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O REGISTRO CIVIL EM REVISTA


Aproveitamos o aniversário da Lei da Gratuidade para reproduzir os debates havidos na última semana na grande imprensa. O cerne da questão foi a gratuidade imposta aos registros civis brasileiros. As notícias, como sempre, são um primor em termos de mistificação, desinformação, tendenciosidade, manipulação ideológica e miopia política de jornalistas e editores. Mas, lamentavelmente, o rol dos mal intencionados não se esgota nas trincheiras do quarto poder. Desce às antecâmaras do governo, com declarações compreensivelmente equivocadas do Ministro da Justiça Renan Calheiros.
Mas, afinal, o que está em jogo? Alguém parece ter arranhado a razão: é mais fácil prover o cidadão de uma declaração formal de sua existência ou de seu perecimento do que implementar políticas sociais tendentes a integrar essa massa de deserdados e excluídos à vida social produtiva.

"Cidadania" é expressão que folgadamente calha no discurso liberal, social ou qualquer outro que se aninhe no amplo arco ideológico que se formou (ou se impôs) à sociedade brasileira.  Nestas circunstâncias, significa pouca coisa, mas pretende-se que explique tudo. Vivemos, portanto, um simulacro de democracia social. Política de aparências. Os direitos e garantias são meras expressões formais, descoladas da vida real, e formam o poderoso recurso propagandístico de que se serve esse governo ditatorial que infelicita a nação.
 

 



MINISTRO DA JUSTIÇA ENTRA NA GUERRA. CONTRA O REGISTRO CIVIL

Segundo o Correio Braziliense, o ministro da Justiça, Renan Calheiros, "vai iniciar uma batalha contra os cartórios de registro civil". O ministro já propôs ao presidente Fernando Henrique Cardoso a edição de uma medida provisória que transfira para as prefeituras dos municípios a responsabilidade pela emissão dos registros de nascimento e óbito. Confira os trechos mais significativos da reportagem:

"Desde o início deste ano, Calheiros comentava que o Ministério estava estudando uma forma de fazer com que os cartórios cumprissem a legislação. A lei existe desde dezembro de 1997 e foi sancionada em 10 de março do ano passado. Os cartórios simplesmente a ignoraram, e, apoiados por decisões de tribunais de Justiça em alguns estados, ganharam diversas liminares em instâncias locais para continuar cobrando pelas certidões. No Distrito Federal, elas custam em média R$ 10,00. 'O governo vai acabar com um privilégio dos cartórios para que finalmente a lei seja cumprida', disse Calheiros.
A idéia de passar aos governos locais a responsabilidade por esses registros não é nova. 'Se persistir o descumprimento da lei, o governo poderá até retornar ao passado, quando, na época do Império, o registro era feito pelas Igrejas', informou a assessoria da Secretaria de Direitos Humanos do Ministério da Justiça, depois da reportagem do Correio na quarta-feira da semana passada, quando a lei completou um ano.
'No exterior, esse procedimento é realizado por nossos consulados', continua o texto da secretaria. 'Portanto, não seria absurdo se pensar em atribuir essa função a uma repartição pública, maternidades, prefeituras ou assemelhados.'"

" (...) Uma pesquisa do Ministério da Saúde, ainda em fase de conclusão, revela que 43% das crianças brasileiras que morrem antes de completar um ano de idade são enterradas sem qualquer registro. A situação mais grave de subregistro de mortalidade infantil está no Nordeste. No Maranhão, o índice é de 89%; no Piauí, 87%.
A legião de brasileiros que não existem oficialmente coloca em xeque as políticas sociais do Executivo, o Legislativo, que elaborou uma lei até agora inócua, e a Justiça, que permite o descumprimento."

"'Os cartórios acabam podendo mais do que o Judiciário e o Congresso', resumiu o deputado Geraldo Magela (PT-DF), ao entregar uma representação, preparada pela bancada do PT na Câmara, exigindo que o Ministério Público obrigasse os cartórios a cumprir a lei.
'Essa irregularidade mostra a força do poder econômico, a conivência por parte do Judiciário, que muitas vezes acata liminares favoráveis aos cartórios, e pode levar a desobediência civil às leis', continuou, evidenciando o impasse criado a partir do descumprimento da lei 9.534, sancionada em março de 1998."

"O desembargador Antônio Amaral, que atuou durante anos como juiz da Vara da Infância de Florianópolis, também defende a municipalização do registro civil. Essa seria a saída, na sua avaliação, para resolver o impasse criado pela situação peculiar do Brasil, onde o registro é feito pela iniciativa privada e os empregados dos cartórios, apesar de serem considerados funcionários públicos, não ganham qualquer dinheiro do estado."

