar, é bom lembrar que o instrumento de garantia agora, com a modificação da Lei 6766, tem que ser apresentado quando da submissão do projeto de parcelamento do solo à aprovação da prefeitura. Não é possível oferecer lotes que não existem. Então, deve haver imaginação nessa garantia. Se a hipoteca satisfizer, que seja uma hipoteca sobre outros bens, que não os lotes daquele parcelamento de solo. Deve haver uma certa liquidez da propriedade para que a hipoteca valha alguma coisa, para que ela seja eficazmente exeqüível.
"E mesmo a hipoteca sobre imóveis que ofereçam liqüidez não é satisfatória por causa da demora da execução. A hipoteca está longe de ser um direito real de garantia com rapidez na execução. Talvez haja possibilidade do município exigir outros instrumentos de garantia, eu menciono até a anticrese. Na anticrese há possibilidade de uma arrecadação simultânea, independentemente da execução. O loteador deve entregar a posse do imóvel ao credor para que este tenha recursos para executar as obras de infra-estrutura em caso de inadimplência. A propriedade fiduciária também seria razoável, não em lotes do próprio loteamento mas de outros bens imóveis que a prefeitura tivesse à disponibilidade para fazer recursos."
A solução é prevenir.
"Eu não apresentei nenhuma solução porque o problema não tem solução", constatou o expositor. "A solução é prevenir. A única maneira de evitarmos loteamentos irregulares é a prevenção. Se toda a sociedade se conscientizasse de que os loteamentos irregulares prejudicam a própria sociedade, haveria possibilidade de, pela fiscalização, evitar que eles surgissem. Depois de implantados os loteamentos irregulares, não há solução que não exija o sacrifício de alguma parte envolvida, geralmente o meio-ambiente."
FRAUDES À LEI DE PARCELAMENTO DO SOLO E À LEI DE INCORPORAÇÃO IMOBILIÁRIA
O Des. Antonio Cezar Peluso, do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, é Professor de Processo Civil da Faculdade de Direito da PUC-SP e Diretor da Escola Paulista da Magistratura. Sua exposição trouxe importantes esclarecimentos e fundamentos do direito civil aplicado à questão das fraudes à lei do parcelamento do solo.
Introdução
Primeiramente, o palestrante procurou esclarecer alguns conceitos básicos para o entendimento do tema. Explicou que são dois os tipos de violação de uma lei cogente, sendo lei cogente aquela que não pode ser alterada pela vontade dos particulares. Distingue-se, portanto, da lei dispositiva, aquela que permite aos particulares o exercício da chamada autonomia privada.
"A incidência das normas cogentes é necessária e não pode ser afastada por vontade dos particulares. Essa norma cogente pode ser objeto de uma violação direta ou indireta. As normas cogentes podem ser proibitivas ou impositivas. Não são necessariamente só as proibitivas que são cogentes. Podemos ter uma norma cogente que impõe um determinado comportamento, um determinado resultado: ela é também dispositiva. E prevê uma sanção baseada sobretudo na consideração do resultado prático da sua incidência e da sua aplicação."
"A fraude à lei dá-se, em primeiro lugar, como um sentido de frustração. A fraude à lei não tem nada a ver com questões subjetivas ou indagação de ânimo dos agentes. Não importa o que os agentes pensaram, se quiseram ou não quiseram agir maliciosamente, se desejaram ou não contornar a lei cogente. Importa é que haja ou não a frustração objetiva do resultado prático desejado pela lei cogente. Há, portanto, uma fração, um corte na incidência da norma, por isso que se diz ‘infração da regra de sanção’".
Segundo o desembargador Peluso a confusão vem exatamente do intérprete tentar indagar das condições de ânimo dos agentes.
"O que importa é o fato objetivo: se há frustração do resultado prático pretendido pela norma, independentemente da intenção dos agentes, nós temos um caso de fraude à lei. Há aqui o emprego de uma categoria jurídica permitida por uma regra jurídica não cogente mas que é usada para evitar a aplicação da lei cogente proibitiva ou impositiva na suposição, ou na esperança, de que o juiz erre e mande aplicar a norma que não incide, aquela que foi usada formalmente pelo agente."
Para o palestrante, essa fraude pode ser distinguida examinando-se também outros atos que são muito semelhantes e não apenas a dissimulação.