"'Em nenhum país da América Latina a situação se assemelha à do Brasil', avaliou o oficial de Comunicação do Unicef, Manoel Manrique, destacando que, no resto do continente, a emissão das certidões é feita pelo estado." (Correio Braziliense-19/3)
 

 

 



UM CASO CONCRETO

A triste situação dos brasileiros "sem registro", na vida e na morte, e sem cidadania, é enfatizada pelo Correio Brasilienze através de um caso real descrito nos detalhes de sua miserabilidade e desamparo: apesar de todas as tentativas para obter o registro, inclusive depois da lei da gratuidade, a família de nove filhos continua não existindo aos olhos da lei.
Veja agora a chamada "análise da notícia" (resumida acima), que o jornal faz sob o título de "Brasileiros inexistentes":
"O Brasil não se conhece. Mais de 30% das crianças que nascem no país deixam de ser registradas no primeiro ano de vida. Por ignorância ou por falta de condições dos pais. E não há estimativas precisas de quantos brasileiros vivem hoje sem certidão de nascimento. Quando morrem, também ficam sem registro por serem enterrados sem certidões de óbitos e em cemitérios desconhecidos oficialmente.

Parece insólito. Em 1999, Judiciário, Executivo e Legislativo, juntos, não conseguirem assegurar à população do país o direito universal básico de existir. Até agora, leis adaptaram o atendimento nos serviços públicos de saúde e educação à falta das certidões de nascimento. Ao invés de providenciar o documento, definiu-se que as escolas, hospitais e postos de saúde não podem exigi-lo.

E o registro gratuito de nascimentos e mortes - ignorado por cartórios, pelo governo e pela própria população - é lei, na verdade, desde 1988. A Constituição Federal determina, há mais de dez anos, que todos os instrumentos necessários para exercer a cidadania devem ser concedidos de graça.

O número de crianças que efetivamente existem evidencia as desigualdades regionais e sociais. No Norte do país, 52% das crianças que morrem antes de completar um ano desaparecem sem qualquer registro nos cartórios. No Nordeste, o índice é de 66%. Na região Sudeste, cai para 6%. Centro-Oeste e Sul têm taxas, respectivamente, de 23% e 13%." (CG) (Correio Braziliense-19/3)
 

 



A GRATUIDADE VISTA DE FORA


O primeiro aniversário da Lei 9534/97, que impôs ao registrador civil o ônus pela "concessão governamental"  de registros gratuitos de nascimento e óbito a toda a população brasileira, suscitou uma série de reportagens do Correio Braziliense, no mesmo estilo da matéria acima, sempre atacando o "não cumprimento" da lei em Brasília (na verdade, os Registros Civis do DF têm o respaldo de liminar obtida na Justiça). Artigo publicado pelo Correio, em 10/março, foi divulgado aqui com os nossos comentários e mereceu a especial atenção de um leitor deste Boletim, cujas observações também divulgamos (15/03). O debate estava aberto. Outros leitores responderam ao primeiro, que defendeu sua posição com novos argumentos. Vamos acompanhar a discussão, lembrando apenas que nenhum dos debatedores é registrador civil.

 



A OPINIÃO QUE ABRIU O DEBATE

Em resumo, esta foi a colocação do nosso primeiro leitor: "Ainda não vi, entre a argumentação daqueles que entendem que não  tem almoço de graça, o seguinte raciocínio:  No Brasil, o trabalho escravo foi abolido em 1888 pela Princesa Isabel. (...) se o registrador tem o dever de registrar e a lei diz que ele não vai ganhar nada pelo trabalho, a lei reduz o profissional a condição análoga à de escravo. Como há aí um forte componente político e a arguição de inconstitucionalidade pode ser um tiro no próprio pé, ao menos que se esgrimam estes argumentos junto aos formadores de opinião."

 

 



É OU NÃO É ESCRAVIDÃO?