"Por exemplo, no ato aparente o agente não quer nada. Ele faz uma disposição tão séria que não entra no mundo jurídico. Na simulação, o elemento subjetivo é importante porque não se quer o que aparece. O que aparece nunca é nada ou o que aparece quer esconder alguma coisa que é, na verdade, desejada. Então é o caso da dissimulação."
"Na fraude quer-se o que aparece porque o resultado é o que a lei fraudada impede ou se afasta o que era de impor. Ou seja, ‘eu não posso ir por aqui, então eu vou por ali’. Há, neste caso, um ato infringente, cuja categoria jurídica normalmente corresponde à categoria das nulidades."
"Diante disso, o que temos no caso? Temos exatamente a figura da fraude e não a figura da dissimulação. Utiliza-se a categoria prevista no ordenamento jurídico por regras não cogentes, que é o condomínio do Código Civil, para criar um resultado prático que ofende o resultado prático das normas cogentes da lei do parcelamento do solo, que não são aplicadas. A questão básica aí está em qualificar o comportamento desse loteador como fraudulento, independentemente da sua disposição de ânimo, do seu elemento subjetivo. Na verdade, não há dissimulação nenhuma. Pode até haver um concurso de vontade, mas que é absolutamente irrelevante diante da objetividade da situação. Portanto, essa é uma fraude à Lei 6766 e não ao art. 618 do Código Civil. A fraude não é ao condomínio tradicional, a fraude é à lei do parcelamento do solo.
P – Sendo fraude, pode-se responsabilizar somente o proprietário, postulando regularização do loteamento disfarçado que implantou, ou os condôminos devem compor o pólo passivo?
R – "Se se trata simplesmente de responsabilização no sentido de reclamar pelos danos eventualmente causados, tentaria regularizá-lo com a presença apenas do loteador. Se for o caso de responsabilizar no sentido de exigir as obrigações do loteador, ou seja, daquele que teme a regularização do loteamento disfarçado que implantou, acho que aí, dependendo da situação, a presença dos condôminos é necessária. Isso porque, dependendo dos atos que resultem da regularização do loteamento, a esfera jurídico-patrimonial dos adquirentes pode ser atingida."
Justificando sua resposta, o palestrante acrescentou:
"A legitimação passiva é aquela que se explica pela necessidade de quem vai sofrer os efeitos jurídicos diretos da sentença. O seu patrimônio jurídico tem que ser citado, portanto convidado a participar de um processo que vai preparar a sentença que pode atingi-lo. Ou seja, a legislação passiva parte exatamente do fato de que a pessoa legitimada é potencialmente atingida, ou pode ser atingida pela sentença a ser proferida num processo do qual ele deve ser convidado a participar para co-colaborar na preparação dessa sentença."
"Se se tratar de obras de regularização ou de atos práticos, que só podem trazer benefícios teóricos aos adquirentes, eventualmente até se poderia pensar numa situação em que se pudesse dispensar sua citação. Mas os adquirentes de lotes serão beneficiados ou não com a regularização. Se for negada a regularização eles podem ser prejudicados, caso em que há também um dano potencial que justifica a intervenção dos condôminos. Quando as construções são atingidas pela sentença que determina demolições, por exemplo, a presença desses condôminos no pólo passivo é indispensável."
"Eu considero prejudicadas as questões do ponto de vista da dissimulação, acho que o caso não é de dissimulação. O instituto do condomínio tradicional foi usado para fraudar a incidência e a aplicação da lei de parcelamento do solo."
P – Pode-se conceber uma fraude à lei 4591 e 6766, fazendo prevalecer a incidência desta e, portanto, exigir do empreendedor a realização de obras de infra-estrutura, doação de áreas ao município e adaptação dos contratos nos preceitos da lei de parcelamento?
R – "Aqui eu faria uma distinção. Dependendo da situação fática, isto é, da realidade, porque o que interessa é o resultado prático da atividade, eu posso ter: primeiro, uma infração direta da Lei 4591. Ou, se a incorporação for usada para criar uma situação prática equivalente à de um parcelamento que não corresponde à categoria jurídica aparente usada formalmente, posso ter um caso de fraude à lei. Neste caso, eu teria as conseqüências sugeridas na indagação. Eu tenho, portanto, uma fraude à lei e posso exigir do empreendedor a regularização de obras, destinação de áreas etc., tudo aquilo que é decorrência da incidência da lei de parcelamento de solo. Portanto, a situação dada é que vai definir se há uma violação direta da lei ou se há, com o uso de um instituto desta lei, a violação indireta, portanto por meio de fraude, da lei de parcelamento do solo."