Teve gente que discordou: "De acordo com sua linha de raciocício qualquer trabalho gratuito é escravo. Não é assim. Eu posso muito bem trabalhar voluntariamente para o CVV, tem imposição de horário e nem por isso vou ser uma escrava do CVV. A conceituação de trabalho escravo não passa pela gratuidade da prestação, mas sim por outros fatores, entre eles, não poder se negar a executar o trabalho sob pena de castigos físicos ou outras ameaças. Quanto aos Registros Civis: Direito Administrativo não é minha área, mas vamos tentar. Cartórios existem porque o Poder Público permite que esta pessoa e não aquela explore essa função. Eu não posso abrir um cartório com a mesma simplicidade com que abriria um bar na esquina ou uma farmácia. Daí porque se Poder Público permite que alguém explore esse tipo de atividade também possa impor algum ônus, no caso: a gratuidade do registro civil. Explorar registros civis é uma função pública, regida por normas especiais de natureza pública. Não é um ato de comércio de natureza privada."

Teve gente que apoiou a manifestação acima:
"(...) Se me permite, acrescento que o cartório que se sentir prejudicado deverá buscar o ressarcimento das despesas que tiver com os registros gratuitos frente ao Poder Executivo e, se necessário, através do Poder Judiciário. O que não pode é deixar de cumprir a Lei sob o pretexto de que a mesma é inconstitucional, sem o devido questionamento através de Ação Direta de Inconstitucionalidade."

 

 



ACEITAM-SE SUGESTÕES

"E até que a supersônica Justiça se manifeste, o que você sugere para substituir o ganha-pão desses milhares de registradores civis que no Brasil todo têm cumprido exemplarmente sua tarefa até a edição da tal lei escravagista?"
 

 

 



SUGESTÃO: DURA LEX, SED LEX

"(...) mas o interesse público na confecção dos registros gratuitos para a população carente é imensamente superior ao interesse estritamente particular dos 'donos' de cartórios.

Não esqueçamos, outrossim, que vivemos num País onde vigora o estado de Direito, aliás, diga-se de passagem, estado este que tanto lutamos para conseguí-lo. Assim, não nos cabe questionar a Lei, senão através das vias adequadas (due process of law - devido processo legal), mas sim cumprí-la, rigorosamente (dura lex, sed lex)."
 

 

 



"DONOS' DE CARTÓRIO?

Só farei um reparo à sua msg: não existem 'donos' de cartórios, como bem lembram suas aspas. São profissionais do direito que exercem, por delegação do Estado, uma atividade que tem natureza jurídica mista, ou seja, ora é privada, ora pública, mas que é exercida em caráter privado (art. 236, CF). Você tem razão e minha total adesão no campo das idéias (sei que isso pouco importa), mas, enquanto pensamos, a caravana passa. Para mim, o assunto está encerrado.
 

 

 



ONDE ESTÁ A LEI?

Alguém pergunta:  "Caros amigos e amigas listeiros. Algum de vocês sabe informar se esta lei, abaixo transcrita, está sendo usada ou saiu no esquecimento? Por favor, dêem-me as coordenadas precisas. LEI Nº 9.534, DE 10 DE DEZEMBRO DE 1997".
 

 

 



POR QUE PAROU, PAROU POR QUÊ?

Alguém responde: "Caros listeiros, A lei é evidentemente inconstitucional. Logo, não colou e está caindo no esquecimento."
 

 

 



INCONSTITUCIONAL?

Alguém discorda: "Solicitaria que você desenvolvesse com mais profundidade a sua interpretação em relação à inconstitucionalidade da referida lei . Particularmente , discordo do seu posicionamento. Não encontrei sustentação no texto constitucional que pudesse chegar a esta constatação . Entendo até , que a ineficácia se deve mais à resistência dos cartórios em não cumprir a lei combinada com a inércia da população em exigir sua aplicaçao . Ou será que é incontitucional uma lei que dê condições ao miserável de ter o registro de nascimento (um direito que deveria ser estendido a todos; um dos documentos mais importantes do cidadão). Mas gostaria de você estendesse seus argumentos para, aí sim, adentrarmos no debate ."
 

 

 



INCONSTITUCIONAL, SIM.

"Voces não concordam que o trabalho escravo é inconstitucional? Se concordam, concordam comigo, pois a tal lei obriga os registradores civis a trabalharem para o governo de graça. É simples, não precisa argumentar com profundidade. A CF não diz que no Brasil não haverá trabalho escravo, mas vá lá, praqueles que ingenuamente pediram a solidez de meus argumentos: Art. 1º, incs. III e IV. Quando estes dois incisos forem revogados, aí a tal lei terá suporte.