P – O proprietário, ou construtor, edifica prédio de apartamentos mas não registra a incorporação no registro predial. Na matrícula só consta um terreno, ainda em nome do proprietário originário, que não recebeu benfeitorias. Como fica a responsabilidade da construtora, ou proprietário, decorrente dos danos que a edificação causar aos adquirentes: rachaduras, material de segunda, desabamentos, sobrecarga nos sistemas de abastecimento de água e esgoto... O imóvel pode ser penhorado por um terceiro, credor da propriedade imobiliária?
R – "Aqui o caso é, de certo modo, atípico: constrói-se um prédio de apartamentos teoricamente destinado a um condomínio que, na verdade, não existe. O que temos é um terreno com uma construção e a matrícula constaria em nome do proprietário. O fato de não ter sido averbada a construção desse edifício ou o fato de não ter havido uma incorporação regular me parece irrelevante. Temos uma acessão que ainda que sem registro supõe-se – presunção legal – que é de propriedade daquele em cujo nome consta a matrícula. Temos um prédio que pertence ao proprietário, pedindo que ele seja usado num condomínio horizontal, pura e simplesmente, sem averbação. A falta de averbação não implica em nenhuma descaracterização da propriedade sob esta função, ela cumpre bem a finalidade de assegurar a disponibilidade dessa mesma construção. Enquanto isso não for feito não se pode alienar a construção."
P – Como fica a responsabilidade da construtora decorrente dos danos que a edificação causa aos adquirentes?
R – "É uma responsabilidade negocial do proprietário perante aqueles com os quais ele travou relações jurídicas de nível puramente pessoal. Não há nada aí de direito real envolvido. O que provavelmente têm esses adquirentes são contratos cujos objetos são direitos pessoais e que geram, portanto, direitos de indenização, exigência e verificação, próprios da natureza jurídica dos direitos irradiados desse contrato. E, em relação a terceiros, existe a responsabilidade objetiva decorrente da sobrecarga do sistema de abastecimento, queda de objetos etc."
P – O imóvel pode ser penhorado por um terceiro, credor da propriedade imobiliária?
R – "Sem dúvida nenhuma. Se a área consta como propriedade do titular da matrícula, ela pode ser objeto de penhora. Bem, aí haverá uma série de outros problemas. Mas do ponto de vista estritamente objetivo que a questão suscita não há dúvida nenhuma de que esse imóvel pode ser objeto de uma penhora."
A QUESTÃO REGISTRÁRIA
O registrador Plinio Antônio Chagas confirmou que o problema da fração ideal mascarando o parcelamento de fato realmente tem acontecido com freqüência no âmbito registrário:
"A Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, em 1989, ao editar o Provimento 58 das Normas de Serviço, acresceu um item dirigido especialmente aos registradores, alertando para a necessária cautela nos registros em que se patenteava essa fraude. Dessa forma, os registradores têm impedido o ingresso de escrituras, de títulos de transferência que especificam fração ideal muitas vezes expressas em metros quadrados percentuais etc, deixando bastante claro que se trata de parcelamento."
O registrador apresentou, também, uma sugestão ao Ministério Público:
"A comunicação que o MP vem fazendo às serventias imobiliárias a respeito da implantação de loteamentos irregulares tem permitido que se informe ao adquirente, através da certidão, que aquele imóvel tem esse tipo de irregularidade. Talvez o Ministério Público pudesse tentar também um procedimento administrativo no mesmo sentido porque os Registros Públicos podem auxiliar no combate a esse tipo de infração. Como disse o desembargador Peluso, a fraude não indaga a respeito da intenção do agente mas ela frustra o escopo legal. Dessa forma, eu acho que nós, registradores, não podemos deixar isto passar ao largo do nosso ofício. As Normas de Serviço da Corregedoria Geral da Justiça são bastante claras e a própria lei concede ao registrador a prerrogativa de interferir nessa questão através da suscitação de dúvida."