Agora, por favor, não repliquem dizendo que é direito de todo cidadão o registro civil. Isto é óbvio ula-ula. Em exemplo de outra área jurídica, também é óbvio que todos terão acesso à Justiça e nem por isso as Defensorias Públicas foram transformadas em senzalas. Por isso, apóio: se eu fosse registrador civil não cumpria e entrava com ação de inconstitucionalidade. Como não sou, limito-me a ironizar. A lei é letra morta, queiram ou não os idealistas de plantão."

SERÁ?
Mais alguém discorda:
"Vai ser difícil que a ação de inconstitucionalidade, mencionada (...) seja julgada procedente, porque a CF, curiosamente, diz o seguinte, no artigo 5º:
'LXXVI - são gratuitos para os reconhecidamente pobres, na forma
da lei:
a) o registro civil de nascimento;
b) a certidão de óbito;'
Hum... acho que a lei é constitucional, sim... E é perfeitamente normal que o concessionário de serviço público tenha que prestar alguns serviços de graça, remunerando-se noutra ponta. Aqui em SP, por exemplo, os idosos andam de graça nos ônibus urbanos, de empresas privadas concessionárias. Até, nós, advogados, temos que atender de graça, de acordo com
nosso Estatuto:
'Art. 34. Constitui infração disciplinar:
XII - recusar-se a prestar, sem justo motivo, assistência jurídica, quando nomeado em virtude de impossibilidade da Defensoria Pública;'
Nunca tinha ouvido falar que isso fosse trabalho escravo. Interpretação bastante original!
O que aconteceu com a lei é que o pobre não a conhece e acaba pagando pelo registro."
 

 

 



NÃO BASTA SER CONSTITUCIONAL...

"Permitam-me uma colherzinha no assunto.

1. Não sou registrador civil;

2. A gratuidade prevista na CF/88 é para os RECONHECIDAMENTE pobres. A lei
cinicamente estende a gratuidade para todos, inclusive os DELICIOSAMENTE ricos. É vocação para Robin Hood às avessas!

3. O cinismo é tão grande que o governo, alertado para o fato de que existem milhares de registradores civis que prestam inestimável serviço "à cidadania" (como está de moda dizer) preferiu, ao invés de estatizar os serviços, impor a gratuidade indiscriminadamente. Em termos de política "social" é preciso levar vantagem em tudo, certo?

4. Mas pensa bem: se o governo de sua Majestade FHC tivesse que bancar o serviço em cada município - instalando cartório, contratando servidores, aparelhando serventias, bancando infra-estrutura etc etc etc - o custo social seria muito, mas muito maior.

5. E "alguém tem que pagar a conta", recentemente verberou um ministro do TST...

6. Cidadania é mera formalidade neste País cínico. O registro é formalidade. A existência de crianças famélicas, nesta biafrada deprimente, é mero detalhe estatístico. Lembra o Ronald Reagan: facts are stupid things!

7. Comemoremos o aniversário dessa Lei! Afinal, há um ano, exatamente, que as nossas crianças são finalmente cidadãs. Escolas? Trabalho? Lazer? Saúde? Dignidade? Ora, aí é pedir demais, né?

8. Concordo com o último missivista. A lei é constitucional: o STF já o declarou. Assim como era igualmente constitucional o achaque da canalha collorida. O STF o declarou. Magister dixit!

9. "remunerando noutra ponta"? Que ponta? Conheço dezenas de pequenos cartórios que não têm qualquer outra ponta para se segurarem. Quando imaginamos que Rifaina (SP) é igual a São Paulo, Capital, confundimos o dedo com a lua!

10. Os advogados recebem para trabalhar. O que é muito justo. Excepcionalmente, podem ser instados a prestar seus serviços gratuitamente, como lembrou oportunamente alguém. Mas caberia lembrar, acaso oportunamente, que a defensoria pública é remunerada no Estado de S.P.

11. Trabalhar para o CVV sem remuneração é ato digníssimo de desprendimento e humanidade. Não é trabalho escravo. Nem cartório é CVV (embora, por incrível que pareça, nos grotões essa função é exercida pelo padre, tabelião e o registrador civil) Mas seria muito engraçado se fôssemos obrigados a dedicar algumas horas do nosso trabalho tão-só pelo fato de que nos tenhamos formado bacharéis em direito num país de banguelas. Afinal, ser bacharel num país de subcidadãos, gratuitamente registrados, é privilégio que deve ser compensado noutra ponta. Vamos ajeitar logo esse mal estar existencialista com trabalho forçado!

12. Last, but not least - aproveitando o mote do aparecimento do bardo na patuléia holiudiana - caberia lembrar que em alguns Estados a Justiça declarou a inconstitucionalidade da lei.

 



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