"Outra questão levantada aqui foi a do parcelador de condomínio horizontal, melhor dizendo, a inexistência do registro de incorporação. Eu trabalho há trinta anos com Registro de Imóveis e não me recordo de nenhum adquirente de unidade autônoma de fração ideal ter nos procurado para compulsar os processos de incorporação com o objetivo de instruir a aquisição dessa fração ideal. Não obstante, o registrador exerce esse papel de fiscal porque ao qualificar o registro da incorporação, ele praticamente se sub-roga no papel de habilitar aquele empreendimento à comercialização. De tal maneira que, nos casos em que o incorporador comercializa as frações ideais sem o prévio registro da incorporação, a própria lei estabelece que se trata de crime contra a economia popular. O Ministério Público tem promovido a indisponibilidade dos bens de pessoas envolvidas nesse tipo de infração em diversas ações cíveis e nós estamos fazendo o registro da indisponibilidade. Está havendo uma sincronia entre as atividades do Ministério Público e as atividades dos registradores, o que é muito importante que continue a existir."
P – No caso das frações ideais de fraude à lei de parcelamento, pode o Poder Judiciário determinar aos registradores imobiliários a impugnação das escrituras através de instrumentos particulares, face aos dados objetivos e caracterizadores do título?
R – O juiz Marcelo Martins Berthe esclareceu que "o Conselho Superior da Magistratura tem admitido os registros das frações ideais, mas limita isso em alguns aspectos. Se no título vier qualquer indício que demonstre que houve um parcelamento irregular, o registrador não deve registrar. Mas se não houver nenhum indício, sendo o único indício a reiteração, então o registrador faz o registro mas deve comunicar o Ministério Público."
A seguir, o juiz Berthe chamou o ex-Juiz Auxiliar da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, Hélio Lobo Junior, para falar de um parecer de sua auoria, a respeito da responsabilização dos tabeliães na lavratura da escritura, cujo entendimento prevalece como normativa da CGJ até hoje.
O juiz Hélio Lobo Junior, hoje no 1º Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, relatou:
"Esse parecer chama a atenção, em primeiro lugar, sobre a responsabilidade do tabelião. O tabelião é o primeiro a tomar contato com esse negócio jurídico e, normalmente, em especial nas comarcas do Interior, é o que mais tem condições de verificar no local a ocorrência de uma transformação física fática quanto a esse parcelamento. A lei do parcelamento do solo, ao contrário da lei 4591, incide mesmo que não exista o registro. Já está havendo a incidência das normas penais dos arts. 38, 39 e 46 da Lei 6766, independentemente do registro. E essa configuração fática já é um parcelamento de fato e um elemento que, se o tabelião tiver acesso, deve obstar a própria lavratura da escritura, no meu modo de entender. O dado objetivo mais interessante desse parecer é exatamente o número de frações ideais. Em São Paulo é muito comum a fração ideal "tal" com lotes, áreas de lazer etc. Então, é evidente que há uma infringência clara à lei 6766 nessas hipóteses. Mas nem sempre esses dados são facilmente perceptíveis. Então, teríamos que nos valer do número de frações ideais. Os dados objetivos fáticos deveriam ser cuidados, incluindo a verificação do local, para que o tabelião não tenha responsabilidade, até penal, no caso de incidência da lei 6766."
Novo convênio entre o MP e o IRIB
Encerrando o seminário sobre regularização e fraudes à lei do parcelamento do solo, o presidente Lincoln Bueno Alves manifestou sua satisfação em comunicar que o primeiro convênio de cooperação técnica entre os registradores e o Ministério Público de São Paulo, assinado em 12/4/99, já tem seguidores.
"O Colégio Registral do Rio Grande do Sul, o IRIB e a Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul acabam de celebrar novo convênio de cooperação técnica e científica destinado a promover a interação das atividades dos registradores de imóveis com as funções do Ministério Público, na área de habitação e urbanismo.
A convergência entre as atividades de registradores de imóveis e promotores de justiça, ambos atuando na tutela e garantia dos interesses públicos, na prevenção de conflitos e na promoção da segurança jurídica fica mais uma vez comprovada pela enorme receptividade aos temas das fraudes e regularização do parcelamento do solo, brilhantemente expostos neste seminário.
Sabemos que o problema dos loteamentos irregulares só pode ser atacado com uma atuação conjunta e decisiva do Ministério Público, da Corregedoria Geral da Justiça, dos registradores de imóveis e das prefeituras.
Essa parceria é imprescindível não só para a regularização de loteamentos, onde já reside parcela significativa da população de mais baixa renda, como também para evitar a proliferação das irregularidades e fraudes à lei do parcelamento do solo. Este auditório lotado mostra o interesse de registradores e promotores de justiça pela solução desses graves problemas de ordem urbanística e ambiental. O primeiro passo e também o mais importante está dado", finalizou o presidente do IRIB.
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